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Anarquia ou Barbarie

~ A anarquia é a percepção ecológica da sociedade, é o entender a participação livre de cada membro da coletividade como fundamental para a existência, para o exercício da verdadeira cidadania que é viver na coletividade respeitando a diversidade. Anarquia é coletivamente sermos o poder, é todos nós decidirmos em conjunto, de forma horizontal o que fazermos em nossas vidas e em nossos bairros, cidades….

Anarquia ou Barbarie

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Epistemologia da Liberdade:Entrevista com um jovem revolucionário curdo

01 quinta-feira out 2015

Posted by litatah in Abdula Ocalan, abdulah ocalan, Anarquia, Análise de Conjuntura, Correntes da Anarquia, Curdistão/Kobane, Eleanor Finley, Experiências anarquistas, História, Instituto de Ecologia Social/Institute for Social Ecology, Internacional anarquista, Municipalismo Libertário, Municipalismo Libertário, Murray Bookchin, Notícias, Entrevistas, Atos, Manifestos, pkk, Prática, Revolução, Revolução Curda, Rojava, Turquia

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Por Eleanor Finley, membro do Instituto de Ecologia Social

Fonte: Institute for Social Ecology

Kobane, agosto de 2015. Em face à guerra devastadora e à violência, a juventude de Rojava procura um novo caminho para o entendimento.

Ano passado, a pequena cidade síria de Kobane e sua revolução libertadora de gênero e anti-estatal chamou a atenção da esquerda do mundo inteiro.A seguinte entrevista foi feita com um jovem revolucionário de Kobane, Sherhad Naaima, que também é um estudioso do pensamento de Ocalan.Esta entrevistra nos dá uma ideia das suas experiências assim como nos convida à uma reflexão sobre a revolução em Rojava,ecologia social e a recente traição da Turquia ao movimento curdo.

P: Como foi pra você crescer na região ocidental do Curdistão?O que sua família faz?

R: Nasci numa família curdas em 1991 numa aldeia nos arredores de Kobane.Kobane faz parte da província de Aleppo na Síria.Meu pai não conseguia encontrar trabalho em Kobane,por isso mudamos para Damasco.Lá estudei literatura inglesa na Universidade e meu irmão mais velho se formou em jornalismo.Assim que a guerra e a violência explodiram,largamos os estudos e voltamos para nossa aldeia.

P: Em Kobane,o PYD tem tentado estabelecer comunidades autônomas através da democracia direta em assembleias.Poderia nos contar sobre isso?

R: Em 2011,o povo se revoltou contra a ditadura de Assad exigindo liberdade.Os curdos participaram da revolução,mas a oposição queria resolver a crise sem contemplar as demandas do povo curdo.O PYD optou por uma 3ª via para a revolução,isto é,não apoiamos nem o governo sírio nem a oposição porque ambos têm a mesma mentalidade:negar direitos ao povo curdo.

Em 2012,nós expulsamos as forças de segurança sírias das áreas curdas.Para preencher o vácuo de poder que as forças deixaram,o PYD propôs um modelo de autogestão.É esse o modelo que vem funcionando agora em todo o Curdistão Ocidental.Nos 3 distritos de Cesire,Kobane e Afrin.Esse tipo de administração pode ser chamado de administração não-estatal,porque ele não governa,apenas administra.O poder de decisão vem de baixo para cima.Todo mundo pode se expressar e tomar decisões em assembleias locais abertas a todas as etnias e partidos.Ecologia e feminismo são pautas importantes.

P: Você já participou de alguma assembleia?Elas são muito difundidas?

R: Em primeiro lugar,as pessoas estabelecem assembleias locais em todos os âmbitos:economia,educação,cultura,segurança e serviços públicos.Essas assembleias são estabelecidas por democracia direta,a política tornou-se parte da vida de todos.Eu participei das assembleias traduzindo artigos do inglês para o árabe quando vivia em Kobane.

É importante notar que uma sociedade sem nenhum sistema de autodefesa perde sua identidade e sua capacidade de tomar decisões democráticas.Pesando nisso, Unidades de proteção ao Povo(YPE) foram estabelecidas.Esse exército popular é como a rosa que se defende com espinhos:é formado por homens e mulheres locais e está sob controle das assembleias.A diferença entre as unidades de proteção e um exército de verdade é que elas não são formadas por um grupo só,mas por pessoas comuns da comunidade.Colocar um exército sob o controle de um só grupo é como por um bife na frente de um gato faminto.

P: Como você aprendeu ecologia social?

R: Em 1999,quando Ocalan foi capturado no Quênia minha vida deu uma guinada.No começo foi uma experiência muito deprimente,mas foi devido a ela que eu comecei a me interessar por política e pela questão curda.

Depois que ocalan foi confinado numa solitária na Ilha de Imrali,ele passou a maior parte de seu tempo lendo livros de política e filosofia no esforço de encontrar uma solução pacífica para a questão curda.Na prisão,ele foi influenciado por grandes filósofos e pensadores como Murray Bookchin,Immanuel Wallerstein,V.Gordon Childe,Fernand Braudel,Friedrich Nietzsche,Michel Foulcault e a escola de Franfurt.Quando li os livros que Ocalan escreveu durante sua prisão,tomei conhecimento das ideias desses pensadores que o influenciaram,especialmente Boochin porque ele oferecia a solução que Ocalan estava procurando.Desse modo,as ideias de Boochin estão ganhando popularidade no Oriente Médio através do PPK na Turquia e do PYD na Síria.Apesar disso,como indivíduo ele não é tão conhecido porque seus livros não foram traduzidos para o árabe.

P: Qual é,do seu ponto de vista,a principal contribuição da ecologia social para o movimento?

R: Nestes últimos dois séculos,o nacionalismo e sua tendência à formação de estados nacionais foi estimulado no Oriente médio.Essa forma de Estado,que busca a monopolização de todos os processos sociais foi imposta ao Oriente Médio pela modernidade capitalista.Uma vez que o Estado nacional busca criar uma única identidade nacional,uma única cultura e uma única religião unificada,a diversidade e a pluralidade têm de ser obliteradas.Esta abordagem tem levado à assimilação e ao genocídio de todo o tradição espiritual,cultural e intelecutal.Ainda assim,essa forma de Estado não poderá nunca resolver as questões do Oriente Médio porque o Oriente Médio é multi-étnico,multi-cultural e multi-religioso.

No passado,o movimento curdo procurou formar um Estado curdo,no entanto,com a leitura das ideias de Bookchin,esta orientação mudou.Os/As curdos(as) tomaram consciência de que o Estado nacional não faz sentido.Eles(as) não querem trocar as velhas correntes por novas nem aumentar a repressão.A ecologia social fez avançar o Comunalismo(aspecto político das ideias de Boochin)como uma alternativa ao Estado nacional.Agora,as/os curdas/as do Curdistão Ocidental estão pondo em prática o Comunalismo.Quanto mais o Comunalismo se fortalece,mais o Estado nacional encolhe e,a menos que o Oriente Médio supere a noção de Estado,nunca vai haver paz na região.

P: Por que a Turquia está traindo o acordo feito com os/as curdos/as?

R: Para entender porque a Turquia,com o apoio dos EUA e da OTAN,está atacando o Movimento Curdo pela Liberdade,temos que voltar ao passado do Estado Turco.Nos anos 1960 e 1970,quando a esquerda se fortaleceu e se espalhou pela Turquia,os EUA e a OTAN estabeleceram e apoiaram um novo modelo na Turquia,o “Verde Turquesa”,que é a união entre o nacionalismo e o autoritarismo islâmico.Mais tarde o Verde Turquesa teve um filho monstro,o AKP(o Partido da Justiça e do Desenvolvimento,do presidente Erdogan da Turquia).Seu principal objetivo é combater e esmagar a esquerda na Turquia e no Oriente Médio.Agora,a Turquia não está apenas atacando a oposição curda,mas também toda a esquerda,especialmente aquela com uma teoria coerente que busca uma alternativa democrática para o Oriente Médio.Esquerda Internacional tem que estar ciente desse fato.

P: Como as diferenças internas entre os/as curdos/as se desenrola no Ocidente?Barzani no Iraque e o PYD(Partido União Democrática) na Síria tem amplo apoio dos EUA e seus aliados,ao passo que o PKK(Partido dos Trabalhadores do Curdistão) na Turquia é demonizado por procurar a mesma autonomia.

R: As dferenças internas entre o povo curdo pode ser entendida em duas partes.Uma delas:o PKK e o PYD estão abos lutando contra o capitalismo e tentando chegar a um modelo democrático desmantelando a mentalidade estatal.Este novo modelo é movido pela herança de livre-pensadores e filosofias ao longo da hstória.A outra parte:Barzani aceita o Estado e busca resposta dentro do quadro de referência do capitalismo.A diferença é ideológica.Entretanto,é importante afirmar que existe ainda traços autoritários dentro do PKK e PYD que devem ser superadas com a leitura cuidadosa dos trabalhos de Ocalan e outros pensadores anarquistas.

P: Por que a esquerda ocidental não oferece maior apoio à luta do povo curdo?

R: Eu acho que a esquerda trabalha e age dentro da epistemologia capitalista(cientificismo,orientalismo,reducionismo,eurocentrismo,positivismo etc).Essa epistemologia é baseada na distinção sujeito-objeto e se reflete em várias dicotomias como corpo-espírito,preto-branco,ocidente-oriente,norte-sul etc.Sob essas distinções,hierarquia e exploração ganham mais poder que em épocas anteriores na história.A esquerda então aborda a questão curda com uma epistemologia capitalista e,por causa disso, falta de um entendimento mais profundo da questão..Outro resultado é que a esquerda é fragmentada,sem uma teoria racional que unifique a luta e que a torne uma alternativa ao sistema capitalista mundial.É muito triste dizer isso,mas a esquerda é esquerda apenjas no coração porque a cabeça está cheia de concepções capitalistas.

P: Você pode dar exemplos?

R: Sim.Americanos e europeus não ficaram surpresos em ver mulheres curdas lutando?Isto é porque em suas mentes o Oriente Médio é “atrasado” e essa dualidade oriente/ocidente é a raiz do orientalismo.Para superá-lo,devemos encarar a sociedade como um processo orgânico de desenvolvimento.A história é um rio,não pode ser barrada.Não temos ocidente e oriente,mas uma só história que se move e carrega toda a cultura humana.

Para romper com a epistemologia capitalista a esquerda precisa mergulhar mais fundo na história e reviver sua própria tradição de liberdade e o ideal de uma utopia de libertária.A partir daí,deve-se construir uma teoria holística dada pela unidade das ciências humanas e naturais.Esta nova teoria pode ser chamada de epistemologia da liberdade e pode servir como um contraponto à epistemologia capitalista.

Eleanor Finley é pesquisadora etnográfica trabalhando em antropologia e ecologia política.Atualmente ela é estudante de graduação na Universidade de Massachusetts,Amherst,além de ser membro do Instituto de Ecologia Social.

Traduzido por Valter Augusto​/ Coletívo Anarquia Ou Barbárie

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Uma Introdução ao Pensamento e Prática Anarquista Anti-Civilização

02 quinta-feira jul 2015

Posted by litatah in Anarco Ecologia, Anarco Feminismo, Anarco Primitivismo, Anarquia Verde, Anti Capitalismo, Anti Civilização, Anti Consumismo, Anti Fascismo, Antirracismo, Aquecimento global - Mudanças climáticas, Ecofeminismo, Ecologia, Esquerda partidária, Experiências anarquistas, Feminismo e Transfeminismo, Feminismo intersecional, John Zerzan, Libertação animal, Mobilização Indígena, Municipalismo Libertário, Murray Bookchin, Oaxaca, Organização de base, Pierre Clastres, Publicidade, Questão indígena, Racismo ambiental, Serge Latouche, Teoria, Veganismo, Violência, Zapatistas

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ecoanarchism

 

Por The Green Anarchy Collective

Fonte: Bioterra

Este texto não é para ser “os princípios que definem” um “movimento” anarquista verde, nem mesmo um manifesto anti-civilização; é um olhar sobre idéias e conceitos básicos de membros de coletivos que dividem consigo e outros que se identificam com os anarquistas verdes.

Nós entendemos e celebramos a necessidade de manter nossas visões e estratégias abertas, e discussões sempre são bem vindas.

Nós sentimos que cada aspecto do que pensamos e do que somos precisam ser desafiados e permanecer flexíveis se nós quisermos crescer. Não estamos interessados em desenvolver uma nova ideologia, perpetuar uma visão de mundo única.

Nós também entendemos que nem todos anarquistas verdes são especificamente contra a civilização (mas custamos a entender como alguém pode ser contra todo tipo de dominação sem pensar em suas raízes: a própria civilização). Até aí, entretanto, muito dos que usam o termo “anarquista verde” criticam a civilização e tudo que vem junto com ela (domesticação, patriarquismo, divisão de trabalho, tecnologia, produção, representação, alienação, controle, destruição da vida, etc.). Enquanto alguns gostariam de falar em termos de democracia direta e jardinagem urbana nós achamos que é impossível e indesejável fazer a civilização mais “verde” e/ou fazê-la mais “justa”.

Nós sentimos que é importante mover radicalmente em direção a um mundo descentralizado, para desafiar a lógica e a formação de opinião da cultura-da-morte, acabar com toda mediação em nossas vidas, e destruir todas as instituições e manifestações físicas deste pesadelo.

Nós queremos nos tornar não-civilizados. Em termos gerais, essa é a trajetória da anarquia verde no pensamento e na prática. Anarquia vs. Anarquismo Um fator que nós achamos ser importante para começar este texto é a distinção entre “anarquia” e “anarquismo”. Alguns poderão entender isso como uma pura questão trivial ou semântica, mas para muitos pós-esquerdistas e anarquistas anti-civilização, esta diferenciação é importante. Enquanto o anarquismo serve como um importante ponto de referência histórica do qual se extrai inspirações e lições, ele tem se tornado muito sistemático, fixo e ideológico – tudo o que a anarquia não é. Admitidamente, a anarquia tem muito pouco a ver com a orientação social/política/filosófica do anarquismo e mais a ver com aqueles que se identificam como anarquistas. Sem dúvida, muitos de nossa “linhagem” anarquista ficariam desapontados por esta tendência em solidificar algo que deveria estar sempre fluindo.

Os primeiros que se identificaram como anarquistas (Proudhon, Bakunin, Berkman, Goldman, Malatesta e outros) respondiam a seus contextos específicos com suas próprias motivações e desejos específicos. Muito frequentemente, os anarquistas contemporâneos vêem estas pessoas como representantes e fundadores da anarquia, e criam uma atitude do tipo “o que Bakunin faria” (ou melhor, “pensaria”) a respeito da anarquia, o que é trágico e potencialmente perigoso. Hoje, os que se identificam como anarquistas “clássicos” se recusam a aceitar qualquer realização em um território desconhecido dentro do anarquismo (ex.: primitivismo, pós-esquerdismo, etc.) ou tendências que têm estado frequentemente em desacordo com a aproximação com o movimento de massa dos trabalhadores (ex.: Individualismo, Niilismo, etc.). Estes anarquistas rígidos, dogmáticos e extremamente não-criativos foram muito longe em declarar que o anarquismo é uma metodologia social/econômica de organizar as classes trabalhadoras. Isso é obviamente um extremo absurdo, mas tais tendências podem ser vistas nas idéias e projetos de muitos anarco-esquerdistas contemporâneos (anarco-sindicalistas, anarco-comunistas, plataformistas, federacionistas, etc.).

O “Anarquismo” como se encontra hoje, é uma ideologia muito esquerdista, a qual nós devemos ir além. Em contraste, a “anarquia” é uma experiência sem forma, fluída e orgânica que abraça visões multifacetadas de libertação tanto pessoal quanto coletiva e sempre aberta. Como anarquistas nós não nos interessamos em formar uma nova estrutura ou conjunto de regras para viver e seguir, por mais “ética” ou “discreta” que pareça ser. Os anarquistas não podem oferecer um outro mundo para as pessoas, mas nós podemos levantar questões e idéias, tentar destruir toda dominação que impede nossas vidas e nossos sonhos e vivermos diretamente conectados com nossos desejos.

O que é o Primitivismo?

Enquanto nem todos os anarquistas verdes se identificam especificamente como “Primitivistas”, muitos reconhecem a importância que a crítica primitivista tem tido nas perspectivas anti-civilização.

O primitivismo é simplesmente uma análise antropológica, intelectual e experimental das origens da civilização e das circunstâncias que levaram ao pesadelo que nós atualmente vivemos. O primitivismo reconhece que na maior parte da história humana, nós vivíamos em comunidades face-a-face, em harmonia uns com os outros e com o nosso redor, sem hierarquias e instituições para mediar e controlar nossas vidas. Os primitivistas querem aprender através das dinâmicas que ocorreram no passado e em sociedades contemporâneas coletoras-caçadoras/primitivas (aquelas que existiram e ainda existem fora da civilização). Enquanto alguns primitivistas querem um retorno completo e imediato às sociedades coletoras-caçadoras, muitos primitivistas sabem que um conhecimento do que foi bem-sucedido no passado não determina exatamente o que funcionará no futuro.

O termo “Futuro Primitivo” criado pelo autor anarco-primitivista John Zerzan faz alusão de que uma síntese de técnicas e idéias primitivas pode ser unida com conceitos e motivações anarquistas contemporâneos situações descentralizadas saudáveis, sustentáveis e igualitárias. Aplicadas não ideologicamente, o anarco-primitivismo pode ser uma importante ferramenta no projeto de des-civilização. 

O que é a Civilização?

Os anarquistas verdes tendem a ver a civilização como os aparatos lógicos, institucionais e físicos da domesticação, controle, e dominação. Enquanto diferentes indivíduos e grupos priorizam aspectos distintos da civilização (ex. os primitivistas tipicamente se focam na questão das origens, as feministas primeiramente se focam nas raízes e manifestações do patriarquismo, e os anarquistas insurrecionalistas se focam principalmente na destruição das atuais instituições de controle), muitos anarquistas verdes concordam que ela é a base do problema ou a raiz das opressões, e que precisa ser desmantelada.

A ascensão da civilização pode muito bem ser descrita como a mudança dos últimos dez mil anos de uma existência profundamente conectada com a teia da vida, para outra separada e em controle do resto da vida. Antes da civilização existia um amplo tempo livre, uma considerável autonomia e igualdade sexual, uma aproximação não-destrutiva do mundo natural, a ausência de violência, nenhuma instituição mediadora ou formal, e uma saúde vigorosa.

A civilização iniciou a guerra, a subjugação da mulher, o crescimento populacional, o trabalho forçado, os conceitos de propriedade, hierarquias, e praticamente todas as doenças conhecidas, isso para citar apenas algumas das suas conseqüências devastadoras. A civilização conta e começa com uma renúncia forçada do instinto da liberdade. Ela não pode ser reformada, portanto é nossa inimiga.

Biocentrismo vs. Antropocentrismo

Um modo de analisar a extrema discordância entre as visões de mundo das sociedades primitivas e da civilização, é por meio de visões biocêntricas vs. antropocêntricas. O biocentrismo é uma perspectiva que nos coloca e nos conecta com a terra e a complexa teia da vida, enquanto o antropocentrismo, a visão dominante do mundo, da cultura ocidental, coloca o foco na sociedade humana excluindo outras formas de vida. Uma visão biocêntrica não rejeita a sociedade humana, mas a retira do status de superioridade e a coloca em equilíbrio com as outras formas de vida. Ela coloca uma prioridade em uma visão biorregional, profundamente conectada com as plantas, os animais, insetos, clima, condições geográficas, e o espírito do lugar que habitamos.

Não há divisão entre nós e o meio ambiente, então não pode haver modernização ou diversidade da vida. Onde a separação e a modernização são as bases da nossa habilidade de dominar e controlar, a interconexão é um pré-requisito para uma profunda educação, atenção e compreensão. A anarquia-verde se esforça para ir além das idéias e visões antropocêntricas para um profundo respeito por toda vida e as dinâmicas dos ecossistemas que nos sustentam.

Uma Crítica à Cultura Simbólica 

Um outro aspecto de que como nós vemos e relacionamos com o mundo que pode ser problemático, no sentido de que somos separados de uma interação direta com o mundo, é a nossa mudança em direção à uma quase que exclusiva cultura simbólica. Muitas vezes a resposta a esse questionamento é “Então vocês só querem reclamar?” o que talvez seja a intenção de alguns, mas essa crítica é um olhar para os problemas inerentes com uma forma de comunicação e compreensão que confia primordialmente no pensamento simbólico ao custo (e exclusão) de outros meios sensuais e não mediados. A ênfase no simbólico é um movimento da experiência direta para a experiência mediada, na forma de linguagem, arte, número, tempo etc.

A cultura simbólica filtra toda a nossa percepção através de símbolos formais e informais. Está além de simplesmente dar nome as coisas, mas ter uma relação inteira com o mundo que é visto através das lentes da representação. É questionável se os seres humanos são como “peças” do pensamento simbólico, ou se esse pensamento se desenvolveu como uma mudança ou adaptação cultural, mas o modo simbólico de expressão e compreensão é certamente limitado, e sua dependência leva à objetivação, alienação e a uma cegueira da percepção. Muitos anarquistas verdes promovem e praticam a aproximação e a reanimação de métodos dormentes e inutilizados de interação e percepção, como o toque, olfato, e telepatia, bem como desenvolver métodos únicos e pessoais de compreensão e expressão. 

A Domesticação da Vida 

A domesticação é o processo que a civilização usa para doutrinar e controlar a vida de acordo com a sua lógica. Esses mecanismos aperfeiçoados de subordinação incluem: domesticação, criação, manipulação genética, intimidação, extorsão, aprisionamento, adestramento, coerção, chantagem, escravidão, governo, terrorismo, assassinato – a lista continua, incluindo quase todas as interações sociais civilizadas. Suas ações e efeitos podem ser examinados e sentidos por toda sociedade, reforçada pelas várias instituições, rituais e costumes. É também o processo pelo qual populações humanas antes nômades se mudaram para uma existência sedentária e assentada através da agricultura e criação de animais. Este tipo de domesticação requer uma relação totalitária com a terra, as plantas e os animais sendo domesticados. Ao passo que em um estado selvagem toda vida divide e compete por recursos, a domesticação destrói esse balanço.

A paisagem domesticada (ex.: terras pastoris/campos de agricultura, e em um nível menor, horticultura e jardinagem) requer o fim da livre divisão dos recursos que antes existiam; onde antes era “tudo é de todos”, agora é “meu”. No romance Ismael, o autor Daniel Quinn fala sobre essa transformação dos “largadores” (aqueles que aceitavam o que a Terra oferecia) aos “pegadores” (aqueles que exigiam da Terra o que eles queriam). Essa noção de posse é o que levou a fundação da hierarquia social enquanto a propriedade e o poder emergiam. A domesticação não somente muda a ecologia de uma ordem livre para uma ordem totalitária, como escraviza as espécies que são domesticadas.

De modo geral, quanto mais um ambiente é controlado, menos sustentável ele se torna. A própria domesticação humana envolve vários tipos de posses e controles, em comparação com o modo de vida nômade e coletor. Não é de se esperar que muitas alterações feitas de uma vida nômade-coletora para vida domesticada não foram feitas de forma autônoma, mas foram feitas através da lâmina da espada e da mira das armas. Considerando que somente há 2.000 anos atrás a maior parte da população do mundo era composta de coletores-caçadores, agora não chega 0.01%.

O caminho da domesticação é uma força colonizadora que tem trazido uma grande quantidade de patologias para as populações dominadas e para os criadores dessa prática. Vários exemplos incluem um declínio na saúde nutricional devido ao uso de dietas não diversificadas, cerca de 40 a 60 tipos de doenças foram integradas nas populações humanas através de animais domesticados (como a influenza, gripe comum, tuberculose e a gripe aviária), o aumento dos excedentes que poderiam ser usados para alimentar a população desequilibrada, o que invariavelmente envolve a propriedade e o fim da divisão incondicional. 

As Origens e Dinâmicas do Patriarquismo

Para o início da mudança para a civilização, uns dos primeiros produtos da domesticação é o patriarquismo: a formalização da dominação masculina e o desenvolvimento das instituições que a reforçam.

Criando falsas distinções e divisões sexuais entre homens e mulheres, a civilização novamente cria um “outro” que pode ser “coisificado”, controlado, dominado, utilizado e transformado em produto. Isso ocorre paralelamente à domesticação de plantas na agricultura e animais para criação, em uma dinâmica geral, e também específica, como é o caso do controle da reprodução. Como em outras regiões de estratificação social, papéis são definidos às mulheres para que assim se estabeleceça uma ordem rígida e previsível que beneficie a hierarquia.

As mulheres passam a ser vistas como propriedade, assim como os campos de trigo ou as ovelhas no pasto. A posse e o controle absoluto tanto da terra quanto dos animais, escravos, crianças ou mulheres, é parte da dinâmica estabelecida da civilização. O patriarquismo exige a subjugação feminina e a usurpação da natureza, nos impulsionando a aniquilação total.

O patriarquismo define o poder, o controle e o domínio sobre a vida selvagem, a liberdade e a vida. O condicionamento patriarcal domina todas as nossas interações; com nós mesmos, nossa sexualidade, nossa relação uns com os outros e a nossa relação com a natureza. Isso limita severamente o espectro de possíveis experiências. A relação interconectada entre a lógica da civilização e o patriarquismo é inegável; por milhares de anos eles transformaram cada nível da experiência humana, do nível institucional ao pessoal, enquanto devoravam a vida. Para ser contra a civilização devemos ser contra o patriarquismo; e para se questionar o patriarquismo se deve questionar a civilização. 

Divisão de Trabalho e Especialização

A desconexão da habilidade de cuidarmos de nós mesmos e prover as nossas necessidades é uma técnica de separação e enfraquecimento perpetuado pela civilização. Nós somos mais úteis ao sistema, e menos úteis a nós mesmos, se estivermos alienados dos nossos desejos e das outras pessoas pela divisão do trabalho e especialização. Não estamos mais aptos a sair pelo mundo e fornecer a nós mesmos e a nossos queridos o alimento e as provisões necessárias para a sobrevivência. Ao invés disso, nós somos empurrados a um sistema de produção e consumo de mercadorias ao qual estamos sempre em débito. Injustiças da influência direta que se dá através do poder efetivo das várias categorias de “experts”.

O conceito de um especialista inerentemente cria uma dinâmica poderosa que enfraquece as relações igualitárias. Enquanto a Esquerda às vezes possa reconhecer esses conceitos politicamente, eles são vistos como dinâmicas necessárias, para manter ou regular, enquanto os anarquistas verdes tendem a ver a divisão de trabalho e a especialização como problemas fundamentais e irreconciliáveis, decisivos para as relações sociais na civilização.

A Rejeição da Ciência

Muitos anarquistas anti-civilização rejeitam a ciência como um método para compreender o mundo. A ciência não é neutra. É carregada com motivos e conceitos que são surgem, e reforçam a catástrofe da dissociação, enfraquecimento e morte consumível da qual nós chamamos “civilização”. A ciência assume o afastamento, que é construído através da própria palavra “observação”. “Observar” algo é percebe-lo enquanto uma pessoa é distanciada emocionalmente e fisicamente, para ter um único canal de “informação”, vindo do que é observado para essa pessoa, que é definida como não sendo parte do que foi observado.Essa visão mecânica e baseada na morte é uma religião, a religião dominante do nosso tempo.

O método científico lida somente com o quantitativo. Ele não admite valores ou emoções, ou por exemplo, o modo como o ar cheira quando começa a chover – quando ela lida com essas coisas, ela lida transformando-as em números, tornando a singularidade do cheiro da chuva em uma preocupação abstrata com a fórmula química para o ozônio, tornando o modo como ele faz você sentir, em uma idéia intelectual de que as emoções são somente uma ilusão vinda do aquecimento dos neurônios. O próprio número em si não é real, mas um estilo de pensamento que foi escolhido. Escolhemos um hábito mental que foca nossa atenção em um mundo fora da realidade, onde nada possui qualidade ou vida própria. Escolhemos transformar a vida na morte.

Os cientistas mais cautelosos podem admitir que o que eles estudam não passa de uma simulação limitada do mundo real complexo, mas poucos deles percebem que esse foco limitado é auto-alimentador, que ele construiu sistemas tecnológicos, econômicos e políticos que trabalham juntos, que sugam nossa realidade para eles mesmos. Tão limitado quanto o mundo dos números, o método científico nem ao menos permite todos os números – somente os números que são reproduzíveis, previsíveis, e a mesma coisa para todos os espectadores.

Claro que a própria realidade não é reproduzível ou previsível ou a mesma para todos os espectadores. Mas tampouco são mundos de fantasia derivados da realidade. A ciência não pára em nos colocar em um mundo de sonhos – ela vai além, e faz desse mundo de sonhos o nosso pesadelo, onde seus conteúdos são selecionados para a serem previsíveis, controláveis e uniformes. Toda a surpresa , tudo relativo aos nossos sentidos são reprimidos.

Por causa da ciência, os estados de consciência que não podem ser seguramente determinados são classificados como insanos, ou, na melhor das hipóteses, “incomuns”, e excluídos. Experiências anormais, idéias anormais, e pessoas anormais são rejeitadas ou destruídas como se fossem componentes defeituosos de uma máquina. A ciência é somente uma manifestação, que está presa a uma ânsia por um controle que nós temos desde que começamos a cultivar terras e cercar animais ao invés de explorarmos o mais imprevisível (mas mais abundante) mundo da realidade, ou “natureza”. E a partir daí, essa ânsia conduziu cada decisão, do que se diz “progresso”, até e incluindo a reestruturação genética da vida.

O Problema da Tecnologia

Todos os anarquistas verdes de alguma forma questionam a tecnologia. Enquanto há aqueles que ainda propõem noções de tecnologias “verdes” ou “apropriadas” e buscam análises racionais para se apegarem por formas de domesticação, muitos rejeitam completamente a tecnologia.

A tecnologia é muito mais do que fios, silicone, plásticos e aço. Ela é um sistema complexo que envolve divisão de trabalho, extração de recursos, e a exploração dos outros para benefício daqueles que executaram seu processo. A interface e o resultado da tecnologia sempre é uma realidade alienada, mediada e distorcida. Apesar do que dizem os apologistas pós-modernos e outros tecnófilos, a tecnologia não é neutra. Os valores e objetivos daqueles que produzem e controlam a tecnologia estão sempre embutidos nela.

A tecnologia se difere dos instrumentos simples em vários aspectos. Uma ferramenta simples e o uso temporário de um elemento em um nosso meio para uma tarefa específica. Ferramentas simples não envolvem sistemas no qual alienam o usuário do ato. Esta separação é absoluta na tecnologia, criando uma experiência doentia e mediada, o que resulta em várias formas de autoridades.

A dominação aumenta toda vez que uma nova tecnologia é criada, necessitando a construção de mais tecnologia para o suporte, abastecimento e reparo de tal tecnologia. Isto tem levado rapidamente ao estabelecimento de um sistema tecnológico complexo que parece ter uma existência independente dos humanos. Dejetos-produtos da sociedade tecnológica estão poluindo tanto nosso ambiente físico quanto nosso ambiente psicológico. Vidas são roubadas a serviço da maquina e do efluente tóxico do combustível tecnológico – ambos estão nos chocando. A tecnologia hoje tem multiplicado a si mesma, com algo semelhante a uma sinistra “sensibilidade”.

A sociedade tecnológica é uma infecção planetária, impulsionada adiante pelo seu próprio ímpeto, rapidamente ordenando um novo tipo de ambiente desenvolvido para a eficiência mecânica e expansionismo tecnológico. O sistema tecnológico metodicamente destrói, elimina e subordina o mundo natural, construindo um mundo que sirva somente para as maquinas. O ideal que o sistema tecnológico aponta é a mecanização de tudo aquilo que encontra. 

Produção e Industrialismo

Um componente-chave da estrutura tecno-capitalista moderna é o Industrialismo, o sistema mecanizado construído no poder centralizado e na exploração de pessoas e da natureza. O industrialismo não pode existir sem genocídio, ecocídio e colonialismo. Para mantê-lo, a coerção, desapropriação de terras, trabalho forçado, destruição cultural, assimilação, devastação ecológica e o mercado são aceitos como necessários ou mesmo benéficos.

A padronização da vida pelo industrialismo transforma a vida em objeto e um bem de consumo, encarando toda vida como potenciais recursos. Uma crítica do industrialismo é uma extensão natural da crítica anarquista ao estado pois o industrialismo é inerentemente autoritário. Para manter uma sociedade industrial, deve-se conquistar e colonizar terras para (geralmente) conseguir recursos não-renováveis para abastecer e lubrificar as máquinas. Este colonialismo é racionalizado pelo racismo, sexismo, e o chauvinismo cultural.

No processo para adquirir esses recursos, as pessoas devem ser forçadas a sairem de suas terras. E para fazer as pessoas trabalharem nas fábricas que produzem as máquinas, elas devem ser escravizadas, devem tornar-se dependentes e sujeitas ao sistema industrial tóxico e degradante. O industrialismo não pode existir sem uma massiva centralização e especialização. A dominação de classes é uma ferramenta do sistema industrial que nega às pessoas acesso a recursos e conhecimento, transformando-as em impotentes e fáceis de explorar. Além disso, o industrialismo requer que recursos sejam distribuídos ao longo de todo globo para perpetuar sua existência, e este globalismofraquece e destrói a autonomia local e sua auto-suficiência.

É uma visão do mundo mecânica, que está atrás do industrialismo. É essa mesma visão de mundo que justifica a escravidão, extermínio e subjugação da mulher. Deveria ser óbvio para todos que o industrialismo não é apenas opressivo com os humanos, mas que é também ecologicamente destrutivo.

Além do Esquerdismo Infelizmente, a maior parte dos anarquistas continuam sendo vistos e vendo a si mesmos como parte da esquerda. Esta tendência está mudando, como os anarquistas pós-esquerda e anti-civilização fazem uma distinção clara entre suas perspectivas e a falida orientação socialista e liberal. A esquerda não tem apenas provido a si mesma um monumental fracasso em seus objetivos, mas é obvio pela sua história, pelas suas práticas atuais, e sua estrutura ideológica, que (enquanto apresenta a si mesma como altruísta e promotora de “liberdade”) é atualmente a antítese da libertação.

A esquerda,fundamentalmente, nunca questionou a tecnologia, a produção, organização, representação, alienação, autoritarismo, moralismo, ou o progresso, e não tem quase nada a dizer sobre ecologia, autonomia, ou individualidade em alguma agenda “progressista”, frequentemente usando aproximações coercivas e manipuladoras para criar uma falsa “unidade” ou a criação de partidos políticos. Enquanto os métodos e os exageros de implementação podem ser diferentes, o esforço total é o mesmo, a instituição da visão do mundo coletivizada e monolítica baseada na moral. Contra a Sociedade de Massas

A maioria dos anarquistas e “revolucionários” gastam uma parte significante de seu tempo desenvolvendo esquemas e mecanismos para a produção, distribuição, julgamento e a comunicação entre um grande número de pessoas; em outras palavras, o funcionamento de uma sociedade complexa. Mas nem todos anarquistas aceitam a premissa da coordenação e interdependência social, política e econômica global (ou mesmo regional), ou a organização necessária para sua administração. Nós rejeitamos a sociedade de massa por razões práticas e filosóficas.

Primeiramente, rejeitamos a representação necessária para o funcionamento de situações fora do domínio da experiência direta (modos de existência completamente descentralizados). Nós não queremos controlar a sociedade ou organizar uma sociedade diferente, nós queremos uma estrutura completamentbe diferente. Queremos um mundo aonde cada grupo seja autônomo e decida com seus próprios meios como viver, com todas as interações baseadas em afinidades, livres e abertas, e não coercitivas.

Queremos uma vida na qual de fato vivemos, não uma que sobrevivemos. A brutalidade da sociedade de massas colide não apenas com a autonomia e individualidade, mas também com a Terra. Simplesmente não é sustentável (em termos de recursos, extração, transporte, e sistemas de comunicação necessários para qualquer sistema econômico global) continuar, ou prover planos alternativos para a sociedade de massas. Novamente, a descentralização radical parece ser a chave para a autonomia, promovendo métodos de subsistência sustentáveis e não hierárquicos. 

Liberação vs. Organização

Somos seres empenhados para um rompimento profundo e total com a ordem civilizadora, anarquistas desejando liberdade irrestrita. Nós lutamos por liberação, por uma relação descentralizada e sem mediações com o nosso meio e com aqueles que amamos e com quem partilhamos afinidades.

Os modelos organizacionais nos oferecem apenas mais da mesma burocracia, controle e alienação que recebemos da organização vigente (civilização). Enquanto talvez ocorra uma boa intenção ocasional, o modelo organizacional vem de uma mentalidade inerentemente desconfiada e paternalista, o que parece contraditório com a anarquia. As verdadeiras relações de afinidade surgem de uma profunda compreensão entre as pessoas, através de relações íntimas baseadas nas necessidades da vida diária, e não relacionamentos baseados em organizações, ideologias ou idéias abstratas. Tipicamente, o modelo organizacional reprime as necessidades e desejos individuais para “o bem do coletivo” padronizando tanto a resistência quanto o ponto de vista.

Dos partidos, a plataformas, a federações, parece que à medida em que a escala dos projetos aumenta, o significado e a relevância que têm pelo indivíduo e sua vida diminui.

As organizações são meios para estabilizar a criatividade, o controle de dissidência e a redução de “tangentes contra-revolucionárias” (como os quadros de elites ou lideranças determinam). As organizações tipicamente se apóiam no quantitativo, ao invés do qualitativo, e oferece pouco espaço para a ação ou pensamento independente. Informalmente, as associações baseadas em afinidades tendem a minimizar a alienação das decisões e processos, e reduz a mediação entre nossos desejos e nossas ações.

Relacionamentos entre grupos de afinidade são mais orgânicos e temporais, ao invés de fixos e rígidos.

Revolução vs. Reforma

Como anarquistas, somos fundamentalmente contra governos, da mesma forma, contra qualquer espécie de colaboração ou mediação com o estado (ou qualquer instituição de hierarquia e controle). Esta posição determina uma certa continuidade ou direcionamento de estratégia, que historicamente conhecemos como revolução. Este termo, quando mal entendido, diluído e agregado por várias ideologias e agendas, ainda tem significado para os anarquistas e para as atividades práticas não-ideológicas.

Por revolução, entendemos como a luta constante para mudar a paisagem social e política de um modo fundamental; para os anarquistas significa seu completo desmantelamento. A palavra “revolução” é dependente da posição da qual é direcionada, bem como a atividade “revolucionária”.

Novamente, para os anarquistas, isso é atividade que é direcionada para a completa dissolução do poder. A reforma, por outro lado, permite qualquer atividade ou estratégia direcionada ao ajustamento, a alteração, ou seletividade, mantendo os elementos do atual sistema, tipicamente usando os métodos e aparatos dele.

As metas e métodos da revolução não podem ser ditadas nem realizadas nos contextos do sistema. Para os anarquistas, a revolução e a reforma invocam métodos e direções incompatíveis, e apesar de certas aproximações anarco-liberais, não existe continuidade. Para os anarquistas anti-civilização, as questões de atividade revolucionária desafiam e trabalham para desmantelar todo o cenário ou paradigma da civilização. A Revolução é também não ou evento singular ou remotoque construímos ou preparamos para as pessoas, pelo contrário, é um estilo de vida ou prática de abordar situações. 

Resistindo a Mega Máquina

Os Anarquistas em geral, e em particular anarquistas-verdes, adotam a ação direta em vez de formas mediadas ou simbólicas de resistência. Vários métodos e abordagens, incluindo subversão cultural, sabotagem, insurreição, “violência” política, (embora não sejam limitados somente a esses métodos) têm sido e permanecem como parte do arsenal de ataque anarquista.

Uma única tática não pode ser efetiva em alterar significantemente a ordem ou sua trajetória. Mas estes métodos, combinados com transparência e crítica social, são importantes. A subversão do sistema pode ocorrer do sutil ao dramático e pode ser um importante elemento de resistência física. A sabotagem sempre tem sido uma parte vital das atividades anarquistas, tanto na forma de vandalismo espontâneo (público ou noturno), ou através de uma coordenação ilegal e secreta de células autônomas.

Recentemente grupos como a Frente de Libertação da Terra (ELF, na sigla em inglês) um grupo ambientalista radical mantido por células autônomas, tendo alvo aqueles que lucram com a destruição da Terra, têm causado milhões de dólares em danos a lojas e escritórios corporativos, bancos, madeireiras, laboratórios de engenharia genética, veículos e casas luxuosas. Estas ações, que frequentemente são incêndios, têm inspirado muitos à ação, e são meios efetivos de não só trazer atenção à degradação ambiental, mas também como detentores de específicos destruidores da Terra.

A atividade insurrecionária, ou a proliferação de momentos insurrecionais a qual pode causar uma ruptura na “paz social” da qual a raiva espontânea das pessoas pode ser liberada e possivelmente espalhada em condições revolucionárias. A atividade insurrecionária, ou a proliferação de momentos insurrecionais que podem causar a ruptura da paz social da qual a raiva espontânea das pessoas pode ser liberada e possivelmente propagadas em condições revolucionárias, também têm aumentado.

A revolta de Seattle em 1999, Praga em 2000 e Genova em 2001, foram todas (de diferentes maneiras) faíscas de atividades insurrecionais, que, embora limitados em alcance, podem ser vistos como tentativa para mover em direções insurrecionárias e fazer um rompimento qualitativo com o reformismo e todo o sistema escravista.

A violência política, incluindo o ataque a indivíduos responsáveis por atividades específicas ou pelas decisões que levam a opressão, também tem sido um foco para os anarquistas historicamente. Enfim, considerando a imensa realidade e toda extensão penetrável do sistema (socialmente, politicamente, tecnologicamente), ataques a redes tecnológicas e na infra-estrutura da mega-máquina são de interesse para anarquistas anti-civilização. Indiferente da aproximação ou intensidade, as ações militantes unidas com uma análise profunda da civilização estão crescendo.

 A Necessidade de Ser Crítico

À medida que a marcha da aniquilação global avança, a sociedade se torna mais doente, perdemos o controle de nossas vidas e falhamos em criar uma resistência significativa contra a cultura-da-morte. É vital para nós, sermos extremamente críticos com os movimentos “revolucionários” do passado, com esforços atuais e com nossos próprios projetos, não podemos repetir perpetuamente os erros do passado ou sermos cegos para nossas próprias deficiências.

O movimento ambientalista radical está repleto de campanhas com um só foco e gestos simbólicos e a cena anarquista está infestada por tendências esquerdistas e liberais. Ambos continuam insistindo em gestos ativistas sem significado, raramente questionando sua (in)eficiência. Frequentemente a culpa e o auto-sacrifício – ao invés de sua liberação e liberdade – guiam esses benevolentes reformadores sociais irrealistas, enquanto eles continuam por um caminho que foi esboçado por falhas diante deles.

A Esquerda é uma ferida inflamada na bunda da sociedade, os ambientalistas não têm obtido sucesso na preservação de nem mesmo frações de áreas selvagens, e os anarquistas raramente possuem algo provocativo para dizer, deixemo-os em paz.

Enquanto alguns podem discutir contra o criticismo porque ele é “analítico”, qualquer verdadeira perspectiva radical veria a necessidade da análise crítica, em mudar nossas vidas e o mundo que habitamos. Aqueles que desejam acalmar um debate até o “depois da revolução”, contendo toda a discussão em debates vagos e insignificantes, e reprimir a crítica das estratégias, táticas, ou idéias, não estão indo a lugar algum, e só vão nos atrasar. Um ponto essencial de qualquer perspectiva anarquista radical deve ser colocar tudo em questão, obviamente incluindo suas próprias idéias, projetos e ações.

Influências e Solidariedade

A perspectiva anarquista-verde é diversa e aberta, contudo, contém alguns elementos contínuos e primários.

A anarquia-verde tem sido influenciada por anarquistas, primitivistas, luditas, insurrecionalistas, situacionistas, niilistas, ecologistas profundos, biorregionalistas, ecofeministas, várias culturas indígenas, lutas anti-colonialismo, os “ferais”, os selvagens e a Terra.

Os anarquistas, obviamente, contribuem para o impulso anti-autoritário, que desafia todo o poder num nível fundamental, empenhados por relações verdadeiramente igualitárias e promovendo comunidades de apoio mútuo.

Os anarquistas-verdes, entretanto, ampliam as idéias de não-dominação para todas as formas de vida, não apenas humanos, indo assim além das análises anarquistas tradicionais. Dos primitivistas, os narquistas-verdes são instruídos com um olhar crítico e provocativo das origens da civilização, para que entendam que confusão é essa e como chegamos a ela, para ajudar a apontar um mudança de direção.

Inspirados nos Luditas, os anarquistas-verdes reacendem uma orientação de ação direta anti-tecnológica-industrial. Os insurrecionalistas introduzem uma perspectiva onde esperam não uma critica positiva e verdadeira, mas identifica espontaneamente as instituições da civilização que atam nossas liberdades e desejos.

Os anarquistas anti-civilização devem muito aos Situacionistas, e suas críticas da alienante sociedade da mercadoria, a qual podemos romper nos conectando de forma direta com nossos sonhos e desejos não-mediados. A recusa niilista em aceitar qualquer realidade demonstra o quão profundo é o mal dessa sociedade e oferece aos anarquistas verdes uma estratégia que não necessita oferecer visões da sociedade, mas ao invés disso, focalizar em sua destruição.

A Ecologia profunda, apesar de sua tendência misantrópica, instrui a perspectiva anarquista-verde com um entendimento de que o bem-estar e a prosperidade de toda a vida estão ligados ao conhecimento do valor inerente e intríseco do mundo não-humano independente de valor útil. A apreciação da ecologia profunda pela riqueza e a diversidade da vida contribui para a realização que a atual interferência humana com o mundo não-humano é coercivo e excessivo, com uma condição que se agrava rapidamente.

O Biorregionalismo nos conduz a uma perspectiva de viver dentro de nossas próprias biorregiões, e nos tornarmos intimamente conectados com a terra, a água, o clima, as plantas, os animais, e outros espécimes da biorregião.

O Ecofeminismo tem contribuindo para a compreensão das raízes, dinâmicas, manifestações e realidade do patriarquismo, e seus efeitos na terra, nas mulheres, e na humanidade em geral. Recentemente, a separação destrutiva do homem da Terra (civilização) tem provavelmente sido articulado mais claramente e intensamente por ecofeministas.

Os anarquistas anti-civilização têm sido profundamente influenciados por várias culturas indígenas e nativas ao longo da história e por aquelas que ainda existem. Enquanto humildemente aprendemos e incorporamos técnicas sustentáveis de sobrevivência e maneiras saudáveis de interagir com a vida, é importante não igualar ou generalizar povos nativos e suas culturas, respeitar e nos esforçar a entender sua diversidade sem agregar indentidades e características culturais.

Solidariedade, apoio, e tentativas de se conectar com nativos e lutas anti-coloniais, que têm sido a linha de frente da luta contra a civilização, são essenciais enquanto nós nos esforçamos para o desmantelamento da máquina-de-morte.

Também é importante entender que nós, de certa forma, descendemos de povos nativos que foram violentamente retirados de suas conecções com a terra, e por isso devemos fazer parte das lutas anti-coloniais. Somos inspirados também pelos ferais, aqueles que escaparam da domesticação e se reintegraram com o selvagem. E, claro, com os seres selvagens que tornam possível este lindo organismo azul e verde chamado Terra. É também importante lembrar que, enquanto muitos anarquistas-verdes extraem influencia de fontes similares, anarquia-verde é algo muito pessoal para aqueles se identificam ou se conectam com estas idéias e ações. perspectivas derivam de nossas próprias experiências de vida na cultura-de-morte (civilização), e os próprios desejos fora do processo de domesticação, são ultimamente os mais vividos e importantes no processo de descivilização. 

Retorno ao Selvagem e Reconexão

Para a maioria dos anarquistas verde/primitivistas/anti-civilização retorno ao selvagem e reconexão com a terra é um projeto de vida. Isto não é limitado a compreensão intelectual ou praticas de habilidades primitivas, mas, em vez disso, é um profundo entendimento das penetráveis maneiras pelas quais somos domesticados, fraturados, e deslocados de nós mesmos, dos outros e do mundo,o enorme e diário desafio de sermos íntegros novamente.

Retorno ao selvagem tem um componente físico, o qual envolve habilitadas resgatadas e desenvolvimento para uma coexistência sustentável, incluindo como obter alimento, abrigo, e nos curar com as plantas, e materiais que existem naturalmente em nossas biorregiões. O retorno ao selvagem também inclui o desmantelamento das manifestações físicas, dos aparatos, e da infra-estrutura da civilização.

O retorno ao selvagem tem um componente emocional que envolve nos curar e curar os outros das profundas feridas de 10.000 anos, aprendemos a viver juntos em comunidades não-hierárquicas e não-opressivas, e desconstruir a mentalidade domesticada do atual modelo social. retorno ao natural envolve priorizar as vontades e experiência direta sobre a mediação e alienação, repensando toda dinâmica e o aspecto da nossa realidade, conectando com nossa fúria feral para defender nossas vidas e lutar por uma existência livre, desenvolvendo mais confiança em nossa intuição estando mais conectados com nossos instintos, recuperando o balanço que foi virtualmente destruído depois de milhares de anos de controle patriarcal e domesticação. O retorno ao natural é o processo de se tornar “des-civilizado”. PELA DESTRUIÇÃO DA CIVILIZAÇÃO! PELA RECONEXÃO COM A VIDA!

Tudo na Erva-Daninha

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Guerra e revolução nas trincheiras de Rojava: Posição dos anarquistas revolucionários

01 quarta-feira jul 2015

Posted by litatah in Abdula Ocalan, Anarquia, Análise de Conjuntura, Anti Capitalismo, Anti Fascismo, Bakunin, Curdistão/Kobane, Experiências anarquistas, História, Internacional anarquista, Janet Biehl, Kropotkin, Malatesta, Mártires da Luta, Municipalismo Libertário, Murray Bookchin, Prática, Teoria

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Fonte: União Popular Anarquista 

Comunicado nº 44 da União Popular Anarquista 

Brasil, março de 2015.


A luta pela liberdade do Curdistão não começou hoje. O povo curdo possui uma luta pela autodeterminação que percorre séculos de combate na região da Mesopotâmia. Entre guerras e revoltas, domínio externo ou controle e repressão pelas próprias oligarquias, a história de luta deste povo, especialmente a história recente, começa a criar interesses pelos quatro cantos do mundo. Afinal, quem são esses homens e mulheres que hoje combatem e resistem ao avanço do Estado Islâmico no norte da Síria? A imprensa mundial e os governos não têm interesse em divulgar informações.

Hoje os olhos do mundo se voltam para a resistência heroica e as vitórias das massas populares em Kobane contra o Estado Islâmico do Iraque e Levante (ISIS). Os conflitos recentes nesta região que abarca a Turquia, Iraque e Síria é alvo da intervenção e controle imperialista e de grupos jihadistas que disputam o redesenho geopolítico do norte da África e Oriente Médio.

A resistência armada em Kobane se insere hoje em um teatro de operações político-militares complexo e que impõe para a ordem do dia o debate teórico, estratégico e programático dos revolucionários e anarquistas. A calorosa solidariedade no mundo inteiro e o tremular das bandeiras negras novamente nas trincheiras de Kobane nos mostraram a importância da solidariedade internacional para o avanço da luta e de uma linha anarquista que não fuja às tarefas da revolução.

Porém, mais do que apenas uma defesa simplista (e até estética) ou uma crítica purista e irresponsável (pacifista ou sectária) hoje é fundamental um posicionamento dos anarquistas revolucionários afim de influir nos acontecimentos, para defender e avançar nas conquistas do povo curdo e das massas trabalhadoras do mundo inteiro. É buscando contribuir com uma análise anarquista e revolucionária da situação e com um objetivo militante que nós da UNIPA lançamos esse comunicado.

As guerras no Iraque, Síria e Turquia: O terreno da luta

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Fonte: Wikimedia. 26 de setembro de 2014.

Devemos situar que o atual conflito em Kobane está intimamente relacionado com a guerra no Iraque, com a guerra civil síria, bem como com a guerra de guerrilhas desenvolvida e dirigida pelo PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) e demais organizações curdas atuantes na Síria e Iraque.

Depois do atentando sobre as torres gêmeas nos EUA em 2001, o governo de George W. Bush, dos EUA, e de Tony Blair, da Inglaterra, invadiram o Iraque em 2003 e destruíram o Estado comandando pelo Partido Baath (Nacionalista Árabe, de maioria Sunita – um ramo do islamismo) de Saddam Hussein sob a justificativa, falsa, de eliminar armas de destruição em massa. Em busca de uma ação rápida que atendesse os interesses do imperialismo, de controle de reservas energéticas, petróleo, e de controle político-militar da região, apoiado por Israel e as monarquias do golfo pérsico, os americanos e britânicos destruíram o Estado iraquiano, um dos poucos Estados laicos e não-alinhados com os EUA, dividindo-o.

A partir de então se iniciou uma guerra civil pelo controle do “novo” Estado iraquiano e uma luta de resistência contra as tropas imperialistas. Uma parcela de grupos étnicos-político locais, curdos e xiitas, que estavam fora do poder durante o governo de Saddam Hussein, apoiaram a invasão. Por sua vez, os EUA e a Inglaterra sustentaram a formação de um governo fantoche composto por curdos, xiitas e sunitas. Entretanto, os conflitos se acirraram na medida em que antigos grupos fora do poder (principalmente sunitas) passaram a se vingar. Não houve aliança possível para o controle compartilhado do Estado Neoliberal proposto pelos EUA e aceito pelas classes dirigentes desses grupos étnicos e religiosos.

Assim, a política da OTAN, de Israel e dos EUA para o Iraque passa pelo redesenho e a divisão de todo o Oriente Médio. É uma política claramente neocolonial. O desmantelamento do Iraque aumentou a resistência à ocupação com grupos vinculados à rede Al Qaeda. De origem Sunita, composto por jihadistas de várias partes do mundo, esse grupo criou o Estado Islâmico do Iraque e Levante (ISIS), com leis baseadas em textos religiosos do Islã, formando um novo Califado, também patrocinado pelos EUA. Os rebeldes da Frente Al Nursa (ramificação da Al-Qaeda na Síria) e do ISIS são vinculados às forças paramilitares patrocinadas e treinadas pela aliança militar ocidental para a guerra civil na Síria. Não por acaso, romperam com Al-Qaeda para se concentrar na luta pela formação desse estado que compreende o Nordeste da Síria e quase todas as regiões de maioria árabe sunita do Iraque.

Abu Bakr al-Baghdadi

Abu Bakr al-Baghdadi, autoproclamado Califa do Estado Islâmico.

Portanto, que fique claro, o Estado Islâmico é filhote do imperialismo norte-americano. Por isso está correto quando a organização turca Ação Anarquista Revolucionária (DAF) afirma que: “Estados covardes cuja única expectativa é o lucro, fundariam o ISIS hoje, arrepender-se-iam hoje, e reconheceriam o Estado Islâmico amanhã. Enquanto o povo sempre lutará pelo seu futuro e por sua liberdade, como no passado.” Essa frase define muito a atuação imperialista na região do Oriente Médio nas últimas décadas, apoiando atores contraditórios, oligarquias “do bem” contra oligarquias “do mal”, golpistas contra governos democráticos, e modificando essas definições de acordo com os seus interesses políticos.

A fundação do ISIS, do Califado, está vinculado a agenda dos EUA para retalhar o Iraque e a Síria em mais dois territórios separadas: uma república xiita árabe e a República do Curdistão (de caráter burguês e pró-imperialista). Esse projeto conta com apoio dos israelenses e das ditaduras e monarquias absolutas do Kuwait, Catar, Arábia Saudita e Emirados.

O atual Governo Regional do Curdistão (KRG), também conhecido como Curdistão Iraquiano, atende essa agenda geopolítica e é apoiado pelos EUA e o Estado de Israel. O KRG é controlado, através de eleições, por três partidos da direita curda e mantêm uma política de apoio às multinacionais que exploram esta região com imensas reservas petrolíferas. As forças políticas da burguesia curda que atualmente controlam o Curdistão Iraquiano colaboraram no combate ao PKK e à guerra de guerrilhas, chegando a entrar em conflito durante o início da década de 1990.

A atual guerra civil na Síria, iniciada no primeiro semestre de 2011 sob a forma de grandes manifestações de rua e que em alguns meses ganharam o caráter de conflito armada, ganhou contornos regionais e mundiais com a intervenção das principais potências imperialistas (EUA, França, Alemanha, Inglaterra, Rússia e China) e de países semiperiféricos como a Turquia. Depois de uma ameaça de intervenção direta na Síria pelo presidente estadunidense Barack Obama (Partido Democrata), reprovada a priori pelo próprio parlamento, o governo Russo articulou um acordo de entrega de armas químicas sírias com a ONU. Assim, Putin reforçou a posição do eixo Moscou-Pequim contra a intervenção militar defendida pelos líderes europeus, encabeçados pelo “socialista” François Hollande e Angela Merkel, Obama e o governo Turco de Erdogan.

Iraqi Kurdish leader Massud Barzani (R) shakes hands with Turkish Prime Minister Ahmet Davutoglu during their meeting in Arbil, the capital of the Kurdish autonomous region in northern Iraq, on November 21, 2014.

Massud Barzani (Curdistão Iraquiano) e Ahmet Davutoglu (primeiro ministro da Turquia). 21 de novembro de 2014.

A oposição síria está dividida entre grupos salafistas, jihadistas sunitas (Brigadas Liward al Tawhidi, Ahrar al Cham, Souqour al Cham) que formaram o Conselho Islâmico, os islâmicos moderados (Brigadas Al-Farouk), grupos curdos e o Exército Livre da Síria (sigla FSA, coalização mais pró-ocidental) que formaram o Conselho Nacional Sírio. No início do ano de 2014 foi formado o Comitê Nacional de Coordenação para Mudança Democrática que negocia com as potências ocidentais e com a Liga Árabe.

Ao contrário do que muitos afirmaram, a radicalização da luta de classes no norte da África e no Oriente Médio, através dos levantes populares, não apenas não levaram a “revoluções democráticas” como serviram para piorar as condições de vida, aumentando a miséria e o autoritarismo, abrindo espaço para a atuação de grupos militares fundamentalistas e sucessivos golpes militares e conflitos étnicos. Hoje existem mais de 300 mil refugiados da guerra civil. Além disso, segundo dados do Observatório Sírio de Direitos Humanos (OSDH), mais de 200 mil pessoas já morreram desde o início dos conflitos em 2011. As mortes aumentaram a cada ano, e em 2014 chegaram a 76.012 pessoas mortas, com alto índice de mortes de crianças e civis em geral. Uma das principais razões para que os levantes do norte da África tenham fracassado é o domínio religioso-conservador na direção das oposições (que reestabeleceram novas oligarquias no domínio do poder do Estado) e a inexistência de organizações revolucionárias de massas capazes de questionar o fundamento desse poder de exploração e opressão sobre o povo.

As disputas em curso tanto no Iraque como na Síria estavam dentro de um jogo de interesses políticos e econômicos dos países centrais e de potências regionais (como Turquia e Irã). Há fortes disputas energéticas em torno do fornecimento de gás para a Europa. Por fim, há as disputas políticas pelo controle político do Norte África, Oriente Médio e Ásia Central.

Com isso, a instabilidade na região com a quedado governo ditatorial de Bashar Al-Assad pode gerar problemas para Israel, devido a ação dos grupos islâmicos fundamentalistas, e mesmo para o Irã, que procura estabelecer novas relações com as potências mundiais. Mas para China, Rússia, EUA e União Europeia surge a necessidade de manutenção do domínio político e econômico da região. O povo trabalhador da Síria estava nas mãos das potências do ocidente, da autocracia do Partido Baas Sírio e de setores islâmicos (como o ISIS), militares e burgueses nacionais, com apoio de movimentos socialistas colaboracionistas que compõem a oposição.

Porém, o controle por parte de organizações revolucionárias curdas do território ao norte da Síria denominado de Rojava, e dos combates militares em Kobane, anunciaram a entrada em cena de um novo sujeito social nos conflitos geopolíticos da região, as massas populares armadas.

A guerra em Kobane contra a invasão jihadista e a defesa da revolução social

YPG

A formação do território de Rojava e seus desafios políticos e estratégicos estão inexoravelmente relacionados a esse contexto regional e mundial. Os ataques à Kobane não começaram há três meses. Aproveitando a oportunidade aberta pela guerra civil síria, uma série de conflitos político-militares se desenvolveram na região, desde julho de 2012, até que as milícias de autodefesa popular curda, YPG – Unidades de Defesa Popular e YPJ – Unidade de Defesa das Mulheres (fração feminina do YPG), libertassem o território reconhecido como a parcela síria do Curdistão e organizassem uma nova política, economia e cultura.

Sobre as razões do início do conflito territorial, o Ministro da Autodefesa do Cantão de Kobane, İsmet Şêx Hesen, em uma entrevista, afirma que:

“(…) a batalha de Kobane está acontecendo há cerca de um ano e seis meses. Antes eram principalmente grupos como a frente Al-Nusra e Ahrar-i farsa e outros que estavam no ataque contra Kobane. Kobane foi cercada por um ano e meio. Kobane fora privada de suas necessidades básicas, como água, eletricidade e comércio. A batalha que hoje está chegando ao seu terceiro mês, é parte desta história. Eu não olho para os ataques ao Cantão de Kobane como uma batalha com o EI. Olhamos para o EI como um agente de uma parceria internacional. Este agente possui parceiros em diversas partes do mundo. Ele tem parceiros no Afeganistão, na China, na Arábia Saudita, no Sudão, na Turquia e em muitos outros lugares. Vários Estados diferentes têm a sua participação neste grupo. Por exemplo, eles receberam muito apoio de regiões como do regime Baath e da Turquia. Foi a partir daí que eles tiveram a coragem de atacar Kobane.” (Fonte:http://www.resistenciacurda.wordpress.com)

Portanto, segundo o ministro da autodefesa, o atual combate contra o Estado Islâmico deve ser entendido dentro de um contexto internacional onde vários grupos e Estados estão intervindo e buscando se beneficiar a partir do conflito.

Um dado importante deste conflito são as batalhas entre a própria oposição síria não jihadista pelo controle territorial do Curdistão sírio. O Exército Livre Sírio (FSA) alinhado ao imperialismo norte-americano, combateu Rojava durante três meses, sendo derrotado pela YPG no final de 2013, levando ao armistício e ao reconhecimento do território curdo pelo FSA. Portanto, além de serem atacados pelos jihadistas da frente Al-Nusra e do Partido Baas (de Assad), as milícias populares curdas tiveram de combater a chamada “oposição democrática” financiada pelos EUA.

A Turquia de Erdogan, com sua política islamista pró-ocidente, tem sido peça chave na estruturação política da região. Aliada do imperialismo norte-americano, o governo turco vem desenvolvendo a anos uma caçada contra o povo curdo e a luta do PKK e do Partido da União Democrática (PYD – Partido curdo atuante em solo sírio, aliado do PKK, e que dirige as milícias YPG-YPJ). A Turquia classifica, junto com os EUA e União Europeia, as organizações pela libertação curda de terroristas.

O papel que cumpre atualmente a Turquia neste conflito é extremamente importante. Rojava é um território que está hoje sendo atacada por um dos lados pelo ISIS e em sua retaguarda possui fronteira com a Turquia. Antes de iniciar este conflito entre as milícias curdas e o Estado Islâmico a fronteira Turquia-Síria já era um importante meio de passagem dos traficantes de armas, equipamentos e pessoal para os jihadistas, tudo isso com o apoio do islamismo “moderado” de Erdogan. Durante o início da guerra civil síria e com as grandes multidões de refugiados que se deslocavam para fugir da guerra, Erdogan tentou a tática da abertura das fronteiras para a pulverização étnica e superpopulação da região do Curdistão sírio. Táticas que fracassaram.

Com o início dos ataques do Estado Islâmico contra Kobane (um dos cantões de Rojava), a política da Turquia foi de fechar as fronteiras para o apoio, proibindo a passagem de pessoas e equipamentos para a resistência em Kobane. Enquanto isso as fronteiras turcas permanecem abertas para os assassinos jihadistas do ISIS. Essa política foi parcialmente burlada quando da passagem de centenas de pessoas entre sindicalistas, comunistas, anarquistas e pessoas solidárias em setembro de 2014. Além disso, por pressões diretas do presidente norte-americano Barack Obama, o primeiro ministro turco Erdogan teve que assumir algumas medidas da coalizão ocidental contrária ao ISIS, sendo que uma delas era permitir a passagem de combatentes do KRG e do FSA para apoiar a resistência em Kobane.

Desde o início do conflito em Kobane, a coalizão das potências imperialistas (Coalizão Internacional) que se propôs a combater o avanço do ISIS, não cumpriu esse papel quando isso significou apoiar diretamente o armamento do povo curdo organizado nas milícias YPG. A política da coalizão imperialista de não atuar por terra, apenas através de bombardeios e ataques aéreos, foi covarde e irrisória frente a tarefa de combater o avanço do exército jihadista fortemente armado e equipado.

Desde meados de outubro Obama pactuou com Erdogan, presidente da Turquia, para uma “mudança de orientação” que consistiria em uma atuação mais enérgica e pesada em apoio aos combatentes curdos de Kobane. No dia 20 de outubro de 2014, aviões dos Estados Unidos lançaram 28 contêineres contendo armamentos em um território controlado pelos curdos, apesar de 2 acabarem caindo em território controlado pelos jihadistas e um destes ter sido destruído pelas milícias curdas.

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Exército do Curdistão Iraquiano, apoiado pelo imperialismo

Um dia antes, dia 19 de outubro, havia sido lançado um comunicado pelo Comando Geral do YPG afirmando o acordo político-militar com o Exército Sírio Livre (FSA), o exército aliado dos EUA. Seguindo essa orientação, a Turquia libera a fronteira para a passagem de combatentes peshmergas (forças militares do Governo Regional do Curdistão – KRG, do Curdistão iraquiano). No entanto, como era de se esperar, a política fronteiriça da Turquia em relação a esquerda revolucionária, especialmente o PKK, continuou inalterada.

Portanto, entendamos o cenário da guerra em Kobane. De um lado do front combatem as forças aliadas do YPG, FSA e peshmergas, do outro lado combate o ISIS. Porém, dentro das forças aliadas de Kobane existem interesses em conflito geopolítico latentes. Tanto FSA como peshmergas são representantes regionais e militares da burguesia imperialista. A aliança destes setores na resistência de Kobane é cínica e oportunista, tal como o apoio dos EUA e da Turquia. As milícias populares curdas já se enfrentaram militarmente com todos esses agentes que hoje se dizem aliados contra o ISIS. E para a Turquia está claro: antes a vitória do terrorismo fundamentalista do que a vitória dos “terroristas” de Rojava. Para os EUA a situação não é diferente. Porém, tampouco o ISIS cumpre as demandas do imperialismo para o norte da África e Oriente Médio, especialmente no que tange a hegemonia e aliança com o Estado de Israel.

Nesse contexto o apoio da coalizão internacional e dos destacamentos militares do FSA e de peshmergas possui uma importância estratégica para a burguesia imperialista. Os Estados pretendem disputar a direção da resistência e reforçar suas posições nos territórios de Kobane para, em um curto prazo, acabar com as conquistas políticas e econômicas das massas populares de Rojava. Afinal, no território sírio liberado pelos curdos também existem grandes jazidas petrolíferas.  

Esse debate, sobre a guerra de defesa nacional, sempre esteve presente nas lutas do proletariado. Os trabalhadores se defrontaram com essa situação em diversos momentos, seja na guerra franco-prussiana de 1870-1871 (situação em que emergiu a rebelião operária-popular que construiu a Comuna de Paris), passando pela Revolução Russa de 1917 e a luta contra a invasão de mais de uma dezena de países estrangeiros em meio a I guerra mundial, ou durante a guerra civil espanhola onde a luta contra o fascismo tomou contornos internacionais que exigiu uma política de defesa nacional.

Frente a esses episódios cabe ressaltar aqui a experiência histórica, a política e a teoria dos anarquistas revolucionários: Mikhail Bakunin e a Aliança, a Makhnovitchina e o grupo Dielo Trouda, Jaime Balius e os Amigos de Durruti. Todos estes anarquistas defenderam uma via de independência política do proletariado como peça chave para o triunfo, não apenas da revolução mas também da guerra anti-imperialista, ou seja, defenderam a inseparabilidade das duas esferas (nacional e internacional) do conflito social. Segundo Bakunin em suas Cartas sobre a situação da guerra franco-prussiana:

“Não deve-se contar com a burguesia. (…) Os burgueses não veem, não compreendem nada fora do Estado, fora dos meios regulares do Estado. O máximo do seu ideal, de sua imaginação, de sua abnegação e do seu heroísmo, é a exageração revolucionária da potência e da ação do Estado, em nome da salvação pública. Mas já demonstrei suficientemente que o Estado nessa hora e nas circunstancias atuais – com os bismarckianos no exterior e os bonapartistas no interior -, longe de poder salvar a França, não pode mais do que derrota-la e matá-la.

O que unicamente pode salvar a França, em meio aos terríveis e mortais perigos exteriores e interiores que a ameaçam atualmente, é a sublevação espontânea, formidável, apaixonada, enérgica, anárquica, destrutiva e selvagem das massas populares em todo o território da França. Esteja convencido: fora disso não há salvação para vosso país.” (Bakunin, pág. 112-113)  

A elaboração teórica de Bakunin sobre as consequências da guerra de defesa nacional em um período de decadência e guinada contrarrevolucionária do liberalismo burguês, onde o principal interesse da burguesia é a manutenção do Estado e continuidade da exploração do trabalho, é clara e fundamental. A defesa do país colonizado ou vítima de invasão imperialista exige uma ação autônoma do proletariado. Essa ação autônoma, massificada, organizada em resistência popular armada (seja na forma de milícias ou exército revolucionário), para expressar verdadeiramente sua potencialidade e força social deve ser guiada não pelos ideais políticos do patriotismo e da grandeza do Estado que animaram a burguesia em um passado qualquer, e sim pelos ideais internacionalistas e pela construção prática do socialismo e da liberdade. A guerra anti-imperialista ou antifascista deve se tornar guerra revolucionária socialista. Apenas assim é possível vencer não apenas um fascismo/imperialismo particular, mas avançar resolutamente na luta universal pela emancipação do proletariado.

A partir dessa consideração teórica bakuninista existem algumas conclusões que podemos chegar para entender a guerra em Kobane. O apoio militar vindo das potências imperialistas, por maior que fosse (mas não foi), não possui qualquer relação com os interesses de libertação do povo curdo ou do Oriente Médio do jugo do autoritarismo e da exploração. Muito menos será esse apoio que irá garantir a vitória curda. O que os EUA, ou qualquer Estado capitalista, pretende com o combate ao Estado Islâmico é manejar a guerra civil síria aos seus interesses e remodelar a geopolítica do norte da África e Oriente Médio. Claro que é também um jogo perigoso para o imperialismo armar as milícias populares de Kobane caso não se consiga controlar ou neutralizar politicamente essa força revolucionária. Por isso a importância do FSA e do KRG como meio de disputa interna em defesa dos interesses da burguesia.

A luta de libertação curda: federalismo ou estatismo?

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“Não estando apegada a terra, a burguesia, tal como o capital da qual é hoje a encarnação real e viva, não têm pátria. Sua pátria está onde o capital lhe traga maiores lucros. Sua preocupação principal, para não dizer a única, é a exploração lucrativa do trabalho do proletariado. Desde o seu ponto de vista, quando essa exploração avança tranquila, tudo está perfeito, e, ao contrário, quando ela se interrompe, tudo está péssimo. Portanto, não pode ter outra ideia além de pôr em movimento, por qualquer meio possível, ainda que esse meio seja desonroso, signifique a decadência e a submissão de seu próprio país. E, no entanto, a burguesia possui necessidade da pátria política, do Estado, para garantir seus interesses exclusivos contra a exigências tão legítimas e cada vez mais ameaçadoras do proletariado.”

Mikhail Bakunin, Cartas, pg. 197.

Como dissemos no início deste comunicado, os Curdos experimentaram um longo processo de lutas. Excluídos das negociações e traídos pelo Tratado de Lausanne de 1923, depois de ter sido prometido um Estado próprio pelos aliados da I guerra mundial e com a partilha do Império Otomano. Os curdos ficaram divididos deste então nos Estados da Turquia, Iraque, Síria e Irã, sendo a maior minoria étnica sem-Estado, oprimidos por diversos Estados. Vale ressaltar que outros povos também compartilham com os curdos a opressão étnica e nacional destes Estados.

Segundo Abdullah Ocallan o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) foi fundado em 1978 na Turquia sob a orientação teórico-política do marxismo-leninismo. O PKK é até hoje a principal organização em defesa dos curdos na região. A defesa durante a década de 70 e 80 da URSS e da linha comunista internacional para os países semifeudais e semicoloniais se dava dentro do contexto da guerra fria e da bipolaridade mundial. O início da luta armada, através da guerra de guerrilhas, ocorre em 1984 e tem como objetivo estratégico a defesa da libertação nacional, através da formação de um Estado curdo independente. Posteriormente, com o fim da URSS, o PKK se aproxima do maoísmo internacional.

A formação do PKK se deu em um período de identificação étnica específica durante a década de 70, orientada especialmente por um novo movimento estudantil com ideias esquerdista. Esse jovem movimento foi atacado desde o seu início não apenas pelo Estado Turco mas também pelas aristocracias curdas, que se sentiram ameaçadas pela nova identidade étnica curda de matriz popular que questionava a identidade étnica “tradicional” feudal defendida por essa aristocracia.

freedom_fighters_ypg_pkk_kurdistan_by_doganerol1-d8ek7r8Durante a guerra de 1991 no Iraque, houve uma modificação importante na luta de libertação nacional dos curdos. Os Estados Unidos apoiaram a formação de um governo curdo iraquiano governado por essa aristocracia curda aburguesada e pró-imperialista. Esse apoio dos EUA desde a década de 90 irá resultar no que hoje é o Governo Regional do Curdistão (KRG), localizado ao norte do Iraque. Como já afirmamos, o KRG é governado por três partidos da direita curda, através de eleições parlamentares, e mantêm em seu território imensas jazidas de petróleo sendo exploradas por multinacionais. O Curdistão Iraquiano é divulgado na imprensa ocidental como um “civilizado, moderno e democrático”. O antagonismo com a política do PKK é evidente, chegando a levar a conflitos diretos entre estas forças políticas.

Porém, a alguns anos atrás, uma mudança importante também ocorre no movimento de libertação curda. Com a prisão do fundador e líder do PKK, Abdullah Öcalan, momento em que este foi condenado a morte pelo Estado turco pelo crime de traição (posteriormente modificada para prisão perpétua), este passa a operar um processo de autocrítica em relação às concepções gerais com que vinham desenvolvendo a luta de libertação nacional curda. É nesse processo em que desenvolve sua tese do Confederalismo Democrático.

O Confederalismo Democrático se baseia no autogoverno das massas, através de organismos descentralizados de base e que se unificam de baixo para cima, formando os organismos centrais. A autonomia e a igualdade de direitos entre diferentes povos e coletividades étnico-culturais é complementada com a liberdade religiosa e a igualdade de gênero. Acima de tudo tais igualdades de direitos e de fato (com órgãos e espaços concretos para exercício do poder popular) tem se mostrado muito mais avançados e reais neste rincão do Oriente Médio do que em qualquer carta constitucional, tão bonita quanto inútil e farsante, dos países ocidentais e “liberais”.

Essa nova linha político-estratégica do PKK e do movimento de libertação nacional curda é acima de tudo uma autocrítica da linha estatista e industrialista do marxismo internacional, em que o modelo clássico de lutas de libertação nacional confluem para a formação de um Estado-nação forte e independente, visando o desenvolvimento industrial e econômico em termos capitalistas, como etapa prévia ao socialismo. Ocorre que o destino histórico das “democracias populares” e das revoluções democrático-burguesas ao longo do século XX, apesar de importantes escolas do proletariado internacional, desenvolveram-se para a restauração da exploração das massas trabalhadores por novas classes dominantes e burocracias. O proletariado que participou ativamente, e até mesmo dirigiu essas revoluções no século XX, experimentou êxitos grandiosos (Vietnã, China, Nicarágua, etc.) e, também por isso, derrotas históricas. 

A defesa de um revolução politicamente federalista, culturalmente feminista e multiétnica, deve ser complementada necessariamente por um programa econômico de socialização dos meios de produção-distribuição-consumo sob o controle das massas trabalhadoras. Essa revolução social não possui etapas mecanicamente determinadas pela ação do Estado/partido, de cima para baixo. Muito menos deve cumprir primeiramente uma etapa nacional-estatal e industrial para após isso se tornar internacionalista e socialista. Ai reside toda a importância histórica da experiência de Rojava e o potencial revolucionário desta luta, ou seja, a possibilidade de apontar um norte não para a formação de um Estado-nação curdo, mas para superar o modelo estatista de autodeterminação dos povos e assim se vincular à luta revolucionária internacional.

O “cessar fogo” com o Estado da Turquia, há cerca de dois anos, e a defesa do fortalecimento de territórios autônomos e liberados é fruto desta nova linha política do PKK. Ao que tudo indica, pelos acontecimentos de Rojava, isso não significa a adoção de uma linha pacifista ou democrático-burguesa. Tanto é que esse cessar fogo foi recentemente quebrado pelo governo da Turquia em um ataque a bases do PKK no dia 14 de outubro de 2014. Porém, deve-se analisar o desenvolvimento dos acontecimentos, as políticas de alianças, etc. afinal de contas, tampouco a revolução em Rojava está isenta de contradições e disputas.

É importante observar que esta não foi a primeira ruptura de linha ou revisão do marxismo em direção ao federalismo no contexto de lutas anti-coloniais. No final do século XX, os grupos guevaristas do México fizeram também uma revisão de linha, se adequando às condições de vida e luta dos povos sem-estado do sul do México, e desse processo nasceu o moderno zapatismo, com o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Similarmente aos curdos, os povos indígenas do Sul do México, colonizados e oprimidos por diversos Estados, geraram uma nova prática de luta e liberação territorial. Outro exemplo modelar foi o da Comuna de Paris, em que os republicanos estatistas abdicaram de sua política em favor de uma política federalista, possibilitando assim o surgimento de um novo modelo Anti-Estatista de revolução.

O debate e a luta de tendências no seio da “esquerda” e do anarquismo internacional

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Desde o início da guerra em Kobane contra o ISIS diversas organizações no mundo inteiro (comunistas, socialdemocratas e anarquistas) tem se posicionado sob diferentes pontos de vista. A omissão também foi um tipo de posicionamento, em geral covarde. Um posicionamento militante, que se desenvolve em solidariedade internacionalista, possui uma grande importância, e isso porque as revoltas e revoluções possuem causas e efeitos que extrapolam as localidades geográficas onde elas acontecem. Devemos entender que a luta pela revolução social em Rojava faz parte da longa marcha de aprendizagens e avanços da classe trabalhadora, sendo dever de uma organização revolucionária atuar decididamente em sua defesa e pela sua vitória.

A omissão e/ou negligência da esquerda internacional frente a guerra revolucionária em Rojava diz respeito especialmente ao posicionamento pró-aliança com as burguesias de stalinistas, trotskistas e socialdemocratas. Eles fazem tal como a imprensa burguesa internacional e os governos, fingem desconhecer o processo e tratam de isolar e menosprezar a luta do povo curdo. Isso ocorre em parte pelo simples fato de não estarem na “direção” ou em qualquer posto de combate da luta popular na região. Incapazes de tomar parte na luta e disputar sua direção (por conta de suas tradições e métodos reformistas que não se aplicam a esta realidade) “acusam” o PKK de ser stalinista e caem no mais puro idealismo, tornam seu julgamento político-moral como mais importante do que a análise do processo real e suas contradições. Porém, essa omissão e secundarização é apenas uma face cínica dessa esquerda burocrática e reformista.

O debate internacional em torno da guerra em Kobane apresentou pelo menos duas vertentes errôneas de interpretação. A primeira delas é o posicionamento de alguns partidos e organizações que há algum tempo vem saudando a chamada “oposição síria” do Conselho Nacional de Transição (CNT) e do Exército Sírio Livre (FSA) e não por acaso passaram a se pronunciar mais decisivamente em defesa da luta em Kobane após a unidade das milícias YPG com o FSA. Segundo o PSTU (seção brasileira da LIT-QI): “(…) a unidade político-militar entre os combatentes curdos e os rebeldes sírios árabes não só é progressista como, em nossa opinião uma condição para a vitória, tanto no terreno da luta para derrubar a ditadura de Al Assad como para avançar rumo a um Estado independente de toda a nação curda.”. Essa posição não é apenas defendida pelo PSTU, mas também por correntes do PSOL e outros partidos reformistas brasileiros e europeus. Apresentando-se sob o rótulo de “progressista” revela-se na prática das disputas geopolíticas um apêndice da política burguesa pró-imperialista.

Além disso, a posição trotskista revela dois elementos que estão em jogo na resistência de Kobane: 1) a formação de um Estado-nação (e o discurso pan-curdo), ou seja, a união de todo o povo curdo sob o poder centralizado do Estado; 2) a submissão à política norte-americana para o Oriente Médio. Isso significaria a submissão do processo revolucionário em Rojava pela aliança com a burguesia curda pró-imperialista, no Curdistão Iraquiano. Essa é a velha política marxista e reformista, e nesse caso entra em perfeita consonância com os interesses imperialistas para a região.

O anarquista russo Bakunin, quando combateu na França contra a invasão prussiana em 1870-1871, já havia se posicionado em relação a política de setores de “esquerda” que apoiaram a direção política da burguesia republicana, tudo isso em nome da unidade e da força nacional. Bakunin fala sobre a esquerda radical republicana:

“E a esquerda contestou? Não fez absolutamente nada. Aclamou estupidamente esse ministério agourento que, no momento mais terrível que França podia ter passado, se apresentou a ela, não como um ministério político, senão como um ministério de defesa nacional. (…) A esquerda radical acreditou ou pareceu acreditar que se podia organizar a defesa do país sem fazer política, que se podia criar uma potência material sem a inspirar por nenhuma ideia, sem a apoiar por nenhuma força moral. (…).

Por patriotismo e por temor a paralisar os esforços sobre-humanos para a salvação da França destes digníssimos homens, a esquerda radical se absteve de toda recriminação e de toda crítica. Gambeta acreditou ser seu dever dirigir comprimentos calorosos e expressar sua plena confiança no general Palikao. Afinal, não tinham que “manter a qualquer preço a união e impedir funestas divisões que apenas beneficiariam os prussianos”? Tais foram a desculpa e o argumento principal da esquerda, que se serviu deles para mascarar todas suas imbecilidades, todas as suas debilidades, todas as suas covardias.” (Bakunin, Cartas, pág. 200)

A segunda forma errônea de linha política para Kobane foi apresentada por grupos anarcossindicalistas no texto “Rojava: uma perspectiva anarcossindicalista”. Após esse texto algumas respostas e réplicas foram feitas, dentre elas destacamos o texto escrito pela organização Ação Anarquista Revolucionária (DAF), da Turquia, chamado “Uma resposta para ‘Rojava: uma perspectiva anarcossindicalista’”.

O texto anarcossindicalista se baseia em informações parciais e uma concepção sectária em relação à luta de libertação curda. As acusações de que o PKK seja patriarcal, centralista, nacionalista, dentre outras, são mais baseadas na história desse partido e em falsificações do que na atualidade e na potencialidade da luta travada em Rojava. Confundem então uma organização com o conjunto diversificado dos grupos sociais em luta, da classe. Afora esse fato, o sectarismo da posição dos anarcossindicalistas, condenando a participação anarquista na luta pela autodeterminação dos povos expressa um desvio estratégico, programático e teórico. O mais contraditório é que muitos desses grupos “apoiaram” o Zapatismo quando este estava na “moda” nos anos 1990, sendo que as mesmas críticas direcionadas à resistência curda poderiam ser direcionadas ao Zapatismo.

Para os revolucionários, não interessa a priori se o partido a frente de um processo de luta é socialdemocrata, maoísta ou nacionalista, ou mesmo que não haja direção orgânica da luta. Para os anarquistas revolucionários, que defendem o materialismo e a dialética como método de análise, o que importa é o caráter concreto da luta que o povo está travando, se é justa ou injusta para os interesses da revolução social. Nunca a organização anarquista deve abdicar seus princípios ideológicos, teóricos e estratégicos. Isso, ao contrário da abstenção “purista”, implica a participação e disputa interna dentro do movimento de massas, compreendendo as particularidades de cada tendência e partido, sua história e sua atualidade.

Os anarquistas participam das lutas das massas trabalhadoras para fortalecer e orientar os aspectos positivos, e combater os desvios e deturpações burocráticas e burguesas, seja combatendo partidos, organizações militares ou setores das próprias massas populares.

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Ação Anarquista Revolucionária (DAF), organização da Turquia.

Da mesma forma que uma luta pode ser justa mesmo dirigida por um setor atrasado, também é correto afirmar que essa direção (caso persista) terá implicações diretas para a vitória ou derrota da luta, e que, portanto, é tarefa dos revolucionários a disputa e reorganização para que as massas superem esta direção. Como já dissemos em outros documentos, o papel da organização anarquista é de iniciador-dirigente, ou seja, tornar-se vanguarda das massas em luta, isso significa atuar como amigo do povo, e acima de tudo não se afastar das massas, nem fugir das contradições.

O conceito de minoria ativa surgiu historicamente, para expressar esse posicionamento. Como as forças políticas orientadas pelo princípio de autoridade tendem a ser, a princípio, as direções e hegemônicas nas organizações, os anarquistas devem atuar como minoria ativa dentro do movimento, apontando os erros e contradições desses setores. Isso é válido para diversas situações. Ou seja, atuar junto à classe, suas lutas, como organização autônoma minoritária.

O purismo e o sectarismo são uma grande armadilha. Leva uma organização ou indivíduo a não compreender o terreno no qual se luta, pois este é indiferente para ele e as suas “fórmulas” fechadas e únicas. Existe acima de tudo um sectarismo e purismo reformista, típico das esquerdas parlamentares ocidentais (mas que atinge também os setores revisionistas do anarquismo), que desconhecendo e menosprezando as condições de luta na periferia do capitalismo preferem o caminho mais cômodo da “condenação moral”. Mas devemos observa que os mesmos anarcosindicalistas não fazem nenhuma autocrítica da capitulação do anarcossindicalismo à Frente Popular nacionalista, política que ainda continua em vigor na Europa, com a acomodação de diversas organizações ao capitalismo. O mesmo acontece com relação à ideologia pós-moderna, onde grande parte do anacrosindicalismo capitulou ao eurocentrismo e racismo do feminismo burguês-imperial.

Aos anarquistas revolucionários não cabe a mera contemplação, deve-se compreender as condições da luta de classes em cada realidade (compreendendo também o que há de universal em cada realidade particular) para precisamente tomar parte na luta pela vitória do proletariado, independente das dificuldades a serem enfrentadas.

Tanto a via reformista como a via sectária e purista se completam para derrotar a libertação curda antes mesmo que ela aconteça. Uma reforça o setor burguês e pró-imperialista e a outra reforça a apatia, a indiferença e o sectarismo dos setores revolucionários, os únicos que podem fazer avançar a luta em Rojava.

Para as atuais condições da luta no Curdistão ou em qualquer parte do mundo os anarquistas não devem abdicar de sua organização, seja em prol da direção do PKK ou de qualquer perspectiva nacionalista ou estatal-burguesa. Ainda que se lute conjuntamente com maoístas, nacionalistas e outros setores que estejam apoiando a revolução de Rojava contra a invasão reacionária, é fundamental construir e fortalecer a organização anarquista revolucionária como meio de aprofundar o processo anti-estatista e socialista e combater os setores burocráticos e colaboracionistas.

A libertação da mulher está na ponta do fuzil e ao lado do povo

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“A resistência em Kobane está sendo dirigida por mulheres que ao mesmo tempo que combatem o ISIS, destroem valores machistas e favorecem uma atitude libertária para com as mulheres para que possamos ocupar um lugar numa nova sociedade.”

Comandante Meryem Kobane

Um dos fatores que deu grande repercussão à resistência curda em Kobane foi a participação ativa e o papel dirigente e destemido das mulheres em todas as frentes de luta. Apesar de haverem sido divulgadas nas mídias de massa ocidentais quase unicamente um fator superficial e estético (por vezes atendendo ao imaginário machista com a imagem de mulheres armadas), e apesar das acusações de patriarcalismo por parte de setores sectários do anarquismo, apesar disso, um amplo movimento feminino tem se formado e avançado no Curdistão.

O fato é que as mulheres em armas possuem um novo patamar de diálogo na construção da nova sociedade. Assim foi na Comuna de Paris de 1871, assim foi na guerra civil espanhol de 1936, assim foi em outras experiências proletárias em que as mulheres tiveram participação decisiva. A potencialidade de luta das mulheres sempre foi alvo de preconceito, até mesmo nas fileiras socialistas e revolucionárias. Porém, a experiência histórica é uma escola para o povo e a exigência pelos direitos das mulheres nunca esteve longe das necessidades da revolução. Portanto, apesar da importância central da ação feminina em Rojava, não podemos nos esquecer que as mulheres sempre estiveram presentes nas mais diversas lutas, armadas ou não, pelo mundo afora.

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O YPJ, ala feminina da milícias YPG, que reúne hoje mais de 8.000 milicianas, expressa uma questão central em torno da libertação da mulher: a luta pela libertação da mulher não está desvinculada da luta pela emancipação da classe trabalhadora como um todo. Essa questão se expressa de forma muito clara no caso de Kobane, mas não deixa de estar presente como dilema universal da luta das mulheres. Caso os homens e mulheres de Kobane vençam a guerra e a revolução contra a opressão do capitalismo e do jihadismo, as conquistas feministas se garantem e aprofundam; caso contrário a escravidão sexual, o feminicídio e demais formas de repressão brutal contra as mulheres coroarão um retrocesso sem precedentes. Portanto, a revolução social e a libertação das mulheres possuem uma relação de potencialização: sem a vitória de todo o povo, e com isso a transformação das bases sociais, a libertação das mulheres é impossível, sem uma base societária e organizativa feminista é impossível avançar nas tarefas da revolução.

Nas palavras de Agiri Yılmaz, uma combatente do YPG:

“Na mentalidade do Estado Islâmico as mulheres são deficientes. Elas não podem lutar. No entanto, quando se ouvem os gritos e chamadas das mulheres do YPJ, eles deixam suas posições e suas armas e fogem. Eles estão com medo de lutar contra mulheres. Eles dizem a si mesmos ‘deixe-me morrer lutando contra um homem, mas não contra uma mulher.’ Isso é oriundo de sua concepção de que as mulheres não podem fazer nada. Mas a nossa concepção é de que as mulheres organizadas gerenciam a si mesmas e se organizam.” (Fonte: http://www.resistenciacurda.wordpress.com)

A luta das mulheres curdas, porém, não significa apenas um perigo ao fundamentalismo religioso. A luta destas mulheres é um grande perigo para a concepção liberal-burguesa sobre o papel da mulher e da “libertação feminina”. O central para compreender esse conflito é a questão do poder.

A política do “empoderamento” na sociedade capitalista pela chegada seletiva de mulheres a cargos de poder e repressão (empresárias, governantes, policiais, seguranças, etc.) é uma política contrarrevolucionária. Esse “empoderamento” da mulher é falso, tão falso quanto as possibilidades de igualdade pela ascensão social de pessoas pobres, pois está circunscrito a uma estrutura societária desigual. O discurso do empoderamento burguês possui como fim a integração sistêmica das burocracias e personalidades femininas e a paralisação do potencial revolucionário das amplas massas femininas.

O “empoderamento” para o feminismo proletário significa o fortalecimento dos órgãos de poder popular (sindicatos, conselhos/soviets, movimento estudantil, assembleias populares, etc.) e ao mesmo tempo o fortalecimento da participação e direção das mulheres nessas organizações. O poder popular, democrático, federalista e socialista, é o único que pode garantir plenamente os direitos políticos, econômicos e culturais para as mulheres trabalhadoras. Mas esse poder é um novo poder, que só pode florescer e triunfar (tal como demonstra Kobane) sobre os escombros do velho poder burguês ou fundamentalista e dos sonhos mesquinhos do “empoderamento” do feminismo-liberal.

Por uma Tendência Classista e Internacionalista!

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Existem contradições nos processos revolucionários, no Curdo e no processo revolucionário em geral? Sim. As contradições foram apontadas nesse texto. Mas a solução não está nem no apoio aos projetos estatistas burgueses de independência, nem na fria ausência de solidariedade internacional de um reformismo libertário sectário. Está na organização dos anarquistas revolucionários para atuarem nos processos revolucionários e colocar seu projeto em prática. É por isso que chamamos a construção de uma Tendência Classista e Internacionalista (TCI), que possa conjugar as tarefas de organização popular e resistência local com a solidariedade militante internacionalista. A tarefa no atual momento é atuar no sentido de reorganizar uma alternativa sindicalista revolucionária, apontando novos horizontes de ação e organização para a classe trabalhadora diante da atual crise internacional e radicalização da luta de classes.

Liberdade ao Povo Curdo!

Morte ao Imperialismo e ao Estado Islâmico!

Vitória as milícias de autodefesa popular!

Pelo Socialismo e Autogoverno das massas!

Avante o Anarquismo Revolucionário!

***

Para ler em PDF: Comunicado nº44

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A municipalização da economia

23 terça-feira jun 2015

Posted by litatah in Anarco Feminismo, Anarco-Comunismo, Anarquia, Anarquia Verde, Anti Capitalismo, Anti Consumismo, Anti Fascismo, Anti Homofobia, Anti Machismo, Anti Misoginia, Anti Transfobia, Antirracismo, Aquecimento global - Mudanças climáticas, Curdistão/Kobane, Economia, Experiências anarquistas, Feminismo e Transfeminismo, Feminismo intersecional, História, Janet Biehl, Municipalismo Libertário, Murray Bookchin, Organização de base, Periferias e Favelas, Prática, Propostas, Teoria

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Publicado em 01 de abril de 2015 por Janet Biehl em Ecology or Catastrophe – (http://www.biehlonbookchin.com/municipalization-economy/)

Fonte: NEWROZ EUSKAL KURDU ELKARTEA

guiopÀ medida que continua a revolução de Rojava, a natureza de sua economia tem sido muito discutida. Como escrevi anteriormente, Rojava aspira a uma economia baseada no sistema de cooperativas. Nas últimas semanas, várias pessoas têm me interrogado a cerca das ideias de Murray Bookchin sobre a economia: Quais são os aspectos econômicos do municipalismo libertário? Criei um resumo de seu pensamento, sobre a base dos recursos enumerados ao final deste artigo. – Janet Biehl

Em uma economia capitalista, os meios de produção, a indústria, assim como a terra, as matérias primas e os produtos elaborados, em resumo, a riqueza financeira, se concentram em mãos privadas. A alternativa a isto é uma economia social, em que a propriedade dos bens, no todo ou em parte, passa à sociedade como um todo. A intenção é criar uma sociedade alternativa que ponha a vida econômica diretamente nas mãos dos homens e mulheres que estão vitalmente envolvidos no referido sistema social. O dito sistema alternativo seria um que possui o desejo e a capacidade de reduzir ou eliminar os benefícios de uma elite social e que construa instituições em favor dos valores humanos. Como assinalou Murray Bookchin, uma economia social pode tomar varias formas.

Cooperativas

As cooperativas são empresas em pequena escala, de propriedade coletiva e operadas pelo coletivo. Podem constituir-se como cooperativas de produtores ou como empresas autogestionadas que por sua vez estão coletivizadas. Esta estrutura é defendida pelos anarcossindicalistas. Suas estruturas internas de partilha favorecem a participação da sociedade em geral. Na década de 1970, muitos radicais americanos formaram cooperativas, as quais esperavam constituir uma alternativa às grandes corporações e, em última instância, substituí-las. Bookchin deu as boas vindas a esse desenvolvimento, mas à medida que a década avançava se deu conta de que cada vez mais essas unidades econômicas, antes radicais, foram absorvidas pela economia capitalista. Enquanto as estruturas internas das cooperativas se mantiveram admiravelmente, pensou que no mercado se converteriam simplesmente em outro tipo de pequena empresa com seus próprios interesses particulares, competindo com outras empresas, incluindo outras cooperativas.

De fato, durante dois séculos as cooperativas foram, com frequência, obrigadas a ajustar-se aos ditames do mercado, independentemente das intenções de seus promotores e fundadores. Em primeiro lugar, uma cooperativa se enreda na rede de trocas e contratos típicos. Logo descobre que seus rivais comerciais estão oferecendo os mesmos produtos, mas a preços mais baixos. Como qualquer empresa, a cooperativa pretende permanecer e está obrigada a competir baixando seus preços para ganhar clientes, ou não os perder. Uma maneira de baixar os preços é crescer em tamanho, com o fim de beneficiar-se das economias de escala. Assim, o crescimento se faz necessário para a cooperativa, quer dizer, deve “expandir-se ou morrer”. Inclusive uma cooperativa muito motivada com seus ideais teria que mal vender seus produtos para não ser absorvida por seus competidores ou fechar as portas. Significa, então, que teria que buscar benefícios para poder subsistir a custa de valores humanos. Os imperativos da competência transformariam rapidamente a cooperativa até convertê-la em uma empresa de corte capitalista, ainda que continue sendo uma propriedade coletiva e social. Mesmo sendo a cooperação uma parte necessária de uma economia alternativa, as cooperativas por si mesmas são insuficientes para questionar o sistema capitalista.

Com efeito, Bookchin argumenta que qualquer unidade econômica de propriedade privada, seja gestionada de forma cooperativa ou por executivos da mesma, seja dos trabalhadores ou de seus acionistas, é suscetível de ser assimilada, queiram ou não seus membros. Enquanto existir o capitalismo, a competência sempre exigirá que as empresas busquem menores custos (incluindo de mão de obra), mais mercados e vantagens sobre seus rivais com o fim de maximizar seus benefícios, posto que tendem cada vez mais a valorizar os seres humanos por seu nível de produtividade e consumo, sobre qualquer outro nível.

Propriedade pública

Uma economia alternativa socializada seria uma em que a busca por benefícios para uma elite deveria estar restringida ou eliminada. Dado que as unidades econômicas são incapazes de conter sua própria ganância de dentro, devem ser submetidas a restrições de fora. As unidades econômicas deveriam estar integradas a uma comunidade maior que tem o poder não só para frear a busca de uma empresa com fins de lucro, mas também para controlar a vida econômica em geral. Contudo os imperativos expansionistas do capitalismo sempre trataram de anular os controles externos. O Estado-nação expropria a propriedade privada e se converte em seu proprietário. A propriedade estatal, no entanto, conduziu em numerosas ocasiões à tirania, à má gestão e à corrupção, a tudo exceto a uma economia cooperativa. O conceito de “propriedade pública” implica que a propriedade é das pessoas, mas a propriedade estatal não é pública porque o Estado é uma estrutura de elite dirigida por pessoas pertencentes a uma elite estatal. A nacionalização da propriedade privada não dá às pessoas o controle sobre sua vida econômica; não faz mais do que reforçar o poder do Estado com o poder econômico. Vemos um exemplo no Estado soviético que se encarregou dos meios de produção e os utilizou para aumentar o seu poder, porém deixou as estruturas hierárquicas de autoridade intactas. A maior parte da população tinha pouco ou nada a ver com a tomada de decisão sobre sua vida econômica.

Municipalismo

Isso foi o que precisamente Bookchin propôs como alternativa: uma forma de propriedade pública. A economia não é de propriedade privada, nem se rompe em pequenos coletivos nem se nacionaliza, pelo contrário, situa-se a nível municipal, sob a propriedade e controle comunitário. A municipalização da economia significa que a propriedade e a gestão da economia passam a ser dos cidadãos. As propriedades seriam expropriadas das classes possuidoras por meio de assembleias e confederações atuando como um poder dual em benefício de todos os cidadãos. Os cidadãos se converteriam nos “donos” coletivos dos recursos econômicos de sua comunidade e teriam que reformular e aprovar as políticas econômicas adequadas para ela. Eles tomariam decisões acerca da vida econômica, independente de sua ocupação ou seu lugar de trabalho. Os que trabalham em uma fábrica poderiam participar na formulação de políticas não só para a fábrica em que trabalham, mas também para o resto das fábricas e fazendas produtivas. Eles participariam nesta tomada de decisões não como trabalhadores, agricultores, técnicos, engenheiros ou profissionais, sim como cidadãos. Sua tomada de decisões não seria guiada pelas necessidades de uma empresa, profissão ou trabalho específico, sim pelas necessidades da comunidade como um todo.

As assembleias determinariam racional e moralmente cada nível de necessidade. Elas distribuiriam os meios materiais para a vida com o fim de cumprir com a máxima dos primeiros movimentos comunais: “De cada um segundo a sua capacidade e a cada um segundo a sua necessidade”. Assim todos os cidadãos que constituem a comunidade terão acesso aos meios de vida, independente do trabalho que sejam capazes de realizar.

Por outro lado, Bookchin descreveu como as assembleias cidadãs assegurariam que as empresas individuais não competissem entre si; entretanto seria necessário que todas as entidades econômicas aderissem aos preceitos éticos de cooperação e intercâmbio. Sobre as áreas geográficas mais amplas, as assembleias tomariam decisões de política econômica por meio de suas confederações. A riqueza expropriada das classes possuidoras se distribuiria não só dentro do município, mas entre todos os municípios da região. Se um município tentasse crescer a custa dos demais, seus aliados teriam o direito de impedir que o fizesse. Como Bookchin explicou, em uma economia municipalizada, “a economia deixa de ser meramente uma economia no sentido estrito da palavra, como ‘negócio’, ‘mercado’, ‘empresas controladas pelos trabalhadores’, e se torna uma verdadeira economia política”. A economia da polis ou da comuna “se converteria em economia moral, guiada por normas racionais e ecológicas”. Uma ética da responsabilidade pública evitaria uma aquisição esbanjadora, exclusiva e irresponsável dos bens, assim como a destruição ecológica e a violação dos direitos humanos. De fato, a comunidade valorizaria as pessoas não por sua capacidade de produção e consumo, mas por sua contribuição positiva à vida comunitária.

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Municipalismo libertário, ecologia social e resistências

23 terça-feira jun 2015

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Por Acácio Augusto

Fonte: Academia.edu

 

O artigo discute as formulações de Murray Bookchin diante do crescente investimento político em torno da questão da ecológica. O objetivo é abrir uma conversação acerca das reduzidas, efêmeras e intermitentes práticas de resistência numa era em que os controles biopolíticos vêm cedendo espaço para conformação de controles da vida do planeta como ecopolítica. Como se movem as resistências diante dessas novas  conformações das práticas de governo e das próprias resistências?

Leia na íntegra aqui

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Nossos sonhos não cabem em suas Urbes

11 quinta-feira jun 2015

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Por Agropunk e AltDelCtrl

«A cidade se apresenta
centro das ambições
para mendigos ou ricos
e outras armações.
Coletivos, automóveis,
motos e metrôs,
trabalhadores, patrões,
policiais, camelôs.»

(Chico Science & Nação Zumbi, A Cidade.)

Fonte: Protopia


Nos dias de hoje, a maior parte da humanidade faz das cidades, especialmente as grandes metrópoles, o centro “natural” de suas vidas,[1] da mesma forma que considera “naturais” as sociedades divididas em classes e toma por “natural” a divisão do mundo entre espaços urbanos e rurais. Muitas pessoas acreditam que as urbes são por excelência espaços da cultura, da técnica e da política, enquanto o meio rural representa atraso, a ausência de civilidade; como um celeiro, um lugar pleno de recursos e minimamente povoado. Nessa lógica, viver em áreas ruais é considerado falta de oportunidades de vida e, portanto, alcançar uma vida melhor passa necessariamente por ir para a cidade.

Hegemônico, tal entendimento não se dá apenas entre os habitantes das cidades, mas também entre as populações dos próprios espaços rurais. Não é raro que estes últimos assumam para si a posição de inferioridade em relação àqueles que vivem nos meios urbanos, menosprezando a sabedoria ligada a conhecimentos tradicionais. Fundamental ao modo de ser das atuais sociedades de classe, esta visão de mundo pode ser chamada “urbanocentrismo”.


Origens

Ainda que a vida nas cidades se mostre tão antiga quanto as primeiras “civilizações”, a divisão dos espaços entre áreas urbanas e rurais não fez parte do entendimento dos povos por incontáveis gerações. Profundamente relacionados com as mais diversas paisagens e territórios, possuindo amplo conhecimento em relação a eles, muitos povos surgiram e desapareceram alheios a esta classificação e ordenamento do espaço que para todos efeitos é recente, datado da era moderna, de origem européia.

Mesmo o significado do termo “cidade” vem sendo tomado enquanto generalização para todos os tipos de aglomerados humanos mais ou menos permanentes, de extensão ampla e densamente povoado, se comparados com o contexto em que se encontram. As mais antigas cidades conhecidas foram fundadas na chamada “idade do ferro pré-histórica”. Grandes ruínas e resquícios em pedra e argila, assim como textos da antiguidade, comprovam a existência destas sociedades citadinas em locais hojes cobertos por desertos e selvas.[2]

As cidades surgiram em muitos contextos históricos, apoiadas em duas formas de opressão correlacionadas: a escravidão pela guerra e a posse exclusiva e permanente da terra. Os primeiros povoados sedentários, muito anteriores às cidades, surgiram como uma provável vantagem estratégica, uma inovação que uns poucos povos recorreram com a meta de garantir o monopólio sobre locais. Surgiram em locais onde potencialmente existiam recursos alimentícios e matérias primas para ferramentas, ou ainda vias importantes entre pontos de estadia e espaços considerados sagrados.[3]

Como consequência lógica destes pequenos monopólios, outros grupos, geralmente não-sedentários, que antes partilhavam do mesmo território e se utilizavam dos mesmos recursos, foram permanentemente privados destes recursos. Esta privação provavelmente intensificou a ocorrência de guerras por territórios, com fortificações sendo construídas e aperfeiçoadas para os povos em guerra e seus povoados permanentes pudessem existir e prevalecer.

Via de regra, escravos de guerra tornaram-se a mão de obra explorada na construção das antigas civilizações, e em menor medida somaram-se a eles os escravos por dívida.[4] Esta correlação de sujeição entre povos diferentes é uma das mais prováveis origens da desigualdade entre castas e estamentos, e um importante precedente deste processo que nos últimos séculos deu forma às sociedades divididas em classes. E esta divisão é inerente ao processo de construção da vida em cidades.

O que genericamente denominamos “cidade” na antiguidade e entre sociedades não-ocidentais foi chamado de formas distintas, conforme sua organização sociopolítica. Na contemporaneidade, o termo “cidade” abrange tanto o que os gregos antigos chamavam de “pólis”, quanto o que etruscos e romanos denominavam “urbe” e “civitas”. No entanto, estes termos se referem a contruções distintas, o que evidencia a transformação e a manipulação dos termos de acordo a certos interesses históricos. Enquanto a “pólis” grega, ainda que baseada na premissa do trabalho escravo, era o espaço de existência e exercício de autonomia de uma coletividade, a “civitas” etrusca fazia menção à liga de fratrias e estruturas familiares que possuíam em comum o culto a antepassados e ao lar. Para os etruscos “urbe” era o nome dado aos espaços físicos rituais em que se realizavam conciliábulos e importantes reuniões, e onde se mantinha o fogo sagrado de um “civitas”.

Os romanos não apenas herdaram esta terminologia etrusca, como também lhe conferiram novos significados. No entendimento romano “urbe” inicialmente foi o nome dado ao espaço intermuros da cidade de Roma. Posteriormente “urbe” passou a designar todo aglomerado humano e seu suporte material, construído ou dominado pelos romanos. “Civitas” entre os romanos era um conjunto heterogêneo de civis (romanos e romanizados) com posses e escravos reunidos e estabelecidos em determinado espaço. As palavras “civilização”, “civil”, “cidade”, “cidadão”, “urbe” e “urbano” são evidências linguísticas da amplitude do legado romano nas atuais sociedades européias e ocidentais.

Os romanos possuíam ainda um outro termo em sua classificação socioespacial: “Ager” é geralmente traduzido como “terra” ou “rural”. Mas diferente do termo “rural” da atualidade, ao “ager” não se contrapõe a “urbes” e “civitas”, mas as contém. “Ager públicus” era o nome dado à totalidade das terras tomadas das populações dominadas por Roma e possuída pelos patrícios, e muitas vezes se confundia com os próprios domínios imperiais. Era familiar aos romanos, não só a noção de posse e utilitarismo em relação à terra, como também a supremacia da “urbe” em relação à “ager” na qual estava contida. Estes são importantes precedentes da dicotomia entre urbano e rural que na atualidade encontra-se consolidada e naturalizada.

Inicialmente baseado no sentimento de superioridade que as sociedades industriais têm de si próprias em comparação com outras sociedades, o conceito de “civilização” foi extendido para toda sociedade que tenha seu modo de vida baseado em hierarquizações – social, técnica, religiosa e científica -, e cujas instituições se concentrem majoritariamente em cidades. A ideia de superioridade entre os civilizados tem origem no sentimento de superioridade das elites européias em relação as populações das classes baixas. Generalizado através de propaganda patriota no âmbito de uma região, servindo para o surgimento dos estados nacionais modernos. Desde então, este mesmo sentimento de superioridade tem sido a base ideária para dominação de povos geografica e culturalmente distantes dos europeus modernos, legitimando desta forma seus ímpetos de colonização.[5]

“Bárbaros” foi a expressão pejorativa que os “civilizados” impuseram a diferentes povos que se contraporam violentamente à intenção de submissão característica das civilizações, conseguindo mesmo em alguns casos, derrubá-las. No que tange a violência, a principal diferença entre barbárie e civilização está na capacidade dos civilizados em organizar o exercício da violência de forma calculada, torná-lo mais cirúrgico e estratégico.

Via de regra as civilizações são muito mais violentas que os povos que as cercam, uma vez que se preocupam constantemente em encontrar e manter em seu poder os meios para dominar povos que lhes são vizinhos.[6] E não seria a barbárie, para além da diferença de costumes, uma reação característica dos povos à violência das civilizações que sobre eles desejam se sobrepor para enfim dominá-los? Não seria a barbárie também um esforço incondicional de libertação e contraposição a esta opressão?

«Anarquismo não é uma fábula romântica mas a realização consciente, baseada em cinco mil anos de experiência, de que não podemos confiar o gerenciamento de nossas vidas a reis, padres, políticos, generais e executivos”»

(Edward Abbey, A Voice Crying in the Wilderness, 1989)

Di-visões

O urbanocentrismo se dá em certa compreensão de mundo na qual a dimensão do “humano” (chamada de “sociedade” ou “cultura”) encontra-se apartada de tudo mais que existe independente das ações e vontades humanas (a este “tudo mais” chamou-se “natureza”). Esta visão de mundo fundada na separação foi fundamental para que uns poucos grupos humanos, que por muitas eras foram uma parte insignificante da humanidade, pudessem expandir o domínio de sua perspectiva, se apropriar e modificar os elementos das paisagens, para sua própria comodidade e conveniência.

Cada vez mais indiferentes aos processos e ciclos “naturais”, as únicas restrições para a propagação desta perspectiva exploratória residiam nos limites impostos pelas limitações da técnica. No entanto, após a ascensão da burguesia no ocidente que através de sua revolução industrial – que colocou a serviço do capital não só as ciências modernas, mas os saberes acumulados por milhares de anos – estas restrições foram gradativamente diminuindo. O avanço das técnicas permitiu a estes “humanos” colocarem suas vontades e ambições sobre o “natural”, impondo também esta perspectiva a tantas outras formas de ser “humanos”. Desta forma o urbanismo e a dicotomia urbano/rural consolidaram-se enquanto projeto político de formatação espacial dos poderes da contemporaneidade.

«As metrópoles contemporâneas formam os pontos de concentração máximos das técnicas políticas do capitalismo (…) Um meio no qual tudo é feito para que o humano apenas interaja consigo próprio, cresça separadamente das outras formas de existência, que as frequente e as utilize sem nunca as encontrar.»

(A Chamada)


Defender que nossos sonhos não cabem em suas urbes não implica numa apologia à vida no meio rural, seja em sua forma positivada – idílica e romantizada – ou na forma “realista” – por efeito das forças políticas dominantes que definem o que é o “real”. O que chamamos de “rural” é apenas o resultado da formatação, da redução das paisagens, relevos e biomas pela política espacial urbanocentrica capitalista, em áreas de extração de recursos e alimentos. O ruralismo é uma política que serve à urbanicidade. Esta política se coloca de forma que tudo (e todos) que não é urbano seja reduzido a simples reserva de matéria prima (e mão de obra) a ser (constante e eternamente) explorada em favor da vida nas cidades.

Se posicionar contra o urbanocentrismo não implica também em uma refutação a tudo quanto exista no meio urbano. Mas passa por entender que as cidades se tornaram invólucros luminosos para relações e práticas, que apenas pela arbitrariedade da tradição se definem sumamente “urbanas”. Este entendimento implica em reconhecer o caráter de aprisionamento destas mesmas práticas e relações consideradas dependentes dos espaços urbanos.

Com a divisão urbano/rural sendo incontestável, a ideologia da cidade alcançou a pretensão de englobar (e se sobrepor a) todas as diferenças. É justamente no meio urbano guiado pelo princípio dogmático do crescimento econômico infinito, o contexto em que o capitalismo se mostra mais “desenvolvido”.

A naturalização da urbe é constantemente produzida e reforçada pela máquina capitalista de administração de desejos. Seu poder é tão grande que, atualmente, poucos homens e mulheres conseguem perceber as formas mais ostensivas de controle e dependência a que estão submetidos nas grandes cidades. Obrigados a consumir bens, serviços e comodidades produzidas por corporações, submetidos a instituições estatais que sobretaxam cada aspecto de suas vidas, muitos estão condenados a uma vida de dependência do trabalho assalariado. Positivado e cultuado (e não apenas entre os “burgueses”) o trabalho assalariado nada mais é do que uma forma sofisticada de escravidão por dívida. A maior parte das funções assalariadas são tediosas e desgastantes. Boa parte se dá em ambientes quase totalitários, uma vez que no capitalismo a ilusão democrática jamais deu o ar de sua graça na organização dos grandes meios de produção.

«O desenvolvimento do meio urbano é a modelação capitalista do espaço. Representa a escolha de uma certa materialização do possível, com exclusão de outras… é imposto através da chantagem da utilidade (…) este modo de habitação, não é criado pelas pessoas, mas sem elas e contra elas.»

(Attila Kotanyi e Raul Vaneigem – Programa elementar da oficina de urbanismo unitário)


Os processos de produção são extremamente poluentes e comprometem extensões de água, ar e solo cada vez maiores. Para tornar os produtos mais duráveis e atraentes, industriais fazem uso de um sem número de substâncias tóxicas, submetendo bilhões de pessoas a epidemias de câncer e outras doenças degenerativas. As causas das doenças não são questionadas pela medicina, sequestrada pelo capital, e epidemias tornam-se sinônimo de lucro irrestrito das grandes farmacêuticas corporativas.

A conformação dos espaços só pôde se dar através da administração dos desejos. Através das mídias de massa a população global se submete a uma espetacular vitrine brilhante – filmes românticos em Nova York, promessas de felicidade em Paris, cartões postais do Rio de Janeiro – grandes carga de propaganda e ilusão que oculta os grandes horrores dos nossos dias: o emaranhado de ganância, técnica e inconsequência que não só compromete a qualidade de vida desta geração, como também torna mais e mais difícil a expectativa de vida das gerações futuras!


Colaboracionismo

O urbanocentrismo não se sustenta por uma vontade consciente, mas por restrições imaginativas, essencialização das fragilidades e fechamentos para outras possibilidades – elementos que se encontram presentes em todas populações nas cidades. Mesmo entre aquela parte da população que se mostra descontente com o atual estado das coisas, mesmo entre os poucos que se dizem “revolucionários”, são poucos os que reconhecem e questionam as arbitrariedades capitalistas na formatação socioespacial por trás da divisão urbano/rural.

O reformismo não é de exclusividade dos reformistas, e há mesmo aqueles que se dizendo “revolucionários”, e acreditando atuar pelo surgimento de movimentos massivos, limitam suas lutas a demandas frente às autoridades estatais e capitalistas, apelam para direitos constitucionais, a pleitos por acesso a serviços estatais, demandas de amenizações nas formas de exploração entre classes, e abrandamentos da repressão estatal.

Esta forma de “ação revolucionária” tem levado não poucos militantes a constante frustração. Frente ao poder de indução da máquina capitalista de administração de desejos, suas estratégias (baseadas em pressupostos do século XIX) têm se mostrado por décadas ineficazes. E as “massas” que buscavam, tanto as populações urbanas quanto rurais, não enxergam nestes grupos, mesmo que contrários ao capitalismo, soluções concretas para as demandas mais simples de suas vidas cotidianas.

Entre a maior parcela destes “revolucionários” a formatação socioespacial imposta por este sistema quase nunca é questionada. Para além da militância – assembleias, encontros, manifestações, e ações de propaganda – grande parte deles também vive nas cidades e está submetida à máquina capitalista de administração dos desejos, aprisionada através das comodidades e convenções da vida urbana. A dependência imbricada na urbanidade gera zonas de conforto onde muitas fragilidades são cultivadas. Vira-se a cara para as consequências escondidas das facilidades e confortos urbanos, e no cotidiano assume-se as mesmas escolhas colaboracionistas. Estes opositores do capitalismo encontram-se presos aos ciclos de trabalho assalariado, aos pagamentos de impostos para o estado, e ao consumo de bens produzidos pelo capital. Nesse processo, abre-se mão da (incômoda) crítica à escravidão do salário, e é adiada – quando não ignorada – a busca coletiva pela autonomia.

O que são políticas de inclusão numa sociedade essencialmente excludente, senão uma forma arrojada de sadismo institucional e domesticação disfarçada? (Para não falarmos do que está por de trás de derrotas) o que está implicado nas vitórias que estes grupos opositores alcançam? São elas meios para a transformação social, para a instituição de uma sociedade igualitária e livre em que as formas de autoritarismos para além do estado e do capital sejam abolidas? Não seriam estas vitórias mecanismos de legitimação do capital e do estado, que baseando-se em reformas ínfimas garantem a continuidade e o avanço de uma sociedade cada vez mais opressiva e desigual?

«…para livrar-se dos estados (…) (e dos capitais) é preciso unicamente não participar em nada, basta não sustentá-los e então cairão aniquilados. (…) E para não participar em nada dos estados nem sustentá-los é preciso estar livre da fragilidade que arrasta os homens ao laço dos estados (e dos capitais) que lhes fazem seus escravos ou seus cúmplices.»

(Liev Tolstoi)

Não-colaboração e autonomia

«Piratas
plantados
na carne da aventura
desertaremos as cidades
ilhas de destroços»

(Roberto Piva)

Revolucionário é efetivamente não colaborar em nada com o capital ou com o estado, não se submeter às ciladas de sua política de formatação espacial. É desta forma que tudo é reduzido a recursos disponíveis e conforma o mundo em espaços rurais ou urbano. No atual contexto, nos encontramos em uma situação de grande dependência sistêmica, a não-colaboração dificilmente poderia ser assumida como premissa. No entanto, se buscada como um objetivo coletivo, a não-colaboração não só pode ser possível, mas está ao alcance de muitos de nós.

A não-colaboração decorre principalmente da efetivação de potencialidades criativas, da constituição de meios de produção próprios (independentes dos meios capitalistas), da criação de organizações de ajuda mútua capazes de tornar obsoletos e desnecessários os serviços prestados pelo estado. Só assim será possível que cada vez mais pessoas não precisem se submeter a trabalhos assalariados para benefício do capital ou do estado, não mais necessitarem de seus produtos e serviços, e se fazerem fortes o bastante para não se render ao pagamento de impostos.

«Eu vim para a cidade no tempo da desordem, quando a fome reinava. Eu vim para o convívio dos homens no tempo da revolta e me revoltei ao lado deles.»

(Bertold Brecht, Aos que virão depois de nós)


De fato, para além dos holofotes e das vitrines do ativismo urbano convencional, na última década têm surgido discretamente um número considerável de iniciativas coletivas e pessoais, se organizado e agido na busca por autonomia, indo contra as convenções (políticas e espaciais) impostas pelo estado e capital. Não compartilham de um programa ou de uma via única, ainda que possuam pontos em comum: se organizam em redes de mutualidade, são adeptos da ação direta e da propaganda pela ação, estão engajados na constituição de espaços comunais, e buscam coletivamente alcançar formas de autonomia em diversos contextos, se preparando da forma como podem para resistir e levar ao colapso a sociedade de classe.

Parte destes grupos tem sua origem nos espaços libertários urbanos: okupas, centros sociais e espaços culturais libertários. Outra parte vem do movimento de ecovilas, da ecologia social[7] Há ainda os grupos surgidos da junção do anarquismo com o sobrevivencialismo.

«A única alternativa é a utopia ou o caos. (…) os sintomas do desmoronar da civilização podem ser vistos por todas as partes e são bem mais agudos que aqueles percebidos nos últimos anos do império romano. No entanto, nem todos estes sintomas são necessariamente patológicos. O mundo contemporâneo se vê afetado por duas tendências opostas: uma que tende a sua destruição social, a outra que anuncia o nascimento de uma nova sociedade.»

(Kenneth Rexroth)


É a partir deste universo de importantes experiências coletivas que cada qual, conforme a sua trajetória, vem refletindo e agindo sobre limites impostos pela urbanicidade. A esta tendência criativa e às questões – táticas e técnicas – em torno de sua concretização, uma pequena parte destes grupos denomina “protopia”. Muitos compartilham a intenção de romper com o modo de vida das cidades, o desejo de reterritorialização, a busca pelo melhor dos mundos futuros possíveis, sem deixar de se prepararem para a possibilidade de que o pior dos mundos se realize.

Referências

  1. ↑ Segundo dados da Organização das Nações Unidas, desde 2008 as populações urbanas em escala global, pela primeira vez na história, superaram as populações rurais, se constituindo pela primeira vez na história. Deve-se notar também que um terço das populações urbanas vivem atualmente em favelas.

  2. ↑ É muito provável que tenham existido cidades ainda mais antigas que essas, porém não deixaram maiores vestígios por serem construídas, em sua quase totalidade, em madeira ou bambu. A existência prévia de algumas destas cidades se insinua apenas por alterações sutis nas paisagens.

  3. ↑ Temos como obra de referência as reflexões de Élie Reclus sobre o surgimento da sociedades estamentais e origem dos estados através da força trazidos em sua obra Os Primitivos. Irmão mais do famoso geógrafo Elisee Reclus, Élie Reclus foi provavelmente o primeiro antropólogo declaradamente anarquista, no entanto, sua contribuição até hoje permanece esquecida ou ignorada, tanto pela maior parte dos anarquistas quanto pelo campo da Antropologia e demais Ciências Sociais.

  4. ↑ Ver Debt: The First 5.000 Years de David Graeber.

  5. ↑ A definição de civilização aqui apresentada tem base nas ideias de Norbert Elias em “O Processo Civilizador”.

  6. ↑ Consequentemente, uma boa definição de colonialismo seria o processo pelo qual civilizações impõem sistemas de dominação, exploração e valores a povos que lhes são geografica e culturalmente distantes.

  7. ↑ Ecologia social é um conceito criado pelo geógrafo libertário Elisée Reclus em fins do século XIX, apropriado como base de reflexão pelo filósofo Murray Bookchin na década de 1960. Afirma que problemas ambientais atuais são causados fundamentalmente pelos problemas sociais decorrentes de sistemas políticos e sociais hierarquizados, em particular pela aceitação cega do dogma do desenvolvimento econômico e da hipercompetitividade naturalizada.

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As redes da vida frente à hierarquização social

25 quarta-feira mar 2015

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Fonte: El Vírus de La Subversion

De Humanizer

Os diferentes conflitos socioambientais locais que enfrentam diversas comunidades frente à expansão de vários projetos capitalistas, como os monocultivos florestais e a indústria mineira, entre muitos outros, são um reflexo de uma constante a nível global (1), que está implicando que nas próximas décadas os limites do capitalismo global chocassem com os limites da biosfera, provocando um longo declive e colapso da civilização tal como a conhecemos hoje, como aponta a documentadíssima obra de Ramón Fernández (2). Neste contexto, historiadores como Murray Bookchin (3) afirmaram que o projeto de hierarquização social, que tem aproximadamente uns cinco mil anos, desde a formação das primeiras cidades-estado e que persiste nas sociedades democráticas contemporâneas implica também na hierarquização da natureza.

Casos bastante ilustrativos são os das comunidades Mapuche ou zonas como Petorca e Caimanes, em que a destruição ecossistêmica contemplou literalmente o sacrifício de comunidades inteiras com seus habitantes diante da grave ruptura nas condições de vida e do esgotamento de recursos hídricos, acompanhada de uma forte repressão policial e diversas estratégias políticas de manipulação. Não se torna talvez exagerado comparar esta situação com a do império Azteca, que sacrificava seres humanos sob a crença de que isso assegurava a continuação dos ciclos naturais, só que neste caso se sacrificam comunidades e ecossistemas para assegurar a continuidade da expansão dos interesses de grupos econômicos, que na prática são o poder ditatorial atrás do teatro de títeres que representa, nesse momento, a democracia.

Diante deste cenário que alguns cientistas propõem serem os primeiros dias de uma sexta extinção (4), é necessário desmontar uma série de mitos referentes à viabilidade da organização social atual frente ao que denominarei em termos genéricos como ciências da vida, que incorpora recentes descobertas da biologia evolucionista, antropologia e neurociências principalmente:

Atualmente, as evidências em termos da evolução substituíram a ideia de competência e sobrevivência do mais apto, da que se desprende como suposta lógica natural da hierarquização, por modelos de integração de sistemas complexos como o de Máximo Sandín (5), a endossimbiose e simbiogênese de Lynn Margulis (6) ou a deriva natural de Francisco Varela (7), que de um modo geral propõe a existência de uma coimplicação e coevolução interdependente entre organismos e o meio; organismos que, além disso, seriam formados pela adesão sucessiva de microorganismos como bactérias e vírus, como fonte de novidade evolutiva em resposta a grandes distúrbios ecossistêmicos, que, por exemplo, deram lugar à súbita aparição da fauna do período câmbrico. Em síntese, neste nível de compreensão da natureza se troca a competência como mecanismo central do fenômeno da vida, pelos fenômenos baseados na cooperação e interdependência.

Estas investigações permitiram determinar que como as espécies não são desassociáveis do ecossistema que as contém, seriam estas as que, mediante sua atividade metabólica, mantêm o conjunto de parâmetros a nível atmosférico, marinho e terrestre que possibilitam a vida, isto é, o planeta constituiria um sistema auto-organizado e autorregulado (8) especialmente por uma rede de microorganismos como bactérias e vírus que habitam o planeta e cuja importância em diversos ecossistemas foi documentada por Margulis e Sandín. Este conjunto é o que se conhece como sistema Gaia e implica na interdependência dos seres vivos e arredor, os que se recriariam mutuamente. Estas descobertas minimizadas em geral em busca de aplicações biotecnológicas de duvidosa efetividade, como o desastre da denominada “revolução verde” na agricultura, necessariamente determinam a reescritura de todos os manuais de economia, como propõe o destacado paleontólogo Niles Eldredge (9), já que embora a terra pode suportar a atividade humana, isto só é possível se se acopla estruturalmente a seus ciclos, diluindo por completo o debate de “progresso” vs algum tipo de primitivismo e propondo a necessidade de uma harmonização, que implica entender o crescimento em termos qualitativos como um índice de um bem-estar básico da população e um decrescimento em termos quantitativo da atividade humana.

Neste ponto vemos como uma sociedade hierarquizada se converte em um obstáculo, tendo em vista a maximização de interesses em grupos econômicos que é salvaguardado através do estado, que age como o guardião desses interesses. Sempre se argumentou que as sociedades sem autoridade desembocariam em um caos, entretanto, os últimos cinco mil anos provam uma extensão das guerras e um colapso ecossistêmico, não só pelo desdobrar da economia de crescimento infinito, mas também dos mecanismos bélicos e de controle social que, obviamente, requerem muita energia também. A pergunta então que precisamos responder é por que tamanha crise não é perceptível e ao mesmo tempo por que esta forma de organização social parece a única possível na imaginação coletiva.

Para tentar resolver este ponto abordaremos como conhecemos o mundo, a partir da obra de Francisco Varela (10), quem descobriu que o processo de conhecer é um fazer e que nossa experiência do mundo surge de pautas recorrentes a nível sensorial e motriz, o que tem um correlato em termos de configurações altamente complexas de redes neuronais que aparecem e desaparecem. O que isso implica: todo sistema hierarquizado condiciona hábitos e maneiras de viver através da administração dos desejos das pessoas ou mediante a coerção, pelo que finalmente programa uma experiência de mundo fragmentária. Simplesmente não sabemos o que acontece porque fica excluído de nosso foco de atenção, que se torna bastante restrito e que gera uma espécie de inércia e um senso comum de conformidade.

Até onde sabemos, a hierarquização social começou após abruptos períodos de crises climática, pelo que diante da incerteza foi mais fácil manipular os fatores antes mencionados, situação na que alguém poderia reconhecer continuidade nas denominadas doutrinas do “shock” que fabricam inimigos internos e externos e permitem desdobrar o controle social, com o que se torna fácil gravar a ideia de apego à autoridade, sobrevivência dos mais aptos e competência; entretanto, o absurdamente hierarquizado destas sociedades, a partir de seus colégios e tiranias familiares patriarcais em diante até o estado e os grupos que monopolizam os recursos para viver, implicam uma homogeneização que conduz a um condicionamento que limita e empobrece a experiência humana, que só pode desembocar em níveis estratosféricos de estupidez, visto que simplesmente não vemos todo o conjunto de fatores que se interrelacionam para formar a vida, se manifestando como uma negação constante da interdependência que descrevemos primeiro a nível ecossistêmico e evolutivo e que agora examinaremos a partir do fator decisivo que nos faz humanos: a empatia.

Em parágrafos anteriores, nos baseando nos trabalhos de Varela, se propôs que a experiência humana é uma espécie de fluxo que emerge de nosso viver, isto é, há uma circularidade entre viver e conhecer e, como isso sempre acontece em relação a outro, a mente e nossos estados afetivos se constituem em um fenômeno coletivo. Esta capacidade emerge na história evolutiva com os mamíferos, especialmente primatas e cetáceos, e, além disso, desembocou na declaração de Cambridge, que reconhece a existência de consciência em animais não-humanos. A empatia permite reconhecer estados afetivos nos outros e no caso dos humanos, dada a complexidade de sua linguagem, permite uma refinação maior, como propuseram primatólogos como Frans De Waal (11), que nos qualifica como símios bipolares capazes de uma grande crueldade e ao mesmo tempo de uma grande compaixão.

Esta capacidade que faz possível a cooperação se encontra inscrita no nível neurobiológico, já que se identificaram grupos neuronais denominados “espelhos” em tais processos e a nível experiencial é a base do que foi definido por anarquistas como Kropotkin como apoio mútuo, ou como solidariedade, por Malatesta. Com isso, a ideia de sociedades horizontais sai da utopia para uma possibilidade concreta da condição humana que outros como o famoso físico David Bohm (12) ou Humberto Maturana (13) propuseram como uma transformação de como dialogar e conversar a partir de outra experiência afetiva, pelo que a transformação da sociedade implicaria uma profunda transformação da experiência de viver em si, dissolvendo os condicionamentos que programa o sistema social hierarquizado, mediante sua observação atenta, o que é proposto na obra de Varela através do enfoque de observação da mente chamado madhyamika e que também se encontra presente na obra do filósofo Jiddu Krishnamurti com sua recusa de qualquer forma de autoridade.

Estas experiências de sociedades horizontais baseadas no apoio mútuo são encontradas durante toda a história da humanidade até hoje, como mostram os trabalhos de Peter Gelderloos (14) e o antropólogo David Graeber (15). As ciências da vida a todo momento estão provando a incompatibilidade de um sistema social hierarquizado baseado na competência e no crescimentos infinito com uma experiência do mundo que seja sã finalmente; os desequilíbrios afetivos se materializam em desequilíbrios sociais e estes em ecossistêmicos como um processo circular de que emerge uma espiral de destrutividade, como se pode ver nos conflitos socioambientais e na desigualdade social, implicando um transtorno em todos os níveis. Creio que existe uma ideia similar na cosmovisão mapuche ao respeito. Geralmente reclamamos das autoridades, mas neste ponto talvez seja bom começar a questionar seriamente se realmente precisamos delas, só a partir daí se pode construir a suficiente autonomia a nível individual e coletivo para ter uma experiência do mundo que realmente valha a pena viver, pois a única transformação radical da humanidade é compreender em sua totalidade a rede da vida em que acontece nossa experiência vivida.

A exposição destas ideias foi deliberadamente sintética, dado seus propósitos divulgativos e pode ser aprofundada amplamente nos documentos que se encontram a seguir.

(1)    Mapa mundial de conflictos socioambientales  http://www.bbc.co.uk/mundo/noticias/2014/03/140319_ciencia_atlas_global_conflictos_ecologicos_np

Mapa local de los conflictos socioambientales http://www.indh.cl/mapa-de-conflictos-socioambientales-en-chile

(2)    Libro “En la espiral de la energía volumen 1 y 2″ de Ramón Fernandezhttp://www.ecologistasenaccion.org/article29055.html

(3)    Resumen del pensamiento de Murray Bookchin http://ceppas.org.gt/article/la-ecologia-social-como-matriz-de-interpretacion/

(4)    http://www.tendencias21.net/Cientificos-alertan-Vivimos-los-primeros-dias-de-la-sexta-extincion-masiva-de-la-Tierra_a35873.html 
http://www.tendencias21.net/Eduardo-Costas-La-especie-humana-sera-de-las-mas-afectadas-por-la-Sexta-Gran-Extincion_a39774.html

(5)    Lamentablemente no dispongo de una edición digital del libro “Pensando la evolución, pensando la vida” pero en la sección artículos del sitio oficial de Máximo Sandín se puede encontrar gran cantidad de información http://somosbacteriasyvirus.com/libros.htmlhttp://somosbacteriasyvirus.com/articulos.html

(6)    Libro “Microcosmos” de Lynn Margulis y Dorion Saganhttp://isfdmacia.zonalibre.org/microcosmos%20Margulis-%20Sagan.pdf

(7)    Libro “De cuerpo presente las ciencias cognitivas y la experiencia humana” de Francisco Varela http://estesis.bligoo.cl/media/users/19/993761/files/231732/88471217-De-Cuerpo-Presente-Varela.pdf

(8)    Análisis de procesos evolutivos de Nereida Melguizohttp://www.somosbacteriasyvirus.com/analisis.pdf

(9)    http://www.lanacion.com.ar/220299-contra-la-extincion-en-curso

(10) De cuerpo presente http://estesis.bligoo.cl/media/users/19/993761/files/231732/88471217-De-Cuerpo-Presente-Varela.pdf  y el fenómeno de la vida de Francisco Varelahttp://cuva.uta.cl/index.php?option=com_k2&view=item&id=1659:francisco-varela-el-fen%C3%B3meno-de-la-vida

(11) Libro “primates y filósofos” de Frans De Waal http://es.scribd.com/doc/235243210/Frans-de-Waal-Primates-y-Filosofos-La-Evolucion-de-La-Moral-Del-Simio-Al-Hombre#scribd

(12) Libro “Sobre el dialogo” de David Bohm http://es.scribd.com/doc/34637104/Bohm-David-on-Dialog

(13) Libro “El árbol del conocimiento” de Humberto Maturana y Francisco Varela http://es.scribd.com/doc/64537164/MATURANA-Y-VARELA-El-Arbol-Del-Conocimiento#scribd

(14) Libro “La anarquía funciona “ Peter Gelderloos http://es.theanarchistlibrary.org/library/peter-gelderloos-la-anarquia-funciona.pdf

(15) Libro “Fragmentos de una antropología anarquista” de David Graeberhttp://www.viruseditorial.net/pdf/Fragmentos_de_antropologia_anarquista.pdf

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Escuta, Marxista!

06 sexta-feira mar 2015

Posted by litatah in Anarco Ecologia, Anarco Feminismo, Anarco Primitivismo, Anarcosindicalismo, Anarquia, Anarquia Verde, Aquecimento global - Mudanças climáticas, Comuna de Paris, Cultura, Curdistão/Kobane, Decrescimento, Esquerda partidária, EZLN, História, Manifestos, Marxismo, Municipalismo Libertário, Murray Bookchin, Paris 1968, Prática, Propostas, Teoria

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Fonte: Protopia

Murray Bookchin

«Um dos mais conhecidos panfletos de Murray Bookchin, Escuta, Marxista! visava predominantemente estudantes influenciados pelo Maoist Progressive Labor Party[1] que estava fortemente ativo (altamente destrutivo)  no movimento de massa Estudantes para uma Sociedade Democrática nos Estados Unidos dos anos 1960 e 1970. Suas críticas ao “marxismo” e à terminologia marxista não são aplicáveis ao marxismo por inteiro, mas algumas se aplicam às políticas cruas do PLP. A despeito dessa significativa incompletude, reproduzimos o documento aqui devido a sua importância em termos de esquerda e de esquerda libertária nos EUA»

Toda a velha bobagem dos anos trinta está novamente de volta à besteira sobre a “linha de classe”, o “papel da classe trabalhadora”, o “revolucionário profissional treinado”, o “partido de vanguarda”, e a “ditadura do proletariado”. Tudo está de volta novamente, e de uma forma mais vulgarizada que nunca. O Maoist Progressive Labor Party não é o único exemplo, é somente o pior. Alguns cheiram à mesma besteira em vários descendentes da SDS[2], e nos clubes marxistas e socialistas em campi, sem falar nos grupos trotskistas, os Clubes da Internacional Socialista e a Juventude contra Guerra e Fascismo.

Nos anos trinta, isso ao menos era compreensível. Os Estados Unidos estavam paralisados por uma crise econômica crônica, a mais profunda e mais longa de sua história. As únicas forças vivas que pareceram estar batendo nos muros do capitalismo foram as grandes organizações dirigidas do CIO [Congresso de Organizações Industriais], com suas dramáticas greves sentadas, sua militância radical, e seus confrontos sangrentos com a polícia. A atmosfera política através do mundo inteiro estava carregada pela eletricidade da Guerra Civil Espanhola, a última das revoluções clássicas de trabalhadores, quando todo setor radical na esquerda americana podia se identificar com suas próprias colunas de milícia em Madri e Barcelona. Isso foi há trinta anos. Era um tempo em que qualquer um que gritasse “Faça amor, não guerra” seria tido como louco; o grito de então era “Faça empregos, não guerra”; o grito de uma idade atormentada pela escassez, quando o alcance do socialismo requeria “sacrifícios” e um “período de transição” para uma economia de abundância material. Para um jovem de dezoito anos em 1937 o próprio conceito de cibernética teria parecido com a mais fantástica ficção científica, uma fantasia comparável a visões de viagens espaciais. Aquele jovem de dezoito anos atingiu agora cinquenta anos de idade, e suas raízes estão fixadas em uma era tão remota a ponto de diferir qualitativamente das realidades do presente período nos Estados Unidos. O próprio capitalismo mudou desde então, introduzindo crescentes formas estratificadas que poderiam ser antecipadas somente obscuramente trinta anos atrás. E agora estão nos pedindo para voltarmos atrás para a “linha de classe”, as “estratégias”, os “revolucionários profissionais” e as formas organizacionais daquele distante período em quase óbvia ignorância dos novos assuntos e possibilidades que emergiram.

Quando diabos vamos criar finalmente um movimento que olhe para o futuro ao invés do passado? Quando começaremos a aprender do que está nascendo ao invés do que está morrendo? Marx, pelo seu crédito que perdura, tentou fazer isso no seu próprio tempo; ele tentou evocar um movimento futurista no movimento revolucionário dos anos 1840 e 1850. “A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo no cérebro da viva”, ele escreveu em “O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte”. “E quando elas parecem estar engajadas em revolucionar a si mesmas e as coisas, em criar algo inteiramente novo, precisamente em tais épocas de crise revolucionária, eles ansiosamente conjuram os espíritos do passado a seu serviço e pegam emprestado seus nomes, gritos de guerra e costumes para apresentar a nova cena da história do mundo nessa fantasia saudosista e linguagem emprestada. Assim como Lutero usou a máscara do Apóstolo Paulo, a revolução de 1789 a 1814 se vestiu alternativamente como a República Romana e o Império Romano, e a revolução de 1848 não soube nada mais que parodiar, por sua vez, 1789 e a tradição de 1793 a 1795… A revolução social do século dezenove não pode buscar sua poesia no passado, mas apenas no futuro. Ela não pode começar consigo mesmo antes de se ver sem toda superstição relativa ao passado… Para chegar ao seu conteúdo, a revolução do século dezenove tem de deixar os mortos enterrarem seus mortos. Lá a frase ia além do seu conteúdo, aqui o conteúdo vai além da frase”.

O problema é algo diferente hoje, quando chegamos ao século vinte? Mais uma vez os mortos estão caminhando entre nós – ironicamente, cobertos com o nome de Marx, o homem que tentou enterrar os mortos do século dezenove. Assim a revolução de nossos dias não pode fazer nada melhor que uma paródia, sucessivamente, da Revolução de Outubro de 1917 e da Guerra Civil de 1918-1920, com sua “linha de classe”, seu “Partido Bolchevique”, sua “ditadura do proletariado”, sua moralidade puritana, e até mesmo sua frase, “poder soviético”. A revolução completa, de todos os lados de nossos dias, pode finalmente resolver a “questão social”, “histórica”, nascida de escassez, dominação e hierarquia, segue a tradição das revoluções parciais, incompletas, de apenas um lado do passado, a qual meramente mudou a forma da “questão social”, substituindo um sistema de dominação e hierarquia por outro. Em uma época em que a própria sociedade burguesa está no processo de desintegrar todas as classes sociais que uma vez deram-lhe estabilidade, ouvimos as vazias exigências de uma “linha de classe”. Em uma época em que todas as instituições políticas da sociedade hierárquica estão entrando em um período de profunda decadência, ouvimos as vazias exigências de um “partido político” e um “estado dos trabalhadores”. Em uma época em que a hierarquia como tal está sendo trazida à discussão, ouvimos as vazias exigências de “revolucionários profissionais”, “vanguardas” e “líderes”. Em uma época em que centralização e estado têm sido trazidos ao mais explosivo ponto de negatividade histórica, ouvimos as vazias exigências de um “movimento centralizado” e um “ditadura do proletariado”.

Essa perseguição de segurança no passado, essa tentativa de encontrar em abrigo em um dogma fixo e em uma hierarquia organizacional como substitutos do pensamento e práticas criativas é uma triste prova de quão pouco tantos revolucionários são capazes de “revolucionar a si mesmos e as coisas”, muito menos do que revolucionar a sociedade como um todo. O conservadorismo profundamente enraizado dos “revolucionários” do PLP [3] é na maior parte dolorosamente evidente; o líder autoritário e a hierarquia substituem o patriarcado e a burocracia escolar; a disciplina do movimento substitui a disciplina da sociedade burguesa; o código autoritário de obediência política substitui o estado; a crença na “moralidade proletária” substitui as tradições de puritanismo e a ética de trabalho. A velha essência de sociedade exploradora reaparece em novas formas, coberta com uma bandeira vermelha, decorada com retratos de Mao (ou Castro ou Che) e adornada com o pequeno “Livro Vermelho” e outras ladainhas sagradas.

A maior parte das pessoas que permanecem no PLP hoje merecem isso. Se eles podem viver com um movimento que cinicamente dubla seus próprios slogans em fotografias de piquetes do DRUM[4]; se eles podem ler uma revista que pergunta se Marcuse é um “fujão ou um tira”; se eles podem aceitar uma “disciplina” que os reduz a autômatos programados e inexpressivos; se eles podem usar as técnicas mais repulsivas (técnicas pegas emprestadas da cloaca das operações de negócios burguesas e do parlamentarismo) para manipular outras organizações; se eles podem virtualmente parasitar cada ação e situação para meramente promover o crescimento de seu partido – mesmo que isso signifique serem derrotados pela própria ação – então eles estão abaixo de qualquer crítica. Para essas pessoas, para todos eles comunistas e atacá-los dizendo que são comunistas é uma forma de macarthismo ao contrário. Para parafrasear a viva descrição de Trótski sobre o stalinismo, eles são a sífilis do movimento jovem radical hoje. E para a sífilis há um único tratamento – um antibiótico, não um argumento.


Nossa preocupação aqui é com aqueles honestos revolucionários que se voltaram ao marxismo, leninismo ou trotskismo porque eles seriamente procuram uma perspectiva social coerente e uma estratégia eficiente de revolução. Nós também estamos preocupados com aqueles que são intimidados pelo repertório teórico da ideologia marxista e estão dispostos a ter interesse passageiro por alternativas mais sistemáticas. A essas pessoas nos dirigimos como irmãos e irmãs e pedimos uma discussão séria e uma ampla reavaliação. Acreditamos que o marxismo parou de ser aplicável à nossa época não porque é muito visionário ou revolucionário, mas porque não é visionário ou revolucionário o bastante. Acreditamos que ele nasceu em uma era de escassez e foi apresentado como uma brilhante crítica daquela era, especificamente do capitalismo industrial, e que uma era está nascendo, a qual o marxismo não abarca adequadamente e cujos contornos ele apenas parcialmente antecipou. Argumentamos que o problema não é “abandonar” o marxismo, ou “anulá-lo”, mas transcendê-lo dialeticamente, como Marx transcendeu a filosofia hegeliana, a economia ricardiana e as táticas e modos de organização blanquistas. Devemos argumentar que em um estágio mais avançado do capitalismo que aquele com que Marx lidou um século atrás, e em um estágio mais avançado de desenvolvimento tecnológico do que Marx jamais poderia ter claramente antecipado, uma nova crítica é necessária, a qual por sua vez produz novos modos de luta, ou organização, de propaganda e estilo de vida. Chame esses novos modos do que quiser. Escolhemos chamar essa nova abordagem pós-escassez de anarquismo, por várias forçadas razões que se tornarão mais evidentes nas páginas que seguem.

Tabela de conteúdo

 [esconder]

  • 1 Os limites históricos do marxismo

  • 2 O mito do proletariado

  • 3 O mito do partido

  • 4 As duas tradições

  • 5 Notas

[editar]Os limites históricos do marxismo

A ideia de que um homem cujas grandes contribuições teóricas foram feitas entre 1840 e 1880 poderia “antever” a dialética inteira do capitalismo é, a julgar pela aparência, completamente absurda. Se ainda podemos aprender muito das compreensões de Marx, podemos aprender até mesmo mais dos erros inevitáveis de um homem que era limitado por uma era de escassez material e uma tecnologia que mal envolvia o uso da energia elétrica. Podemos aprender o quão diferente nossa própria era é daquela de toda história do passado, o quão qualitativamente novas são as potencialidades que nos confrontam, o quão únicas são as questões, análises e práticas que estão diante de nós se estamos para fazer uma revolução e não um outro aborto histórico.

O problema não é que o marxismo é um “método” que tem de ser reaplicado a “novas situações” ou que o “neo-marxismo” tem de ser desenvolvido para superar as limitações do “marxismo clássico”. A tentativa de resgatar a linhagem do marxismo enfatizando o método mais que o sistema ou acrescentar “neo” a uma palavra sagrada é pura mistificação se todas as conclusões práticas do sistema contradizem esses esforços.[5] Ainda hoje isso é precisamente o estado das coisas na exegese marxista. Os marxistas apoiam-se no fato de que o sistema provê uma brilhante interpretação do passado enquanto propositadamente ignora suas características completamente enganosas no lide com o presente e com o futuro. Eles citam a coerência que o materialismo histórico e a análise de classe dão à interpretação da história, as compreensões econômicas que o Capital provê dentro do desenvolvimento do capitalismo industrial, e a inteligência das análises de Marx das primeiras revoluções e das conclusões táticas que ele estabeleceu, sem outrora reconhecer que qualitativamente surgiram novos problemas que nunca existiram nos dias dele. É concebível que problemas históricos e métodos de análise de classe baseados inteiramente em uma escassez inevitável possa ser transportado para uma nova era de abundância em potencial? É concebível que uma análise econômica focada primariamente em um sistema “livremente competitivo” do capitalismo industrial possa ser transferida para um sistema gerenciado de capitalismo, onde estado e monopólios unem-se para manipular a vida econômica? É concebível que um repertório estratégico e tático formulado em período em que aço e carvão constituíam a base da tecnologia industrial possam ser transferidos para uma época baseada novas fontes de energia radicalmente novas, na eletrônica e na cibernação?

Como resultado dessa transferência, um corpo teórico que era libertador um século atrás torna-se uma camisa de força hoje. Pedem-nos para focar na classe trabalhadora como o “agente” da mudança revolucionário no momento em que o capitalismo visivelmente antagoniza e produz revolucionários virtualmente em todos os estratos da sociedade, particularmente entre os jovens. Pedem-nos para guiarmos nossos métodos táticos por uma visão de uma “crise econômica crônica”, apesar do fato de que tal crise esteve iminente nos últimos trinta anos.[6] Pedem-nos para aceitar uma “ditadura do proletariado” – um longo “período de transição” cuja função não é meramente a supressão de contrarrevolucionário, mas, acima de tudo o desenvolvimento de uma tecnologia de abundância – em um período em que uma tecnologia de abundância está ao alcance da mão. Pedem-nos para orientarmos nossas “estratégias” e “táticas” entre pobreza e miséria material em um período em que o sentimento revolucionário está sendo gerado pela banalidade da vida sob condições de abundância material. Pedem-nos para estabelecer partidos políticos, organizações centralizadas, hierarquias e elites “revolucionárias”, e um novo estado em um período em que instituições políticas como tais são decadentes e em que centralismo, elitismo e o estado estão sendo trazidos à tona em uma escala que nunca ocorreu antes na história da sociedade hierárquica.

Pedem-nos, em suma, para retornar ao passado, para diminuir ao invés de crescer, para forçar a palpitante realidade de nossos tempos, com nossas esperanças e promessas, aos decadentes preconceitos de uma idade ultrapassada. Pedem-nos para operar com princípios que foram ultrapassados não apenas teoricamente, mas pelo próprio desenvolvimento da sociedade. A história não estancou desde Marx, Engels, Lênin e Trótski morreram, nem seguiu a direção simplista que foi traçada pelos pensadores – mesmo que brilhantes – cujas mentes ainda tem raízes no século XIX ou nos primeiros anos do XX. Vimos o próprio capitalismo realizar muitas das tarefas (incluindo o desenvolvimento de uma tecnologia de abundância) que eram tidas como socialistas; vimos-no “nacionalizar” a propriedade, fundir a economia com o estado sempre que necessário. Vimos a classe trabalhadora neutralizada como o “agente da mudança revolucionária”, embora ainda lutando com uma estrutura burguesa por mais salário, menos horas e pequenos benefícios. A luta de classes no sentido clássico não desapareceu; ela teve um destino pior sendo cooptada pelo capitalismo. A luta revolucionária dentro dos países de capitalismo avançado tornou-se historicamente um novo terreno: ela tornou-se uma luta entre uma geração de jovens que não conheceram crise econômica crônica, e a cultura, valores, e instituições de uma geração mais antiga e conservadora cujas perspectivas de vida foram moldadas pela escassez, culpa, renúncia, o trabalho ético e a busca de segurança material. Nossos inimigos não são somente a burguesia visivelmente entrincheirada e o aparato estatal, mas também uma perspectiva que encontra seu apoio entre liberais, social-democratas, os subordinados de uma mídia de massa corrupta, os partidos “revolucionários” do passado, e, doloroso como possa ser para os acólitos do marxismo, o trabalhador dominado pela hierarquia da fábrica, pela rotina industrial, e pela ética do trabalho. A questão é que as divisões agora virtualmente suprimem todas as linhas de classe tradicionais e levantam um espectro de problemas que nenhum dos marxistas, baseando-se em analogias com sociedades da escassez, poderia prever.

[editar]O mito do proletariado

Coloquemos de lado todos os fragmentos ideológicos do passado e olhemos para as raízes teóricas do problema. Para a nossa época, a maior contribuição de Marx ao pensamento revolucionário é sua dialética do desenvolvimento social. Marx desnudou o grande movimento desde o comunismo primitivo através da propriedade privada até o comunismo na sua mais elevada forma – uma sociedade comunal apoiada em uma tecnologia libertadora. Nesse movimento, de acordo com Marx, o homem passa da dominação do homem pela natureza para a dominação do homem pelo homem, e finalmente à dominação da natureza pelo homem[7] e da dominação social dela. Dentro desta dialética maior, Marx examina a dialética do próprio capitalismo – um sistema social que constitui o último “estágio” histórico na dominação do homem pelo homem. Aqui, Marx não somente faz profundas contribuições ao pensamento revolucionário contemporâneo (particularmente em sua brilhante análise da relação da mercadoria), mas também exibe as limitações de tempo e lugar que têm um papel tão restritivo em nossa própria época.

A mais séria dessas limitações emerge da tentativa de Marx de explicar a transição do capitalismo para o socialismo, de uma sociedade de classes para uma sociedade sem classes. É vitalmente importante enfatizar que essa explicação tinha origem quase que inteiramente na analogia com a transição do feudalismo para o capitalismo – isto é, de uma sociedade de classes para outra sociedade de classes, de um sistema de propriedade para outro. Do mesmo modo, Marx aponta que assim como a burguesia desenvolveu-se dentro do feudalismo como resultado da cisão entre cidade e campo (mais precisamente, entre ofício e agricultura), assim o proletariado moderno desenvolveu-se dentro do capitalismo como resultado do avanço da tecnologia industrial. Ambas as classes, disseram-nos, desenvolveram interesses sociais próprios – de fato, interesses sociais revolucionários que as lançam contra a antiga sociedade na qual foram geradas. Se a burguesia obteve controle sobre a vida econômica muito antes de destruir a sociedade feudal, o proletariado, por sua vez, obtém seu próprio poder revolucionário pelo fato de ser “disciplinado, unido, organizado” pelo sistema da fábrica.[8] Em ambos os casos, o desenvolvimento de forças produtivas torna-se incompatível com o sistema tradicional de relações sociais. “O revestimento está rompido”. A nova sociedade é substituída pela nova.

A questão crítica com que nos deparamos é a seguinte: podemos explicar a transição de uma sociedade de classes para uma sociedade sem classes através da mesma dialética que considera a transição de uma sociedade de classes para outra? Esse não é um problema teórico que envolve o julgamento de abstrações lógicas, mas um assunto muito real e concreto para nossa época. Há diferenças profundas entre o desenvolvimento da burguesia sob o feudalismo e o desenvolvimento do proletariado sob o capitalismo que Marx ou falhou por antecipar ou nunca encarou claramente. A burguesia controlava a vida econômica muito antes de tomar o poder estatal; ela tornou-se a classe dominante material, cultural e ideologicamente, antes de afirmar sua dominação política. O proletariado não controla a vida econômica. A despeito de seu papel indispensável no processo industrial, a classe trabalhadora industrial não é nem mesmo a maioria da população, e sua posição econômica estratégica está diminuindo pela cibernação e outros avanços tecnológicos.[9] Por isso, é preciso um ato de alta consciência para o proletariado usar seu poder para alcançar uma revolução social. Até agora, o alcance dessa consciência foi bloqueado pelo fato de que o meio da fábrica é uma das mais entrincheiradas arenas da ética do trabalho, de sistemas hierárquicos de gestão, de obediência a líderes, e, em tempos recentes, de produção empenhada a mercadorias supérfluas e armamentos. A fábrica não serve apenas para “disciplinar”, “unir” e “organizar” os trabalhadores, mas também para fazê-lo de um modo completamente burguês. Na fábrica, a produção capitalista não apenas renova as relações sociais do capitalismo com cada dia de trabalho, como observou Marx, ela ainda renova a psique, ideias, valores e ideologias do capitalismo.

Marx percebeu suficientemente esse fato para procurar razões mais fortes que o mero fato da exploração ou que conflitos sobre salários e horas de trabalho para impulsionar o proletariado à ação revolucionária. Em sua teoria geral de acumulação capitalista, ele tentou delinear as severas e objetivas leis que forçam o proletariado a assumir um papel revolucionário. Do mesmo modo, ele desenvolveu sua famosa teoria da imiseração: a competição entre capitalistas leva-os a diminuir os preços dos outros, o que, por sua vez, leva a uma contínua redução de salários e ao absoluto empobrecimento dos trabalhadores. O proletariado é compelido a se revoltar porque, com o processo de competição e de centralização do capital, “cresce a massa de miséria, opressão, escravidão e degradação”.[10]

Mas o capitalismo não estancou desde os tempos de Marx. Escrevendo em meados do século XIX, não se pode esperar que Marx compreendesse todas as consequências de seus entendimentos sobre a centralização do capital e o desenvolvimento da tecnologia. Não se pode esperar que ele tivesse previsto que o capitalismo se desenvolveria não somente do mercantilismo para a forma industrial dominante de seu tempo – dos monopólios comerciais ajudados pelo Estado para unidades industriais altamente competitivas – mas mais, que com a centralização do capital, o capitalismo retornasse às suas origens mercantilistas em um nível mais alto de desenvolvimento e reassumisse a forma monopolista com ajuda estatal. A economia tende a se fundir com o Estado e o capitalismo começa a “planejar” seu desenvolvimento, ao invés de deixá-lo exclusivamente para a interação de competição das forças do mercado. Para estar seguro, o sistema não abole a luta de classes tradicional, mas manobra para contê-la, usando seus imensos recursos tecnológicos para assimilar as partes mais estratégicas da classe trabalhadora.

Assim, o impulso inteiro da teoria da miséria é diminuído e, nos Estados Unidos, a luta de classes tradicional falha em se tornar a guerra de classes. Ela permanece inteiramente dentro de dimensões burguesas. O marxismo, na verdade, torna-se uma ideologia. É assimilado pelas mais avançadas formas de movimento de Estado capitalista –particularmente a Rússia. Por uma ironia incrível da história, o “socialismo” marxista torna-se, em grande parte, o verdadeiro Estado capitalista que Marx não conseguiu antecipar na dialética do capitalismo.[11] O proletariado, ao invés de desenvolver-se como uma classe revolucionária dentro do ventre do capitalismo, torna-se um órgão dentro do corpo da sociedade burguesa.

A pergunta que devemos fazer neste recente momento da história é se uma revolução social que pretende alcançar uma sociedade sem classes pode emergir de um conflito entre classes tradicionais em uma sociedade de classes, ou se tal revolução social pode emergir somente da decomposição das classes tradicionais, realmente da emergência de uma “classe” inteiramente nova cuja verdadeira essência é que ela é uma não-classe, um crescente estrato de revolucionários. Na tentativa de responder essa questão, podemos aprender mais retornando à dialética mais ampla que Marx desenvolveu para a sociedade humana como um todo do que do modelo que ele pegou emprestado da passagem da sociedade feudal para a capitalista. Assim como os clãs de consanguinidade começaram a se dividir em classes, em nossos dias há uma tendência de as classes se decomporem em subculturas inteiramente novas que têm semelhança com formas não capitalistas de relacionamentos. Elas não mais são grupos econômicos estritamente; refletem, na verdade, a tendência do desenvolvimento social transcender as categorias econômicas da sociedade da escassez. Elas constituem, com efeito, uma pré-formação crua e ambígua do movimento da sociedade da escassez para a da pós-escassez.

O processo da decomposição de classe tem de ser entendido em todas as suas dimensões. A palavra “processo” tem de ser enfatizada aqui: as classes tradicionais não desaparecem, nem a luta de classe. Somente uma revolução social pode remover a estrutura da classe prevalecente e as causas do conflito. A questão é que a luta de classes tradicional deixa de ter implicações revolucionárias; ela se revela como a fisiologia da sociedade prevalente, não como as dores de trabalho de parto. Na realidade, a luta de classes tradicional estabiliza a sociedade capitalista “corrigindo” seus abusos (em salários, horas de trabalho, inflação, emprego etc.). Os sindicatos, na sociedade capitalista, constituem um “contramonopólio” em relação aos monopólios industriais e são incorporados à economia estatizada neomercantil como um Estado. Dentro desse Estado, há conflitos maiores ou menores, mas, tomados como um todo, os sindicatos fortalecem o sistema e servem para perpetuá-lo.

Reforçar essa estrutura de classe tagarelando sobre o “papel da classe trabalhadora”, reforçar a luta de classes tradicional dando-lhe um caráter “revolucionário”, infectar o novo movimento revolucionário de nossa época com “trabalhite” é tornar o núcleo reacionário. O quão frequentemente as doutrinas marxistas têm de ser lembradas que a história da luta de classes é a história de uma doença, das feridas abertas pela famosa “questão social”, do desenvolvimento monofacetado do homem na tentativa de obter controle sobre a natureza e dominar seu companheiro homem? Se o efeito colateral dessa doença foi avanço tecnológico, os efeitos principais foram repressão, um horrível derramamento de sangue humano e uma aterrorizante distorção da psique humana.

À medida que a doença se aproxima de seu fim, que a ferida começa a curar em seus mais profundos recônditos, o processo agora se desdobra em direção à totalidade; as implicações revolucionárias da luta de classes tradicional perdem seu significado como construções teóricas e como realidade social. O processo de decomposição envolve não somente a estrutura tradicional de classes, mas também a família patriarcal, modos autoritários de aceitação, a influência da religião, as instituições do Estado, e as tradições construídas ao redor de trabalho, renúncia, culpa e sexualidade reprimida. O processo de desintegração, em suma, agora se torna generalizado e virtualmente afeta todas as classes, valores e instituições. Ele cria questões inteiramente novas, modos de luta e formas de organização e chamadas para uma abordagem inteiramente nova à teoria e prática.

O que isso significa concretamente? Deixe-nos contrastar duas abordagens, a marxista e a revolucionária. A doutrina marxista teria nos mostrado o trabalhador – ou melhor, “entrado” na fábrica – e feito proselitismo a ele em “preferência” a qualquer outra pessoa. O objetivo? Formar a “consciência de classe” do trabalhador. Para citar os exemplos mais neandertais da velha esquerda, corta-se o cabelo, arruma-se em roupas esportivas convencionais, troca-se maconha por cigarros e cerveja, dança-se convencionalmente, aparentam-se maneirismos rudes, e se desenvolve uma aparência sem humor, inexpressiva e jactanciosa.[12]

Essa pessoa torna-se, em resumo, o trabalhador em sua pior caricaturização: não um “burguês trivial degenerado”, verdade, mas um burguês degenerado. Essa pessoa torna-se uma imitação do trabalhador na medida em que o trabalhador é uma imitação de seus mestres. Sob a metamorfose do estudante para o “trabalhador” se esconde um cinismo depravado. Essa pessoa tenta usar a disciplina inculcada pelo ambiente da fábrica para disciplinar o trabalhador para o ambiente do partido. Essa pessoa tenta usar o respeito do trabalhador pela hierarquia industrial para ligar o trabalhador à hierarquia partidária. Esse processo lamentável, que, se bem-sucedido, pode levar somente à substituição de uma hierarquia por outra, é alcançado pela preocupação fingida com as reivindicações econômicas cotidianas do trabalhador. Mesmo a teoria marxista é degradada para concordar com essa imagem falsificada do trabalhador. (Veja quase toda cópia do Challenge – o National Enquirer da esquerda. Nada chateia mais o trabalhador do que esse tipo de literatura.) No final, o trabalhador é inteligente o suficiente para saber que obterá melhores resultados na luta de classes cotidiana através de sua burocracia sindical que através de uma burocracia partidária marxista. Os anos quarenta revelaram isso tão dramaticamente que, em um ou dois anos, com apenas algum protesto de seus membros, os sindicatos conseguiam expulsar milhares de “marxistas” que fizeram os trabalhos pioneiros por mais de uma década, até mesmo ascendendo à liderança da velha CIO internacional.

O trabalhador torna-se um revolucionário não tornando-se mais um trabalhador, mas desfazendo seu “trabalhidade”[13]. E nisso ele não está sozinho; o mesmo se aplica ao fazendeiro, ao soldado, ao burocrata, ao profissional – e ao marxista. O trabalhador não é menos um “burguês” que o fazendeiro, o estudante, o caixeiro, o soldado, o burocrata, o profissional – e que o marxista. Sua “trabalhidade” é a doença de que ele sofre, a aflição social encaixada em dimensões individuais. Lênin entendeu isso em Que fazer?, mas ele o introduzir na velha hierarquia sob uma bandeira vermelha e alguma verborreia revolucionária. O trabalhador começa a tornar-se revolucionário quando desfaz sua “trabalhidade”, quando vem a detestar seu status de classe aqui e agora, quando começa a largar exatamente essas características que o marxismo mais preza nele – sua ética de trabalho, sua estrutura de caráter derivada da disciplina industrial, seu respeito pela hierarquia, sua obediência a líderes, seu consumismo, seus vestígios de puritanismo. Nesse sentido, o trabalhador torna-se um revolucionário no grau em que larga seu status de classe e alcança uma consciência de não classe. Ele degenera – e ele degenera magnificamente. O que ele está abandonando são precisamente aquelas amarras de classe que o ligam a todos os sistemas de dominação. Ele abandona esses interesses de classe que o escravizam ao consumismo, à vida suburbana e uma visão mercantil da vida.[14]

O desenvolvimento mais promissor nas fábricas hoje em dia é a emergência dos jovens trabalhadores que fumam maconha, estão se fodendo para seus trabalhos, entram e saem das fábricas, deixam o cabelo crescer, exigem mais lazer ao invés de mais salários, roubam, acossam todas as figuras de autoridade, vão a greves não aprovadas pelo sindicato e incitam seus companheiros trabalhadores. Ainda mais promissora é a emergência desse tipo humano nas escolas vocacionais[15] e ensino médio, o suprimento da classe trabalhadora industrial por vir. Ao nível que trabalhadores, estudantes vocacionais e estudantes de ensino médio ligam seus estilos de vida a vários aspectos da cultura anárquica jovem, nesse nível o proletariado será transformado de uma força de conservação da ordem estabelecida para uma força revolucionária.

Uma situação qualitativamente nova emerge quando o homem enfrenta a transformação de uma sociedade de classes repressiva, baseada na escassez material, para uma sociedade sem classes libertadora, baseada na abundância material. Da decomposição da estrutura tradicional de classes, um novo tipo humano é criado em números sempre crescentes: o revolucionário. Esse revolucionário começa a desafiar não somente as premissas econômicas e políticas da sociedade hierárquica, mas a hierarquia em si. Ele não somente levanta a necessidade de uma revolução social, mas também tenta viver de uma maneira revolucionária no nível em que isso é possível na sociedade existente.[16] Ele não apenas ataca as formas criadas pelo legado de dominação, mas também improvisa novas formas de libertação que tomam sua poesia do futuro.

Essa preparação para o futuro, essa experimentação com formas libertadoras pós-escassez de relações sociais pode ser ilusória se o futuro envolve uma substituição de uma sociedade de classe por outra; é indispensável, contudo, se o futuro envolve uma sociedade sem classes construída nas ruínas de uma sociedade de classes. O que, então, será o “agente” da mudança revolucionária? Ela será literalmente a grande maioria da sociedade, retirada de todas as diferentes classes tradicionais e fundida em uma força revolucionária comum pela decomposição das instituições, formas, valores e estilos sociais da estrutura de classes prevalente. Tipicamente, seus elementos mais avançados são a juventude – uma geração que não conheceu crise econômica crônica e que está se tornando menos e menos orientada ao mito de segurança material tão disseminado entre a geração dos anos trinta.

Se é verdade que a revolução social não pode ser alcançada sem o apoio ativo ou passivo dos trabalhadores, não é menos verdade que ela não pode ser alcançada sem o apoio ativo ou passivo dos agitadores, técnicos e profissionais. Acima de tudo, uma revolução social não pode ser alcançada sem o apoio da juventude, da qual a classe dominante recruta suas forças. Se a classe dominante retém seu poder armado, a revolução está perdida, não importam quantas greves de trabalhadores em seu apoio sejam feitas. Isso foi vividamente demonstrado não somente pela Espanha dos anos trinta, mas pela Hungria dos anos cinquenta e pela Tchecoslováquia dos anos sessenta. A revolução de hoje – pela sua própria natureza, de fato, por sua perseguição da totalidade – conquista não somente o soldado e o trabalhador, mas a própria geração da qual soldados, trabalhadores, técnicos, fazendeiros, cientistas, profissionais e até mesmo burocratas foram recrutados. Descartando os manuais revolucionários do passado, a revolução do futuro segue o caminho de menor resistência, seguindo seu caminho nas áreas mais suscetíveis da população, independentemente de sua “posição de classe”. Ela é nutrida por todas as contradições na sociedade burguesa, não somente pelas contradições da década de 1860 e de 1917. Assim, ela atrai todos aqueles que sentem o peso da exploração, pobreza, racismo, imperialismo e, sim, aqueles cujas vidas são frustradas por consumismo, vida suburbana, a mídia de massa, a família, a escola, o supermercado e o sistema prevalente de sexualidade reprimida. Aqui a forma da revolução torna-se tão total quanto seu conteúdo – sem classe, sem propriedade, sem hierarquia, e totalmente libertadora.

Cambalear nesse desenvolvimento revolucionário com as receitas gastas do marxismo, tagarelar sobre uma “divisão de classes” e o “papel da classe trabalhadora”, corresponde a uma subversão do presente e do futuro pelo passado. Elaborar essa entediante ideologia tagarelando sobre “revolucionários profissionais”, um “partido de vanguarda”, “centralismo democrático” e a “ditadura do proletariado” é pura contrarrevolução. É a esse assunto da “questão organizacional” – essa contribuição vital do leninismo ao marxismo – a que devemos dar agora alguma atenção.

[editar]O mito do partido

Revoluções sociais não são feitas por partidos, grupos ou profissionais, elas ocorrem como resultado de forças históricas profundamente assentadas e contradições que ativam amplos setores da população. Elas não ocorrem meramente porque as “massas” consideram a sociedade existente intolerável (como argumentou Trótski), mas também por causa da tensão entre o real e o possível, entre o que é e o que poderia ser. Extrema miséria, por si só, não produz revoluções; mais frequentemente, ela produz uma desmoralização sem propósito, ou, pior, uma luta privada e pessoal pela sobrevivência.

A Revolução Russa de 1917 pesa nas mentes dos vivos como um pesadelo, porque ela foi produto amplamente de “condições intoleráveis”, de uma guerra imperialista devastadora. Quaisquer sonhos que ela tivesse foram virtualmente destruídos por uma guerra civil ainda mais sangrenta, pela fome e pela traição. O que emergiu da revolução foram as ruínas não de uma antiga sociedade, mas de quaisquer esperanças existentes de alcançar uma nova. A Revolução Russa falhou miseravelmente; ela substituiu o czarismo pelo Estado capitalista.[17] Os bolcheviques foram as trágicas vítimas de sua própria ideologia e pagaram com suas vidas em grande número durante os expurgos dos anos trinta. Tentar obter alguma sabedoria única dessa revolução da escassez é ridículo. O que podemos aprender das revoluções do passado é o que todas as revoluções têm em comum e suas profundas limitações comparadas às enormes possibilidades que agora nos estão abertas.

O aspecto mais notável das revoluções do passado é que elas começaram espontaneamente. Examinar as fases iniciais da Revolução Francesa de 1789, as revoluções de 1848, a Comuna de Paris, a revolução de 1905 na Rússia, a deposição do czar em 1917, a Revolução Húngara de 1956 ou a greve geral na França em 1968 mostra que os estágios iniciais são geralmente os mesmos: um período de agitação explode espontaneamente em uma insurreição de massa. Se a insurreição é bem-sucedida ou não, depende de sua determinação e de se as tropas são aceitas pelo povo.

O “partido glorioso”, quando há um, quase que invariavelmente ri por trás dos eventos. Em fevereiro de 1917, a organização dos bolcheviques de Petrogrado opôs-se à convocação de greves precisamente na véspera da revolução que estava destinada a destituir o czar. Felizmente, os trabalhadores ignoraram as “diretivas” bolcheviques e fizeram a greve. Nos eventos que se seguiram, ninguém estava mais surpreso com a revolução que os partidos “revolucionários”, incluindo os bolcheviques. Como o líder bolchevique Kayurov lembrou: “Absolutamente nenhuma iniciativa diretiva do partido foi sentida… o comitê de Petrogrado foi preso e o representante do Comitê Central, Camarada Shliapnikov, não podia dar nenhuma diretiva para o dia seguinte”. Talvez tenha sido sorte. Antes do comitê de Petrogrado ser detido, sua avaliação da situação e seu próprio papel foram tão ineptos que, tivessem os trabalhadores seguido suas ordens, é duvidoso que a revolução tivesse ocorrido quando ocorreu.

O mesmo tipo de história pode ser contada sobre as insurreições que antecederam 1917 e aquelas que se seguiram – para citar somente a mais recente, a insurreição e greve geral na França durante maio e junho de 1968. Há uma conveniente tendência de se esquecer que perto de uma dezena de organizações bolcheviques “fortemente centralizadas” existiam em Paris naquele tempo. É raramente mencionado que virtualmente todos desses grupos de “vanguarda” desdenharam da insurreição estudantil de 7 de maio, quando as lutas intensamente estouraram nas ruas. A trotskista Jeunesse Communiste Révolutionnaire [Juventude Comunista Revolucionária] foi uma notável exceção – e saiu-se somente bem, essencialmente seguindo as iniciativas do Movimento 22 de Março.[18] Em 7 de maio, todos os grupos maoístas criticaram a insurreição estudantil, caracterizando-a como periférica e não importante; a trotskista Fédération des Etudiants Révolutionnaires [Federação dos Estudantes Revolucionários] a considerou “aventurosa” e tentou fazer com que os estudantes saíssem das barricadas em 10 de maio; o Partido Comunista, claro, teve um papel completamente traiçoeiro. Longe de liderar o movimento popular, os maoístas e trotskistas foram seus cativos do começo ao fim. Ironicamente, a maioria desses grupos bolcheviques usavam vergonhosamente técnicas manipuladoras na assembleia estudantil na Sorbonne, em uma tentativa de “controlá-la”, introduzindo uma atmosfera disruptiva que desmoralizava o grupo inteiro. Finalmente, para completar a ironia, todos esses grupos bolcheviques puderam tagarelar sobre a necessidade de uma “liderança centralizada” quando o movimento popular colapsou – um movimento que ocorreu apesar de suas “diretivas” e geralmente em oposição a elas.

Revoluções e insurreições dignas de qualquer nota não têm uma fase inicial que seja magnificamente anárquica, mas também tendem a criar espontaneamente suas próprias formas de autogestão revolucionária. As seções parisienses de 1793-94 eram as mais notáveis formas de autogestão a serem criadas por qualquer uma das revoluções sociais na história.[19] Mais familiar na forma eram os conselhos ou “sovietes” que os trabalhadores de Petrogrado estabeleceram em 1905. Apesar de menos democráticos que as seções, os conselhos iriam reaparecer em várias revoluções posteriores. Ainda outra forma de autogestão revolucionária eram os comitês de fábricas que os anarquistas estabeleceram na Revolução Espanhola de 1936. Finalmente, as seções reapareceram como assembleias estudantis e comitês de ação na insurreição de maio e junho e na greve geral de 1968 em Paris.[20]

Neste momento, temos de questionar que papel o partido “revolucionário” exerce em todos esses desenvolvimentos. No começo, como vimos, ele tende a uma função inibitória, não um papel de “vanguarda”. Onde exerce influência, tende a desacelerar o fluxo dos eventos, não “coordenar” as forças revolucionárias. Isso não é acidental. O partido é estruturado em camadas hierárquicas que refletem a mesma sociedade a que eles professam se opor. Apesar de suas pretensões teóricas, é um organismo burguês, um Estado em miniatura, com um aparato e um profissional cuja função é conquistar o poder, não dissolver o poder. Enraizado no período pré-revolucionário, ele assimila todas as formas, técnicas e mentalidade da burocracia. Seus membros são treinados para obedecer e para os preconceitos de um dogma rígido e é ensinado a sempre reverenciar a liderança. A liderança do partido, por sua vez, é treinada em hábitos de comando, autoridade, manipulação e egocentrismo. Essa situação é piorada quando o partido participa das eleições parlamentares. Nas campanhas eleitorais, o partido de vanguarda se modela completamente nas formas burguesas existentes e adquire até mesmo a parafernália do partido eleitoral. A situação assume proporções realmente críticas quando o partido obtém muitos correligionários, sedes custosas, e um grande inventário de periódicos controlados centralizadamente, e desenvolve um “aparato” pago – em resumo, uma burocracia com interesses materiais explícitos.

À medida que o partido cresce, a distância entre liderança e as fileiras invariavelmente aumentam. Seus líderes não somente tornam-se “personalidades”, eles perdem contato com a situação de vida abaixo de si. Os grupos locais, que conhecem melhor sua situação imediata própria que qualquer líder afastado, são obrigados a subordinar suas compreensões a diretivas superiores. A liderança, carecendo de qualquer conhecimento direto de problemas locais, responde lenta e prudentemente. Mesmo assim, ela exalta a “visão ampla”, a grande “competência teórica”, a competência da liderança tende a diminuir à medida que se ascende na hierarquia de comando. Quanto mais se chega ao nível no qual são tomadas as decisões reais, mais conservadora é a natureza do processo de tomada de decisão, mais burocráticos e alheios são os fatores que estão em jogo, mais considerações de prestígio e economia suprimem a criatividade, imaginação e uma dedicação desinteressada por objetivos revolucionários.

Quanto mais o partido procura eficiência por meio de hierarquia, profissionais e centralização, menos eficiente ele fica de um ponto de vista revolucionário. Apesar de todos marcharem conforme a música, as ordens estão normalmente erradas, especialmente quando os eventos começam a se suceder rapidamente e tomam contornos inesperados – como acontece em todas as revoluções. O partido é eficiente em apenas um quesito – moldar a sociedade à sua própria imagem hierárquica se a revolução obtém sucesso. Ele recria a burocracia, a centralização e o Estado. Ele fomenta a burocracia, a centralização e o Estado. Ele fomenta as condições sociais genuínas que justificam esse tipo de sociedade. Desse modo, ao invés de “desaparecer”, o Estado controlado pelo “partido glorioso” preserva as mesmas condições que “necessitavam” da existência de um Estado – e de um partido para “preservá-lo”.

Por outro lado, esse tipo de partido é extremamente vulnerável em períodos de repressão. A burguesia tem apenas de prender sua liderança para destruir o movimento por inteiro. Com seus líderes na prisão ou no exílio, o partido torna-se paralisado; os membros obedientes não têm a quem obedecer e tendem a se atrapalhar. A desmoralização chega rapidamente. O partido se decompõe não somente por causa da atmosfera repressiva, mas também por causa de sua pobreza de recursos internos.

A história a seguir não é uma série de inferências hipotéticas, é um esquete misto de todos os partidos de massa marxistas do século passado – os social-democratas, os comunistas e o partido trotskista do Ceilão (o único partido de massa desse tipo). Afirmar que esses partidos falharam em levar seus princípios marxistas a sério somente esconde outra questão: em primeiro lugar, por que ocorreu esse fracasso? O fato é que esses partidos foram cooptados pela sociedade burguesa porque eram estruturados em modelos burgueses. A semente da traição existia neles desde o nascimento.

O Partido Bolchevique foi poupado dessa sina entre 1904 e 1917 unicamente por uma razão: era uma organização ilegal durante a maior parte dos anos que antecederam a revolução. O partido estava sendo continuamente rachado e reconstituído, resultando que, até tomar o poder, nunca realmente se solidificou como uma máquina centralizada, burocrática e hierárquica. Além disso, ele foi rachado por facções; a intensa atmosfera faccionária persistiu por todo o ano de 1917, até durante a guerra civil. Contudo, a liderança bolchevique era, como é comum, extremamente conservadora, um traço contra o qual Lênin teve de lutar durante 1917 – primeiro em seus intentos de reorientar o Comitê Central contra o governo provisório (o famoso conflito sobre as “Teses de Abril”), depois guiando o Comitê Central à insurreição em outubro. Em ambos os casos, ele ameaçou renunciar ao Comitê Central e levar suas visões para “fileiras inferiores do partido”.

Em 1918, disputas faccionárias sobre a questão do tratado de Brest-Litovsk[21] quase provocou a cisão em dois partidos comunistas rivais. Grupos bolcheviques rivais como os Centralistas Democráticos e a Oposição Operária promoveram severas brigas dentro do partido em 1919 e 1920, sem falar dos movimentos rivais que se desenvolveram dentro do Exército Vermelho sobre a inclinação de Trótski pela centralização. A completa centralização do Partido Bolchevique – a realização da “unidade leninista”, como foi chamada posteriormente – não ocorreu até 1921, quando Lênin promoveu a persuasão para banir facções no décimo congresso do Partido. Por essa época, a maior parte do Exército Branco tinha sido vencida e os intervencionistas estrangeiros tinham retirado as tropas da Rússia.

Não pode ser muito fortemente enfatizado que os bolcheviques tenderam a centralizar seu partido ao nível de ficarem isolados da classe trabalhadora. Esse relacionamento foi raramente investigado em círculos leninistas posteriores, mesmo que Lênin fosse honesto o suficiente para admiti-lo. A história da Revolução Russa não é meramente a do Partido Bolchevique e seus apoiadores. Por trás da aparência dos eventos oficiais descritos pelos historiadores soviéticos havia outro desenvolvimento, mais básico – o movimento espontâneo dos trabalhadores e camponeses revolucionários, que depois entraram fortemente em choque com as políticas burocráticas dos bolcheviques. Com a deposição do czar em fevereiro de 1917, os trabalhadores estabeleceram espontaneamente comitês de fábricas em praticamente todas elas, fazendo valer direitos nas operações industriais. Em junho de 1917, uma conferência de comitês de fábricas de toda a Rússia teve lugar em Petrogrado e demandou a “organização através do controle do trabalho sobre a produção e distribuição”. As reivindicações dessa conferência são raramente mencionadas em relatos leninistas da Revolução Russa, apesar do fato de ela ter se alinhado aos bolcheviques. Trótski, que descreve os comitês de fábricas como “a mais direta e indubitável representação do proletariado no país inteiro”, aborda-os superficialmente em sua extensa história da revolução. Tão importantes eram esses organismos espontâneos de autogestão que Lênin, desesperado em ganhar os sovietes no verão de 1917, estava preparado para mudar o slogan “Todo o poder para os sovietes” por “Todo o poder para os comitês de fábricas”. Essa reivindicação teria lançado os bolcheviques a uma posição completamente anarcossindicalista, mesmo que seja duvidoso que tivessem continuado assim por muito tempo. Com a Revolução de Outubro, todos os comitês de fábrica tomaram o controle das plantas, expulsando os burgueses e tomando controle completo da indústria. Ao aceitar o conceito de controle dos trabalhadores, o famoso decreto de Lênin de 14 de novembro de 1917 meramente tomou conhecimento de um fato consumado; os bolcheviques não ousaram se opor aos trabalhadores nesse momento inicial. Mas eles começaram a tirar poder dos comitês de fábricas. Em janeiro de 1918, dois meses depois de “decretar” o controle dos trabalhadores, Lênin começava a defender que a administração das fábricas fosse posta sob o controle dos sindicatos. A história de que os bolcheviques experimentaram o controle operário “pacientemente”, somente para achá-lo “ineficiente” e “caótico”, é um mito. Sua “paciência” não durou mais que algumas semanas. Não somente Lênin opôs-se ao controle direto dos trabalhadores em uma questão de semanas depois de decreto de 14 de novembro, mas até mesmo o controle dos sindicatos chegou ao fim brevemente depois de ter sido estabelecido. Pelo verão de 1918, quase toda a indústria russa tinha sido colocada sob formas de gestão burguesas. Como Lênin colocou, a “revolução exige… precisamente nos interesses do socialismo que as massas obedeçam inquestionavelmente a única vontade dos líderes do processo de trabalho”.[22] Consequentemente, o controle operário foi denunciado não somente como “ineficiente”, “caótico” e “impráticável”, mas também como “trivialmente burguês”! Osinsky, da esquerda comunista, atacou asperamente todas essas reivindicações falsas e avisou o Partido: “Socialismo e organização socialista devem ser estabelecidos pelo próprio proletariado, ou não estabelecidos; outra coisa será estabelecer um Estado capitalista” Sob os “interesses do socialismo”, o Partido Bolchevique tirou do proletariado todo domínio que este tinha conquistado por suas próprias forças e iniciativas. O Partido não coordenou a revolução, ou a guiou; ele a dominou. Primeiro o controle operário e depois o controle sindical foram substituídos por uma hierarquia elaborada, tão monstruosa quanto qualquer estrutura que existia em tempos pré-revolucionários. Como os tempos seguintes demonstraram, a profecia de Osinsky tornou-se realidade.

O problema de “quem deve prevalecer” – os bolcheviques ou as “massas” russas – não era de modo algum limitado pelas fábricas. O assunto reapareceu tanto no campo quanto nas cidades. Uma ampla guerra camponesa manteve o movimento dos trabalhadores com apoio. Ao contrário dos relatos oficiais de Lênin, a insurreição agrária não foi de modo algum limitada a uma redistribuição da terra em lotes privados. Na Ucrânia, camponeses influenciados pelas milícias anarquistas de Nestor Makhno e guiados pela máxima comunista “de cada um de acordo com suas possibilidades; para cada um de acordo com suas necessidades”, estabeleceu muitas comunas rurais. Alhures, no norte e na Ásia Soviética, alguns milhares desses organismos foram estabelecidos, parcialmente na iniciativa dos Revolucionários da Esquerda Social e em larga escala como resultado dos impulsos coletivistas tradicionais que vinham das aldeias russas, o mir[23] Pouco importa se essas comunas eram numerosas ou abarcavam grande número de camponeses; a questão é que eram organismos populares autênticos, os núcleos de uma moral e espírito social que ficava muito acima dos valores desumanizantes da sociedade burguesa.

Os bolcheviques viam com desagrado esses organismos desde o começo e, por fim, os condenaram. Para Lênin, a forma de empreendimento agrícola preferida, a mais “socialista” estava representada pela fazenda estatal – uma fábrica agrícola na qual o Estado possuía a terra e os equipamentos, indicando gerentes que contratavam camponeses a um salário base. Vê-se nessas atitudes em relação ao controle operário e às comunas agrícolas essencialmente o espírito e a mentalidade burguesa que permeavam o Partido Bolchevique – espírito e mentalidade que não provieram somente de suas teorias, mas também de seu modo corporativo de organização. Em dezembro de 1918, Lênin lançou um ataque contra as comunas, com o pretexto de que os camponeses estavam sendo “forçados” a ingressar nelas. Na realidade, pouca, se não nenhuma coerção era usada para organizar essas formas comunistas de autogestão. Como Robert G. Wesson, que estudou as comunas soviéticas detalhadamente, conclui: “Aqueles que ingressavam em comunas tinham de tê-lo feito de sua própria vontade”. As comunas não foram suprimidas, mas seu crescimento foi desencorajado até que Stálin desapareceu com o desenvolvimento por inteiro nas coletivizações forçadas no fim dos anos vinte e início dos trinta.

Pela década de 1920, os bolcheviques isolaram-se da classe trabalhadora e campesinato russos. Tomadas juntas, a eliminação do controle operário, a supressão do Makhnovtsy[24], a atmosfera politicamente restritiva no país, a burocracia inflada e a esmagadora pobreza material herdada dos anos de guerra civil geraram uma profunda hostilidade ao comando bolchevique. Com o fim das hostilidades, um movimento surgiu das profundezas da sociedade russa para uma “terceira revolução” – não para restaurar a passada, como reivindicavam os bolcheviques, mas para realizar os verdadeiros objetivos de liberdade, tanto econômica como política, que reuniram as massas ao redor do programa bolchevique de 1917. O novo movimento encontrou sua forma mais consciente no proletariado de Petrogrado entre os marinheiros de Kronstadt. Ele também encontrou expressão no Partido: o crescimento de tendências anticentralistas e anarcossindicalistas entre os bolcheviques chegou a um ponto em que um bloco de grupo de oposição, favorável a essas questões, conquistou cento e vinte e quatro assentos na conferência provincial de Moscou, contra cento e cinquenta e quatro do Comitê Central.

Em 2 de março de 1921, os “marinheiros vermelhos” de Kronstadt se amotinaram, levantando a bandeira de uma “Terceira Revolução dos Troilers[25]”. O programa de Kronstadt centrava-se em demandas de eleições livres para os sovietes, liberdade de expressão e de imprensa para os anarquistas e partidos da esquerda socialista, sindicatos livres, e a libertação de todos os prisioneiros que pertencessem a partidos socialistas. As histórias mais vergonhosas eram fabricadas pelos bolcheviques para relatar essa insurreição, conhecidas em anos posteriores como mentiras descaradas. A revolta era caracterizada como uma “conspiração do Exército Branco”, apesar do fato de que a grande maioria dos membros do Partido Comunista em Kronstadt se juntou aos marinheiros – precisamente como comunistas – ao denunciar os líderes do partido como traidores da Revolução de Outubro. Como observa Robert Vincent Daniels em seu estudo dos movimentos oposicionistas bolcheviques: “Comunistas comuns eram de fato tão inconfiáveis… que o governo não contava com eles, seja no próprio ataque a Kronstadt ou na manutenção da ordem em Petrogrado, onde as esperanças de Kronstadt por apoio especificamente se depositavam. O principal grupo de tropas empregadas eram chekistas[26] e cadetes oficiais das escolas de treinamento do Exército Vermelho. O ataque final a Kronstadt foi liderado pelo funcionalismo superior do Partido Comunista – um grupo grande de delegados do Décimo Congresso do Partido foi deslocado para esse propósito”. Tão fraco era o regime internamente que a elite tinha de fazer ela mesma seu próprio trabalho sujo.

Ainda mais significativo que a revolta de Kronstadt foi o movimento grevista que se desenvolveu entre os trabalhadores de Petrogrado, um movimento que estimulou a insurreição dos marinheiros. Histórias leninistas não contam esse desdobramento criticamente importante. As primeiras greves estouraram em 23 de fevereiro de 1921. Em uma questão de dias, o movimento varreu fábrica após fábrica, até, em 28 de fevereiro, a famosa planta Putilov – o “bastião da Revolução” – entrou em greve. Não foram somente feitas exigências econômicas, os trabalhadores fizeram distintas exigências políticas, antecipando todas as exigências que seriam feitas pelos marinheiros de Kronstadt alguns dias depois. Em 24 de fevereiro, os bolcheviques declararam “estado de sítio” em Petrogrado e prenderam os líderes grevistas, suprimindo as manifestações dos “trabalhadores” com cadetes oficiais. O fato é que os bolcheviques não apenas suprimiram um “motim de marinheiros”; eles esmagaram a própria classe trabalhadora. Foi nesse momento que Lênin demandou o banimento de facções no Partido Comunista Russo. A centralização do Partido agora estava completa – e o caminho estava aberto para Stálin.

Discutimos esses eventos em detalhe porque eles levaram à conclusão de que o grupo recente de marxistas-leninistas tende a evitar: o Partido Bolchevique atingiu seu grau máximo de centralização no tempo de Lênin, não para lograr uma revolução ou suprimir a contrarrevolução do Exército Branco, mas para gerar uma contrarrevolução própria contra as verdadeiras forças sociais que ele professava representar. Facções foram proibidas e um partido monolítico criado não para evitar uma “restauração capitalista”, mas para conter um movimento de massas de trabalhadores pela democracia soviética e liberdade social. O Lênin de 1921 encontrava-se oposto ao Lênin de 1911.

Depois disso, Lênin simplesmente se perdeu. Esse homem que, acima de tudo, queria esconder os problemas de seu partido sob contradições sociais, encontrou-se literalmente apostando em um “jogo de azar” em uma última tentativa de parar a própria burocratização que ele havia criado. Não há nada mais patético e trágico que os últimos anos de Lênin. Paralisado por um grupo simplista de fórmulas marxistas, ele não pode pensar em nenhuma contramedida que não fosse organizacional. Ele propõe a formação de Inspeções de Operários e Camponeses para corrigir reformas burocráticas no Partido e no Estado – e esse grupo rui sob o controle de Stálin e torna-se altamente burocrático por si mesmo. Lênin então sugere que o tamanho das Inspeções de Operários e Camponeses seja reduzido e que ele seja unido à Comissão de Controle. Ele defende aumentar o Comitê Central. E assim vai: esse grupo é aumentado, aquele é juntado a outro, um terceiro é modificado ou abolido. O estanho balé de formas organizacionais continua até sua morte, como se o problema pudesse ser resolvido por meios organizacionais. Como Mosche Lewin, um admirador confesso de Lênin, admite, o líder bolchevique “abordou os problemas de governo mais como um chefe executivo de um pensamento estritamente ‘elitista’”. Ele não aplicou métodos de análise social ao governo e ficou satisfeito em considerá-lo puramente em termos de métodos organizacionais”.

Se é verdade que nas revoluções burguesas a “expressão ia além do conteúdo”, na revolução bolchevique as formas substituíram o conteúdo. Os sovietes substituíram os trabalhadores e seus comitês de fábricas, o Partido substituiu os sovietes, o Comitê Central substituiu o Partido, e o Departamento Político substituiu o Comitê Central. Em suma, meios substituíram fins. Essa incrível substituição de forma por conteúdo é um dos traços mais característicos do marxismo-leninismo. Na França, durante os eventos de maio e junho, todas as organizações bolcheviques estavam preparadas para destruir a assembleia estudantil da Sorbonne para aumentar sua influência e número de membros. Sua preocupação principal não era a revolução ou as formas sociais autênticas criadas pelos estudantes, mas o crescimento de seus próprios partidos.

Somente uma força poderia ter parado o crescimento da burocracia na Rússia: uma força social. Tivesse o proletariado e o campesinato russos o domínio de autogestão através do desenvolvimento de comitês de fábricas viáveis, comunas rurais e sovietes livres, a história do país talvez sofresse uma alteração dramaticamente diferente. Não pode haver dúvidas de que o fracasso das revoluções socialistas na Europa depois da Primeira Guerra Mundial levou ao isolamento da revolução na Rússia. A pobreza material da Rússia, juntamente com a pressão do mundo capitalista, claramente militou contra o desenvolvimento de uma sociedade socialista ou consistentemente libertária. De modo algum foi determinado que a Rússia tivesse de desenvolver-se com contornos de estado capitalista; ao contrário das expectativas iniciais de Lênin e Trótski, a revolução foi derrotada por forças internas, não pela invasão dos exércitos estrangeiros. Tivesse o movimento restaurado a partir de baixo as realizações da Revolução de 1917, um estrutura social multifacetada poderia ter se desenvolvido, baseada no controle operário da indústria, em uma economia de livre desenvolvimento camponês na agricultura, e em uma viva interação de ideias, programas e movimentos políticos. No mínimo, a Rússia não teria sido aprisionada em correntes totalitaristas e o stalinismo não teria envenenado o movimento revolucionário, abrindo caminho para o fascismo e a Segunda Guerra Mundial. O desenvolvimento do Partido Bolchevique, contudo, impediu esse desenvolvimento – apesar das “boas intenções” de Lênin e Trótski. Destruindo o poder dos comitês de fábricas na indústria e esmagando o Makhnovtsy, os trabalhadores de Petrogrado e os marinheiros de Kronstadt, os bolcheviques garantiram virtualmente o triunfo da burocracia na sociedade russa. O partido centralizado – uma instituição completamente burguesa – tornou-se refúgio da contrarrevolução em sua forma mais sinistra. Essa foi uma contrarrevolução coberta que se vestia com a bandeira vermelha e a terminologia de Marx. Por último, o que os bolcheviques suprimiram em 1921 não foi uma “ideologia” ou uma “conspiração do Exército Vermelho”, mas uma luta fundamental do povo russo para se libertar de suas algemas e “tomar o controle de seu próprio destino”.[27] Para a Rússia, isso significava o pesadelo da ditadura stalinista; para a geração dos anos trinta, significava o horror do fascismo e a traição dos partidos comunistas na Europa e nos Estados Unidos.

[editar]As duas tradições

Seria uma ingenuidade incrível supor que o leninismo foi produto de um único homem. A doença encontra-se muito mais profundamente, não nas limitações da teoria marxista, mas nas limitações da era social que produziu o marxismo. Se isso não for claramente entendido, permaneceremos tão cegos à dialética de eventos hoje em dia como Marx, Engels, Lênin e Trótski eram em suas épocas. Para nós, essa cegueira será repreensível com maior razão, porque atrás de nós se situa uma riqueza de experiência que faltava a esses homens no desenvolvimento de suas teorias.

Karl Marx e Friedrich Engels eram centralizadores – não somente política, mas também social e economicamente. Eles nunca negaram esse fato e seus escritos estão cheios de entusiasmados louvores à centralização política, organizacional e econômica. Como em março de 1850, em sua famosa “Mensagem da Direção Central da Liga Comunista”, eles convocam os trabalhadores a lutar não somente pela “única e indivisível república alemã, mas também lutar nela pela mais resoluta centralização de poder nas mãos da autoridade estatal”. Para que a reivindicação não seja superficialmente tomada, é repetida continuamente no mesmo parágrafo, que conclui: “Como na França de 1793, assim hoje na Alemanha a realização da centralização estrita é a tarefa do verdadeiro partido revolucionário”.

O mesmo tema reaparece continuamente em anos seguintes. Com a deflagração da Guerra franco-prussiana, por exemplo, Marx escreve a Engels: “A França precisa de uma surra. Se os prussianos vencerem, a centralização de poder estatal será útil para a centralização da classe trabalhadora alemã”.

Marx e Engels, contudo, não eram centralizadores por acreditar nas virtudes da centralização por si só. Pelo contrário: o marxismo e o anarquismo sempre concordaram com uma sociedade libertada e comunista vinculada a uma ampla descentralização, à dissolução da burocracia, à abolição do Estado, e à dispersão das cidades grandes. “A abolição da antítese entre cidade e campo simplesmente não é possível”, escreve Engels em Anti-Düring. “Ela se tornou uma necessidade direta… o presente envenenamento do ar, água e solo somente pode ter um fim com a fusão da cidade e do campo…”. Para Engels, isso envolve uma “distribuição uniforme da população pelo país inteiro” – em suma, a descentralização física das cidades.

As origens da centralização marxista estão entre os problemas que surgem da criação do Estado nacional. Até meados da segunda metade do século XIX, Alemanha e Itália estavam divididas em ducados, principados e reinos independentes. A consolidação dessas unidades geográficas em nações unificadas, acreditavam Marx e Engels, era uma condição sine qua non[28] para o desenvolvimento da indústria moderna e do capitalismo. Seu elogio à centralização não foi produzido por alguma mística centralizadora, mas pelos eventos do período em que viveram – o desenvolvimento de tecnologia, comércio, uma classe trabalhadora unificada, e o Estado nacional. Sua preocupação com esse assunto, em suma, é com a emergência do capitalismo, com as tarefas da revolução burguesa em uma era de inevitável escassez material. Por outro lado, a abordagem de Marx para a “revolução proletária”é notadamente diferente. Ele exaltava entusiasticamente a Comuna de Paris como um “modelo para todos os centros industrias franceses”. “Esse regime”, escreve, “uma vez estabelecido em Paris e nos centros secundários, o velho governo centralizado teria de, também nas províncias, dar lugar ao autogoverno dos produtores.” A unidade da nação, verdade, não desapareceria, e um governo central existiria durante a transição para o comunismo, mas suas funções seriam limitadas.

Nosso objetivo não é alternar entre citações de Marx e Engels, mas enfatizar como princípios chave do marxismo – que são aceitos até hoje tão passivamente – eram na realidade o produto de uma era que foi há muito ultrapassada pelo desenvolvimento do capitalismo nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Em sua época, Marx não estava preocupado somente com os problemas de uma “revolução proletária”, mas também com os problemas da revolução burguesa em Alemanha, Espanha, Itália e Europa Ocidental. Ele tratou de problemas de transição do capitalismo para o socialismo em países que não tinham avançado muito além da tecnologia do carvão e aço da Revolução Industrial, e com os problemas de transição do feudalismo para o capitalismo em países que tinham escassamente avançado além de artesanato e das corporações de ofício. Para expressar essas preocupações mais amplamente, Marx estava, acima de tudo, mais ocupado com as pré-condições de liberdade (desenvolvimento tecnológico, unificação nacional, abundância material) do que com as condições de liberdade (descentralização, a formação de comunidades, a escala humana, democracia direta). Suas teorias estavam ainda baseadas no campo da sobrevivência, não no campo da vida.

Uma vez que isso seja compreendido, é possível colocar o legado teórico de Marx em uma perspectiva significativa – separar suas ricas contribuições de suas algemas historicamente limitadas, até mesmo paralisantes, de sua época. A dialética marxista, as muitas compreensões seminais providas pelo materialismo histórico, a ótima crítica da relação mercantil, muitos elementos das teorias econômicas, e, acima de tudo, a noção de que a liberdade tem pré-condições materiais – essas são contribuições permanentes ao pensamento revolucionário.

Contudo, a ênfase Marx no proletariado industrial como o “agente” da mudança revolucionária, sua “análise de classe” ao explicar a transição de uma sociedade de classes para uma sem classes, seu conceito de “ditadura do proletariado”, sua ênfase na centralização, sua teoria de desenvolvimento capitalista (que tende a misturar estado capitalista com socialismo), sua defesa de ação política através de partidos eleitorais – esses e muitos conceitos relacionados são falsos no contexto de nosso tempo e iludem, como devemos ver, mesmo em nossos próprios dias. Eles emergem das limitações de sua visão – mais propriamente, das limitações de seu tempo. Eles fazem sentido somente se se lembrar que Marx considerava o capitalismo como historicamente progressista, como um estágio indispensável para o desenvolvimento do socialismo, e têm aplicação prática somente para um tempo em que a Alemanha em particular era confrontada por objetivos burgueses-democráticos e pela unificação nacional. (Não estamos tentando dizer que Marx estava correto em manter essa abordagem, somente que essa abordagem faz sentido quando vista em seu próprio tempo e local).

Assim como a Revolução Russa incluía um movimento subterrâneo das “massas” que conflitavam com o bolchevismo, existe um movimento subterrâneo na história que conflita como todos os sistemas de autoridade. Esse movimento chegou a nosso tempo sob o nome de “anarquismo”, apesar de nunca ter sido abarcado por uma única ideologia ou conjunto de textos sagrados. O anarquismo é um movimento libidinoso da humanidade contra a coerção sob qualquer forma, remontando aos tempos da própria emergência da sociedade proprietária, de domínio de classe e do Estado. Desse período em diante, os oprimidos resistiram a todas as formas de procurar aprisionar o desenvolvimento de ordem social espontânea. O anarquismo veio a primeiro plano da arena social em períodos de maior transição de uma era histórica para outra. O declínio do mundo antigo e feudal testemunhou a insurreição de movimentos de massa, em alguns casos de caráter imoderadamente dionisíaco, que exigiram o fim de todos os sistemas de autoridade, privilégio e coerção.

Os movimentos anárquicos do passado fracassaram em grande medida porque a escassez material, em função da tecnologia rudimentar, contaminou uma harmonização orgânica de interesses humanos. Qualquer sociedade que pôde prometer materialmente um pouco mais que a igualdade na pobreza invariavelmente provocou que tendências profundamente assentadas reconstituíssem um novo sistema de privilégios. Na ausência de uma tecnologia que pudesse reduzir consideravelmente o dia de trabalho, a necessidade de trabalhar contaminou instituições sociais baseadas na autogestão. Os girondinos da Revolução Francesa notaram astutamente que poderiam usar o dia de trabalho contra a Paris revolucionária. Para tentar excluir os elementos radicais das seções, eles tentaram decretar uma lei que terminaria todas as assembleias antes das dez horas da noite, o horário em que os trabalhadores parisienses deixavam seus empregos. De fato, não foram somente as técnicas manipuladoras e a traição das organizações de “vanguarda” que deram cabo às fases anárquicas das revoluções do passado, foram também os limites materiais das eras passadas. As “massas” sempre foram compelidas a retornar a uma vida de trabalho pesado e foram raramente livres para estabelecer órgãos de autogestão que pudessem durar além da revolução.

Contudo, anarquistas como Bakunin e Kropotkin não estavam errados de modo algum ao criticar Marx por sua ênfase na centralização e suas noções elitistas de organização. A centralização era absolutamente necessária para avanços tecnológicos no passado? O Estado-nação era indispensável para a expansão do comércio? O movimento operário se beneficiou da emergência de empreendimentos econômicos altamente centralizados e do Estado “indivisível”? Tendemos a aceitar essas doutrinas do marxismo muito passivamente, em grande parte porque o capitalismo se desenvolveu em uma arena política centralizada. Os anarquistas do século passado avisaram que a abordagem centralizadora de Marx, até o ponto em que afetou os eventos da época, fortaleceria tanto a burguesia e o aparato estatal que a destruição do capitalismo se tornaria extremamente difícil. O partido revolucionário, reproduzindo essas características centralizadoras e hierárquicas, reproduziria a hierarquia e o centralização na sociedade pós-revolucionária.

Bakunin, Kropotkin e Malatesta não eram tão ingênuos para acreditar que o anarquismo pudesse ser estabelecido da noite para o dia. Ao atribuir essa opinião a Bakunin, Marx e Engels distorceram propositadamente as visões dos anarquistas russos. Os anarquistas do século passado também não acreditavam que a abolição do Estado envolveria “baixar armas” imediatamente após a revolução, para usar a escolha obscurantista de termos de Marx, repetida continuamente por Lênin em Estado e Revolução. Na verdade, muito do que se passa por “marxismo” em Estado e Revolução é puro anarquismo – por exemplo, a substituição de milícias revolucionárias por grupos armados profissionais e a substituição de órgãos de autogestão por grupos parlamentares. O que é a autenticamente marxista no panfleto de Lênin é a reivindicação de “centralização estrita”, a aceitação de uma “nova burocracia”, e a identificação dos sovietes com um Estado.

Os anarquistas do século passado estavam profundamente preocupados com a questão de realizar a industrialização sem esmagar o espírito revolucionário das “massas” ou criar novos obstáculos à emancipação. Eles temiam que a centralização reforçasse a capacidade de resistência da burguesia à revolução e instilasse nos trabalhadores um senso de obediência. Eles tentaram resgatar todas as formas comunais pré-capitalistas (como a mir russa e o pueblo espanhol) que pudessem prover uma rampa para uma sociedade livre, não somente em um sentido estrutural, mas também em espiritual. Assim, eles enfatizaram a necessidade da descentralização mesmo sob o capitalismo. Em contraste aos partidos marxistas, suas organizações davam atenção considerável ao que eles chamavam de “educação integral” – o desenvolvimento de um homem inteiro – para neutralizar a influência degradante e banalizadora da sociedade burguesa. Os anarquistas tentaram viver sob valores do futuro na medida em que isso era possível sob o capitalismo. Eles acreditavam na ação direta para promover a iniciativa das “massas”, para preservar o espírito de revolta, para encorajar a espontaneidade. Eles tentaram desenvolver organizações baseadas em ajuda mútua e fraternidade, nas quais o controle seria exercido de baixo para cima, não de cima para baixo.

Temos de parar aqui para examinar a natureza de formas organizacionais anarquistas em detalhes, somente porque o assunto foi obscurecido por uma espantosa quantidade de besteiras. Anarquistas, ou, ao menos, anarcocomunistas, aceitam a necessidade de organização.[29] É tão absurdo ter de repetir essa questão quanto discutir sobre se Marx aceitava a necessidade da revolução social.

A verdadeira questão em debate aqui não é organização versus não organização, mas mais que tipo de organização os anarcocomunistas tentam estabelecer. O que os diferentes tipos de organizações anarcocomunistas têm em comum são os desenvolvimentos orgânicos a partir de baixo, não são corpos planejados a partir de cima. Eles são movimentos sociais, combinando um estilo de vida revolucionário criativo com uma teoria revolucionária criativa, não partidos políticos cujo modo de vida é indistinguível do ambiente burguês ao redor e cuja ideologia é reduzida a rígidos “programas experimentados e testados”. Tanto quanto é humanamente possível, eles tentam refletir a sociedade libertada que procuram realizar, não reproduzir escravamente o sistema prevalente de hierarquia, classe e autoridade. Eles são construídos ao redor de íntimos grupos de irmãos e irmãs – grupos de afinidade – cuja capacidade de agir em comum é baseada em iniciativa, em convicções livremente atingidas, e em profundo envolvimento pessoal, não ao redor de um aparato burocrático engrossado por uma militância submissa e manipulada a partir de cima por uma porção de líderes oniscientes.

Os anarcocomunistas não negam a necessidade de coordenação entre grupos, de disciplina, de planejamento meticuloso e de unidade na ação. Mas eles acreditam que coordenação, disciplina, planejamento e unidade na ação devem ser alcançados voluntariamente, por meio de uma autodisciplina fomentada por convicção e entendimento, não por coerção e obediência absoluta e inquestionável de ordens superiores. Eles procuram alcançar a efetividade imputada à centralização por meio de voluntariedade e compreensão, não pelo estabelecimento de uma estrutura hierárquica e centralizada. Dependendo das necessidades ou circunstâncias, os grupos de afinidade podem alcançar essa efetividade através de assembleias, comitês de ação e conferências locais, regionais ou nacionais. Ele eles se opõem vigorosamente ao estabelecimento de uma estrutura organizacional que se torne um fim em si, de comitês que se demoram depois que suas tarefas práticas foram completadas, de uma “liderança” que reduz o “revolucionário” a um robô estúpido.

Essas conclusões não são resultado de impulsos levianos “individualistas”; pelo contrário, elas emergem de um estudo minucioso das revoluções passadas, do impacto que partidos centralizados tiveram no processo revolucionário, e da natureza da mudança social em uma era de potencial abundância material. Anarcocomunistas procuram preservar e estender a fase anárquica que abre todas as grandes revoluções sociais. Ainda mais que os marxistas, reconhecem que as revoluções são produzidas por profundos processos históricos. Nenhum comitê central “faz” uma revolução social; no melhor dos casos, ele pode promover um golpe de estado, substituindo uma hierarquia por outra – ou pior, barrar um processo revolucionário se exercer alguma influência muito disseminada. Um comitê central é um órgão para adquirir poder, criar poder, para pegar para si o que as “massas” realizam por seus próprios esforços revolucionários. É necessário ser cego para tudo que aconteceu nos dois séculos passados para não se reconhecer esses fatos essenciais.

No passado, os marxistas podiam fazer uma inteligível (ainda que inválida) reivindicação de um partido centralizado, porque a fase anárquica da revolução era anulada pela escassez material. Economicamente, as “massas” sempre foram compelidas a retornar a uma vida diária de trabalho duro. A revolução fechada às dez da noite, exatamente ao lado das intenções reacionárias dos girondinos de 1793, foi barrada pelo baixo nível da tecnologia. Hoje, mesmo essa justificativa foi excluída pelo desenvolvimento de uma tecnologia pós-escassez, notadamente nos EUA e Europa Ocidental. Chegou um ponto em que as “massas” podem começar, quase da noite para o dia, a expandir drasticamente o “campo da liberdade”, no sentido marxista – para adquirir o tempo livre necessário para atingir o mais alto nível de autogestão.

O que os eventos de maio e junho na França demonstraram não foi a necessidade de um partido tipo bolchevique, mas a necessidade de maior consciência entre as “massas”. Paris demonstrou que uma organização é necessária para propagar ideias sistematicamente – e não ideias sozinhas, mas ideias que promovam o conceito de autogestão. O que faltou às “massas” francesas não foi um comitê central para organizar ou comandá-las, mas a convicção de que elas poderiam ter operado as fábricas, ao invés de ocupá-las somente. Vale a pena ressaltar que nem um único partido tipo bolchevique reivindicou a autogestão. A reivindicação foi feita somente pelos anarquistas e situacionistas.

Há uma necessidade por uma organização revolucionária – mas sua função deve ser sempre mantida claramente em mente. Sua primeira tarefa é a propaganda, para “explicar pacientemente”, como colocou Lênin. Em uma situação revolucionária, a organização revolucionária apresenta as mais avançadas reivindicações: ela está preparada para toda mudança de eventos para formular – na forma mais concreta – a tarefa imediata que deve ser desempenhada para o processo revolucionário avançar. Ela fornece os elementos mais nítidos em ação e nos órgãos de tomada de decisão da revolução.

De que modo, então, grupos anarcocomunistas diferem do tipo bolchevique de partido? Certamente não nas em questões como a necessidade de organização, planejamento, coordenação, propaganda em todas as suas formas ou na necessidade de um programa social. Fundamentalmente, eles diferem do tipo bolchevique de partido em sua crença de que revolucionários genuínos devem funcionar dentro de estruturas de formas criadas pela revolução, não pelo partido. O que isso significa é que seu comprometimento se dá aos órgãos revolucionários de autogestão, não à “organização” revolucionária; às formas sociais, não às formas políticas. Anarcocomunistas buscam persuadir os comitês de fábricas, assembleias ou sovietes para fazerem-se órgãos genuínos de autogestão popular, não dominá-los, manipulá-los ou prender todos a um partido político onisciente. Anarcocomunistas não buscam criar uma estrutura estatal sobre esses órgãos revolucionários populares, mas, pelo contrário, dissolver todas as formas organizacionais desenvolvidas no período pré-revolucionário (incluindo as suas próprias) para dar lugar a esses órgãos genuinamente revolucionários.

Essas diferenças são decisivas. A despeito de sua retórica e slogans, os bolcheviques russos nunca acreditaram nos sovietes; eles os consideravam instrumentos do Partido Bolchevique, uma atitude que os trotskistas franceses lealmente reproduziram em suas relações com a assembleia de estudantes da Sorbonne, os maoístas franceses com os sindicatos franceses, e os grupos da Velha Esquerda com o SDS. Por volta de 1921, os sovietes estavam virtualmente mortos, e todas as decisões eram tomadas pelo Comitê Central Bolchevique e do Departamento Político. Os anarcocomunistas não buscam somente evitar que os partidos marxistas repitam isso; eles também desejam evitar que sua própria organização tenha um papel similar. Do mesmo modo, eles tentam evitar que burocracia, hierarquia e elites dominem seu meio. Não menos importante, eles tentam refazer-se; extirpar de suas personalidades aqueles traços autoritários e propensões elitistas que são assimiladas na sociedade hierárquica quase desde o nascimento. O interesse do movimento anarquista com o estilo de vida não é meramente uma preocupação com sua própria integridade, mas com a integridade da própria revolução.[30]

No meio de todas essas confusas correntes ideológicas de nosso tempo, uma questão sempre permanece em primeiro plano: para que diabos estamos tentando fazer uma revolução? Estamos tentando fazer uma revolução para criar novamente hierarquia, mantendo um futuro sombrio de liberdade futura diante dos olhos da humanidade? É para promover mais avanços tecnológicos, criar uma abundância ainda maior de bens que a hoje existente? É para levar o PL ao poder? Ou o Partido Comunista? Ou o Partido Socialista dos Trabalhadores? É para emancipar abstrações como “O Proletariado”, “O Povo”, “História”, “Sociedade”?

Ou é para finalmente dissolver a hierarquia, domínio de classe e coerção – para fazer possível que cada indivíduo ganhe controle de sua vida cotidiana? É para fazer cada momento tão maravilhoso quanto possa ser e a extensão de vida de cada indivíduo uma experiência totalmente consumada? Se o verdadeiro objetivo da revolução é levar o homem neandertal do PL ao poder, não vale a pena fazê-la. Precisamos discutir bastante as inócuas questões de se o desenvolvimento individual pode ser separado do desenvolvimento social e comunal; obviamente os dois se dão juntos. A base para um ser humano completo é uma sociedade bem acabada; a base para um ser humano livre é uma sociedade livre.

Com essas questões de lado, ainda encaramos a questão que Marx levantou em 1850: quando começaremos a pegar nossa poesia do futuro, ao invés de do passado? Deve ser permitido que o morto enterre o morto. O marxismo está morto porque é baseado em uma era de escassez material, limitada em suas possibilidades pela carência material. A mais importante mensagem do marxismo é que a liberdade tem pré-condições materiais – devemos sobreviver para viver. Com o desenvolvimento de uma tecnologia que não poderia ter sido concebida nem pela mais mirabolante ficção científica nos dias Marx, a possibilidade de uma sociedade pós-escassez agora se encontra à nossa frente. Todas as instituições da sociedade proprietária – domínio de classe, hierarquia, a família patriarcal, burocracia, a cidade, o Estado – se exauriram. Hoje, a descentralização não é somente desejável como meio de restaurar a escala humana, é necessária para criar novamente uma ecologia viável, para proteger a vida neste planeta de poluentes destrutivos e erosão do solo, para preservar uma atmosfera respirável e o equilíbrio da natureza. A promoção de espontaneidade é necessária se a revolução social deve colocar cada indivíduo no controle de sua vida cotidiana.

As antigas formas de luta não desaparecem totalmente com a decomposição da sociedade de classes, mas estão sendo ultrapassadas pela discussão de uma sociedade sem classes. Não pode haver nenhuma revolução social sem atingir os trabalhadores, por isso eles têm de ter nossa solidariedade ativa em toda luta que empreendem contra a exploração. Lutamos contra crimes sociais onde quer que ocorram – e exploração industrial é um crime social completo. Mas assim são o racismo, a negação do direito de autodeterminação, o imperialismo e a pobreza – e assim são a poluição, a urbanização sem condições, a perniciosa socialização dos jovens e a repressão sexual. No que diz respeito ao problema de ganhar a classe trabalhadora para a revolução, devemos ter em mente que uma pré-condição para a existência da burguesia é o desenvolvimento do proletariado. O capitalismo como um sistema social pressupõe a existência de ambas as classes e é perpetuado pelo desenvolvimento de ambas as classes. Começamos a minar as premissas de domínio de classe na medida em que libertamos as classes não burguesas, ao menos institucionalmente, psicologicamente e culturalmente.

Pela primeira vez na história, a fase anárquica que abriu todas as grandes revoluções do passado pode ser preservada como uma condição permanente pelo avanço da tecnologia de nosso tempo. As instituições anárquicas dessa fase – as assembleias, os comitês de fábrica – podem ser estabilizados como os elementos de uma sociedade libertada, como os elementos de um novo sistema de autogestão. Construiremos um movimento que possa defendê-las? Podemos criar uma organização de grupos de afinidades que seja capaz de dissolver-se dentro dessas instituições revolucionárias? Ou construiremos um partido hierárquico, centralizado e burocrático que tentará dominá-las, suplantá-las e, ao final, destruí-las?

Escuta, marxista: a organização que tentamos construir é o tipo de sociedade que nossa revolução criará. Ou largamos o passado – em nós mesmos, assim como em nossos grupos – ou simplesmente não haverá futuro para conquistar.


Nova Iorque

Maio de 1969

Notas

  1. ↑ Partido estadunidense que pode ser traduzido por Partido Progressista Trabalhador Maoísta, cuja sigla é PLP (muita usada por Bookchin e que será mantida na forma original nesta tradução). Fundado em 1961 por uma dissidência do Partido Comunista dos EUA, existe até hoje (N. do T.).

  2. ↑ Students for a Democratic Society, Estudantes por uma Sociedade Democrática, movimento estudantil estadunidense de esquerda (a chamada New Left) existente nos anos 1960. (N. do T.)

  3. ↑ Essas linhas foram escritas quando o Partido Progressista Trabalhador (PLP) exercia uma grande influência na SDS. Apesar de o PLP ter perdido agora a maior parte de sua influência no movimento estudantil, a organização ainda é um bom exemplo da mentalidade e dos valores prevalentes na Velha Esquerda. A caracterização acima é igualmente válida para a maior parte dos grupos marxista-leninistas, assim essa passagem e outras referências ao PLP não foram substancialmente alteradas.

  4. ↑ O Dodge Revolutionary Union Movement, parte da Liga dos Trabalhadores Negros Revolucionários de Detroit.

  5. ↑ O marxismo é acima de tudo uma teoria de prática, ou, para colocar esta relação em sua perspectiva correta, uma prática de teoria. Esse é o verdadeiro significado das transformações da dialética por Marx, que tomou isso da dimensão subjetiva (para a qual os Jovens Hegelianos ainda tentaram confinar a visão de Hegel) para o objetivo, de uma crítica filosófica para ação social. Se a teoria e a prática se separarem, o marxismo não será morto, ele cometerá suicídio. Essa é a mais admirável e digna característica. As tentativas dos cretinos que seguem o caminho de Marx de manter vivo o sistema com retalhos e emendas, exegese, e “conhecimento” meia-boca à la Maurice Dobb e George Novack são degradantes insultos ao nome de Marx e uma repulsiva poluição de tudo que ele sustentava.

  6. ↑ Na verdade, os marxistas façam pouco sobre a “crise [econômica] crônica do capitalismo” hoje em dia – apesar do fato de esse conceito compor o foco das teorias econômicas de Marx.

  7. ↑ Por razões ecológicas, não aceitamos a noção da “dominação da natureza pelo homem” no sentido simplista que foi transmitido por Marx um século atrás. Para uma discussão desse problema, ver Ecologia e Pensamento Revolucionário.

  8. ↑ É irônico que os marxistas que falam sobre o “poder econômico” do proletariado estejam, na verdade, ecoando a opinião dos anarcossindicalistas, uma opinião a que Marx se opôs asperamente. Marx não estava preocupado com o “poder econômico” do proletariado, mas com seu poder político; particularmente com o fato de que ele se tornou a maioria da população. Ele estava convencido de que os trabalhadores industriais seriam guiados à revolução primeiramente pela destituição material que sucederia a tendência de acumulação capitalista; de modo que, organizado pelo sistema da fábrica e disciplinado por uma rotina industrial, eles seriam capazes de constituir sindicatos e, acima de tudo, partidos políticos, que em alguns países seriam obrigados a usar métodos insurrecionários e, em outros (Inglaterra, Estados Unidos e, anos depois, acrescentou Engels, França) poderiam chegar ao poder através de eleições e legislar para colocar em prática o socialismo. Distintamente, o Progressive Labor Party esteve com os leitores do Challenge [jornal bi-semanal do PLP (N. do T.)], deixando observações importantes não traduzidas, ou distorcendo grosseiramente a intenção de Marx.

  9. ↑ Este é um bom local para descartar a noção de que qualquer um é um “proletário” que não tem nada a vender, exceto seu poder de trabalho. É verdade que Marx definiu o proletariado nesses termos, mas ele também elaborou uma dialética histórica sobre o desenvolvimento do proletariado. O proletariado se desenvolve a partir de uma classe explorada e sem propriedades, alcançando sua mais avançada forma no proletariado industrial, que corresponde à mais avançada forma de capital. Nos anos seguintes de sua vida, Marx veio a desprezar os trabalhadores parisienses, que estavam comprometidos principalmente na produção de bens de luxo, citando “nossos trabalhadores alemães” – o tipo mais robô da Europa – como o proletariado “modelo” do mundo.

  10. ↑ A tentativa de descrever a teoria da imiseração em termos internacionais, ao invés de nacionais (como o fez Marx), é puro subterfúgio. Em primeiro lugar, esse truque teórico simplesmente tenta colocar à parte a questão de por que a imiseração não ocorreu dentro dos baluartes do capitalismo, as únicas áreas que formam um ponto de partida tecnologicamente adequado para uma sociedade sem classes. Se prendermos nossas esperanças no mundo colonial como “o proletariado”, essa posição esconde um perigo muito real: genocídio. Os Estados Unidos e sua recente aliada, a Rússia, têm todos os meios técnicos para colocar o mundo subdesenvolvido em submissão por seu poder bélico. Uma ameaça espreita no horizonte histórico – o desenvolvimento dos Estados Unidos como um império verdadeiramente fascista do tipo nazista. É besteira absoluta dizer que este país é um “tigre de papel” [expressão usada por Mao Tse-Tung se referindo aos EUA, em 1956 (N. do T.)]. Ele é um tigre termomolecular e a classe dominante americana, carecendo de qualquer limitação moral, é capaz até mesmo de ser mais cruel que a alemã.

  11. ↑ Lênin o percebeu e descreveu “socialismo” como “nada mais que um monopólio do estado capitalista feito para beneficiar todo o povo”. Essa é uma afirmação extraordinária, se se estudam suas implicações, e uma grande contradição.

  12. ↑ Sobre essa questão, a Velha Esquerda projeta sua própria imagem neandertal no trabalhador americano. Na verdade, essa imagem se aproxima mais do personagem do burocrata sindical ou do comissário stalinista.

  13. ↑ No original, “workerness”, entre aspas. Deve ser entendido como um neologismo que se refere ao trabalho. (N. do T.)

  14. ↑ O trabalhador, nesse sentido, começa a se aproximar dos tipos humanos socialmente transicionais que proveram a história com seus elementos mais revolucionários. Geralmente, o “proletariado” foi mais revolucionário em períodos transicionais, quando ele era menos “proletarizado” psiquicamente pelo sistema industrial. Os grandes focos das resoluções clássicas dos trabalhadores foram Petrogrado e Barcelona – lá os trabalhadores foram diretamente desarraigados de uma prática camponesa – e Paris – lá eles ainda se baseavam em ofícios, ou vinham diretamente de uma prática de ofícios. Esses trabalhadores tinham a maior dificuldade em se aclimatar à dominação industrial e se tornaram uma fonte contínua de inquietação social e revolucionária. Por outro lado, a classe trabalhadora hereditariamente estável tendia a ser surpreendentemente não revolucionária. Mesmo no caso de trabalhadores alemães que eram citados por Marx e Engels como modelos para o proletariado europeu, a maioria não apoiava os espartaquistas de 1919. Eles retornaram como ampla maioria de social-democratas no Congresso de Conselhos de Trabalhadores, e no Reichstag anos depois, e se reuniam consistentemente sob o Partido Social Democrata em 1933.

  15. ↑ Escolas que ensinam certas características para ter certos empregos. Semelhante a um curso técnico. (N. do T.)

  16. ↑ Esse estilo de vida revolucionário pode se desenvolver nas fábricas assim como nas ruas, em escolas assim como em crash pads [tipo de habitação coletiva parecida com okupas, e squats (N. do T.)], nos subúrbios assim como no leste da área da baía de San Francisco. Sua essência é a rebeldia, e uma “propaganda pelo ato” pessoal que corrói todas as tradições, instituições e lemas de dominação. À medida que a sociedade começa a se aproximar do princípio do período revolucionário, as fábricas, escolas e bairros tornam-se a verdadeira arena da “brincadeira” revolucionária – uma “brincadeira” que tem um núcleo muito sério. Greves tornam-se uma condição crônica e são convocadas por seu próprio interesse de quebrar a aparência da rotina, para desafiar a sociedade quase de hora em hora, para quebrar o ânimo da normalidade burguesa. Esse novo ânimo dos trabalhadores, estudantes e pessoas dos bairros é um precursor vital ao verdadeiro momento da transformação revolucionária. Sua mais consciente expressão é a reivindicação de “autogestão”; o trabalhador recusa-se a ser um ser “gestionado”, um ser de classe. Esse processo foi mais evidente na Espanha, às vésperas da revolução de 1936, quando trabalhadores em quase todo município e cidade convocaram greves “por prazer” – para expressar sua independência, seu senso de despertar, sua quebra com a ordem social e com as condições de vida burguesas. Foi também uma característica essencial da greve geral de 1968 na França.

  17. ↑ A característica mais impressionante das revoluções do passado é que […]. Um fato que Trótski nunca compreendeu. Ele nunca investigou satisfatoriamente as consequências de seu conceito próprio de “desenvolvimento combinado” às suas conclusões lógicas. Ele viu (um pouco corretamente) que a Rússia czarista, o último país no desenvolvimento burguês europeu, necessariamente obteve as mais avançadas formas industriais e de classe ao invés de começar o desenvolvimento burguês desde o início. Ele negligenciou considerar aquela Rússia, dilacerada por grandes sublevações internas, pudesse correr à frente do desenvolvimento capitalista de algum lugar da Europa. Hipnotizado pela fórmula “propriedade nacionalizada é igual a socialismo”, ele falhou em reconhecer que o próprio capitalismo monopolista tende a se juntar ao Estado por sua própria dialética interna. Os bolcheviques, tendo acabado com as formas tradicionais de organização burguesas (que ainda agem como controle no desenvolvimento do Estado capitalista na Europa e na América), inadvertidamente prepararam o terreno para o desenvolvimento “puro” de um estado capitalista no qual o Estado finalmente torna-se a classe dominante. Carecendo de apoio de uma Europa tecnologicamente avançada, a Revolução Russa tornou-se uma contrarrevolução interna; a Rússia Soviética tornou-se uma forma de estado capitalista que não “beneficia todo o povo”. A analogia de Lênin entre “socialismo” e capitalismo de estado torna-se uma aterrorizante realidade com Stálin. A despeito de seu núcleo humanista, o marxismo falhou em compreender o quanto seu conceito de “socialismo” se aproxima de um estágio avançado do próprio capitalismo – o retorno de formas mercantis em um nível industrial mais alto. O fracasso de entendimento desse desenvolvimento levou a uma confusão teórica devastadora no movimento revolucionário contemporâneo, como testemunha de rachas entre os trotskistas a respeito dessa questão.

  18. ↑ O Movimento 22 de Março funcionou como um agente catalisador nos eventos, não como liderança. Ele não comandou; ele instigou, deixando um livre desenrolar para os acontecimentos. Esse livre desenrolar, que permitiu aos estudantes agirem em seu próprio momento, foi indispensável para a dialética da insurreição, pois, sem ele, não haveria barricadas em 10 de maio, que, por sua vez, impulsionaram a greve geral dos operários.

  19. ↑ Ver “The Forms of Freedom” (“As Formas de Liberdade”).

  20. ↑ Como uma arrogância sublime, que é tributável parcialmente à ignorância, alguns grupos marxistas queriam nomear de “sovietes” praticamente todas as formas de autogestão acima. A tentativa de trazer todas essas diferentes formas sob um único nome não é o único engano intencionalmente obscurantista. Os verdadeiros sovietes eram as formas menos democráticas da revolução e os bolcheviques os usavam astutamente para transferir poder a seu próprio partido. Os sovietes não eram baseados em democracia cara a cara, como as seções parisienses ou as assembleias estudantis de 1968. Nem eram baseados em autogestão econômica, como os comitês de fábricas espanhóis anarquistas. Os sovietes formavam, na verdade, um parlamento de trabalhadores, um órgão hierárquico que retirava sua representação de fábricas e, depois, de unidades militares e aldeias camponesas.

  21. ↑ Tratado de paz entre o governo bolchevique e os países da Tríplice Aliança, marcando a saída da Rússia da Primeira Guerra Mundial. (N. do T.)

  22. ↑ V. I. Lenin, “The Immediate Tasks of the Soviet Government,” em Obras Selecionadas, vol. 7 (International Publishers; New York, 1943), p. 342. Nesse ríspido artigo, publicado em abril de 1918, Lênin abandonava completamente a perspectiva libertária a que tinha avançado no ano anterior em “Estado e Revolução”. Os temas principais do artigo são a necessidade de “disciplina”, de controle autoritário sobre as fábricas, e da instituição do sistema Taylor [Taylorismo, sistema para aumentar a produção industrial (e os lucros, originalmente) (N. do T.)] (um sistema que Lênin denunciara antes, pois escravizaria o homem à máquina). O artigo foi escrito durante um período relativamente pacífico do governo bolchevique, cerca de dois meses depois da assinatura do Tratado de Brest-Litovsk, e um mês antes da revolta da Legião Tcheca no Ural – a revolta que começou a guerra civil em larga escala e abriu o período de intervenção direta dos Aliados na Rússia. Por fim, o artigo foi escrito perto de um ano antes da derrota da revolução alemã. Seria difícil ter em conta as “Tarefas Imediatas” somente em termos da guerra civil russa e do fracasso da revolução européia.

  23. ↑ ”Mir”, em russo, pode significar “sociedade”. Eram comunidades agrárias camponesas. (N. do T.)

  24. ↑ Exército Insurrecionário Revolucionário da Ucrânia, de tendência anarcocomunista, liderado por Nestor Makhno.(N. do T.)

  25. ↑ Corrente política também conhecida como dos Trudoviks. (N. do T.)

  26. ↑ Braço militar do governo bolchevique, responsável, entre outras coisas, pela perseguição aos adversários políticos, torturas e repressão em geral.(N. do T.)

  27. ↑ Ao interpretar esse movimento fundamental dos operários e camponeses russos como uma série de “conspirações do Exército Branco”, “atos de resistência kulak [fazendeiros relativamente ricos (N. do T.)]” e “conspirações do capital internacional”, os bolcheviques atingiram uma baixeza teórica incrível e não enganaram ninguém, exceto a si mesmos. Um desgaste espiritual desenvolveu-se dentro do partido, o que abriu caminho para os políticos da polícia secreta, para assassinato político, e, finalmente, para os julgamentos de Moscou e a aniquilação do antigo revolucionário profissional bolchevique. Vê-se o retorno dessa mentalidade odiosa em artigos do PL [Progressive Labor, partido marxista-leninista estadunidense (N. do T.)] em artigos como “Marcuse: Fujão ou Tira?” – cujo tema é estabelecer Marcuse como agente da CIA (Ver o Progressive Labor de fevereiro de 1969). O artigo tem uma legenda sob uma fotografia de parisienses protestando que diz: “Marcuse foi a Paris muito tarde para parar a ação de maio”. Oponentes do PLP são invariavelmente descritos por esse jornaleco como “anticomunistas” ou “antitrabalhadores”. Se a esquerda americana não repudiar essa abordagem policial e o assassinato político, ela vai pagar caro nos próximos anos.

  28. ↑ Termo em latim que significa “indispensável”, “fundamental”. (N. do T.)

  29. ↑ O termo “anarquista” é uma palavra genérica, como o termo “socialista”, e há provavelmente tantos anarquistas diferentes quanto socialistas. Em ambos os casos, o espectro varia de indivíduos cujas visões derivam de uma extensão do liberalismo (os “anarquistas individualistas”, os social-democratas) a comunistas revolucionários (os anarcocomunistas, os marxistas, leninistas e trotskistas revolucionários).

  30. ↑ É esse objetivo, podemos acrescentar, que motiva o dadaísmo anarquista, a loucura anarquista que produz as rugas de preocupação nas tolas faces dos tipos do PLP. A loucura anarquista tenta quebrar os valores internos inerentes à sociedade hierárquica, explodir a rigidez instilada pelo processo de socialização burguesa. Em suma, é uma tentativa de romper o superego que exerce um efeito tão paralisante sobre a espontaneidade, imaginação e sensibilidade e restaurar um senso de desejo, possibilidade e do maravilhoso – revolução como um festival libertador e jubiloso.


De “Anarquismo Pós-Escassez”, 1971.

Traduzido por oceano

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Pontes entre O Anarquismo e O Confederalismo Democrático

23 segunda-feira fev 2015

Posted by litatah in Anarco Ecologia, Anarcosindicalismo, Anarquia, Anarquia Verde, Anti Capitalismo, Anti Consumismo, Anti Fascismo, Comunicação Libertária, Curdistão/Kobane, Experiências anarquistas, Murray Bookchin, Organização de base, Revolução

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anarquia, anarquismo, Bakunin, bookchin, bruno lima rocha, ciência política, confederalismo democrático, Curdistão, curdos, kurdish question, PKK, política radical

daf

Fonte: Kurdish Question, em 19 de Fevereiro de 2015
Tradução do Coletivo Anarquia ou Barbárie

Texto original por Bruno Lima Rocha

Introdução: discutindo o modelo de partido e sua missão   

Desde o início do cerco a Kobane pelo Daesh (ISIS), a esquerda curda, e, especificamente, o modelo de organização social em Rojava tem sido estudado e seguido por várias organizações, ativistas, redes e estudiosos comprometidos. Decidi colaborar com KurdishQuestion.com para produzir uma série de artigos curtos para expor (e provar) as semelhanças entre a tradição ocidental (e não ocidental também) anarquista e o Confederalismo democrático. Enquanto uma das minhas áreas centrais de estudo é a teoria política (e teoria política radical), decidi ajudar na elaboração dos paralelos entre os dois caminhos e familiarizando-os um ao outro. Espero que isso ajude e todas as críticas são bem vindas. 

Apresentação

O modelo de partido anarquista apresentado nesta série não é uma inovação em si mesmo para a teoria política e teoria política radical, e nem mesmo para a tradição de esquerda. Se os estudos sobre o tema são bastante desconhecidos (ou parecem ser novos ou inexistente), se este formato de organização política não se tornou um objeto de estudo (ou reconhecido como o modelo de partido para a auto-gestão e de democracia direta), isto ocorre devido à correlação de forças dentro do mainstream acadêmico, às derrotas sofridas pelos anarquistas classistas desde 1939 e também por causa da ausência de debates no seio da comunidade de esquerda, o espectro acadêmico e da mídia mainstream. Este modelo aproxima os militantes dentro de uma organização política especifica que adere a um corpo ideológico-doutrinário (também conhecido como partido de quadros). Porque não é uma proposta de massa, que tem o formato de ter a associação composta por quadros políticos, sem filiação aberta e cujo grau de compromisso aumenta à medida que eles entram mais para os círculos concêntricos (ver Bakunin). Tal modalidade adquiriu definições na história, tais como: organicismo, plataformismo, especifismo; todos estes são sinônimo da definição do partido anarquista (federação específica).

Introdução ao Papel do Partido

O modelo da matriz de esquerda libertária e a perspectiva apresentada nesta série, representa uma possível aplicação de um campo de intenções, motivações normativas e interesses estratégicos na América Latina em geral, e no Brasil, em particular. Mas, presumimos, que, desde que nos conhecermos melhor, as possibilidades de desenvolvimento político será reforçada a partir da experiência real na região oeste do Curdistão e o debate interno sobre o pensamento no contexto do PKK. É muito interessante entender que a missão desse partido não é ser parte de um poder institucional do Estado-Nação, mas ajudar na construção de uma sociedade baseada em legítimos direitos (individuais e coletivos), a auto-gestão, e da democracia direta e radical, e o mais longe possível do industrialismo e de uma economia centrada no mercado. A hipótese formulada dentro da perspectiva de uma verdadeira democracia social é a ação da minoria política como uma unidade para acumulação de força e radicalização democrática a longo prazo. Se nós compararmos este simples pressuposto e definição, podemos observar muitas semelhanças entre essa perspectiva e um escrito do companheiro Abdullah Ocallan em 2011:

“Enquanto isso, os Estados-nação se tornaram sérios obstáculos para qualquer desenvolvimento social. Confederalismo Democrático é o paradigma contrastante das pessoas oprimidas. Confederalismo Democrática é um paradigma social não-estatal. Ele não é controlado por um Estado. ” (Do website PKK em Inglês)

É óbvio que ninguém deve criticar este modelo de partido para não competir por posições institucionais dentro de um modelo de Estado-nação, quando sua missão está longe disso. Parto do princípio que determinadas condições prévias estão sempre presentes. Todo “modelo de partido” inclui em sua formatação de condições e regras pelo qual este partido/organização política vai seguir e o caminho que esta instituição (legal ou ilegal) está disposta a tomar de acordo com seus objetivos de médio e longo prazo. A fim de ser teoricamente coerente, é necessário apresentar modelos que podem ser testados, mas, acima de tudo, modelos que possam ser aplicáveis de acordo com as hipóteses sugeridas.

Eu discuto a organização política militante específica que adere a um corpo ideológico e doutrinário. Por outro lado, porque não é uma organização de massas que se estrutura dentro de quadros, sem filiação aberta e cujo nível de comprometimento ocorre dentro de círculos concêntricos, aumentando o nível de compromisso de acordo com o poder de votar e ser votado para os papéis principais atribuídos na estrutura interna. Essa concepção não pode ser mal compreendida ou interpretada equivocadamente. Ou, ninguém deve entender isso como uma espécie de “partido único de boas intenções”, mas como uma concepção estratégica que garanta que os quadros e estruturas partidárias serão colocados a serviço e dever de ajudar a construir novas instituições políticas com base em uma sociedade horizontal e igualitária. O fracasso do modelo de partido na URSS ou outras variações com base na liderança autoritária, centrada no Estado e no industrialismo provam que todo o pensamento de esquerda deve fazer uma grande autocrítica e reconhecer que as condições materiais devem amadurecer juntamente com as condições morais, ecológicas e fraternais. Apenas uma estrutura partidária dedicada a esta causa pode manter uma luta de longo prazo, alimentando projetos sociais, como o fez nas lutas de massa sindicais da América Latina no início do século 20, e como é hoje em dia com a União das Comunidades do Curdistão ( KCK) ou TeV-DEM especificamente em Rojava.

Denominações desta tradição dentro do anarquismo

Vou terminar este primeiro artigo curto lembrando a definição do modelo de partido anarquista. Apesar de não ser exclusivo, este tipo de organização é geralmente considerado como típico da ideologia anarquista: um modelo federal e não-massivo. Ao menos que ele não seja um modelo de partido de vanguarda como os partidos leninistas clássicos, os quadros do partido devem ser aqueles que reforçam a luta de massas e que serão tomadas por todas as comunidades, permitindo que elas tomem o seu próprio destino por e através de assembleias populares. Esta filiação partidária ocorre por meio de círculos concêntricos e com a preparação de militantes que possuem várias funções. Este tipo de modelo adquiriu definições ao longo de sua história, e todos eles também podem ser identificados com a definição do modelo de partido anarquista. Este modelo adquiriu definições específicas ao longo de sua história, como organicismo, plataformismo, especifismo.

Fui muito feliz em descobrir que estas duas tradições aparentemente distantes estão realmente tão próximas umas das outras. Essa proximidade pode ser facilmente detectada em uma simples leitura dos documentos, tanto do PKK quanto destas tradições anarquistas. A tradição e as experiências no Curdistão lideradas pelo PKK podem alimentar as tradições anarquistas de todo o mundo e vice-versa. Esta perspectiva é animadora e é a principal motivação por trás da razão para esta série de artigos curtos.

Bruno Lima Rocha é Doutor e Mestre em Ciência Política e professor de Estudos e Geopolítica Internacional em 3 universidades no Sul do Brasil.

site: www.estrategiaeanalise.com.br
e-mail: strategicanalysis@riseup.net
facebook: blimarocha@gmail.com

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