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Anarquia ou Barbarie

~ A anarquia é a percepção ecológica da sociedade, é o entender a participação livre de cada membro da coletividade como fundamental para a existência, para o exercício da verdadeira cidadania que é viver na coletividade respeitando a diversidade. Anarquia é coletivamente sermos o poder, é todos nós decidirmos em conjunto, de forma horizontal o que fazermos em nossas vidas e em nossos bairros, cidades….

Anarquia ou Barbarie

Arquivos da Tag: Rojava

A revolução curda é a primeira revolução socialista vitoriosa do século XXI!

02 segunda-feira nov 2015

Posted by litatah in Análise de Conjuntura, Partidos, Institucionalidade,, curdistão, Curdistão/Kobane, curdos, feminismo, gay, Internacional anarquista, Revolução Curda, Rojava

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comunas e conselhos de rojava, consciência revolucionária, Curda, Curdistão, Curdistão livre, curdos, feminismo curdo, PKK, revolução, Revolução Curda, Revolução de Rojava, Rojava, ypg, YPJ

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Fonte: Comitê de Solidariedade à Resistência Popular Curda 

Por Rodrigo Silva

O objetivo desse texto é mostrar o contexto histórico e as perspectivas do nosso trabalho de solidariedade à resistência popular curda. Vou tentar ser didático,me perguntem se ficar muito confuso.

A Guerra

A revolução de Rojava (19 de julho de 2012) só foi possível no contexto da guerra civil síria. Em março de 2011, como parte das revoltas populares que formaram a Primavera Árabe, o povo sírio se levantou contra o governo de Bashar Al-Assad, que está no poder desde 2000, sucedendo o seu pai, Hafez Al-Assad (1971-2000).

Como em vários casos de governos da região, era um regime nacionalista burguês, ou seja, que tomava medidas de fortalecer o mercado interno e a indústria nacional, entrando algumas vezes em conflito com as potências imperialistas. E antidemocrático: o núcleo do poder era a família Al-Assad e a minoria religiosa alauíta, que é uma dissidência do Islã xiita. Depois do fim do campo da URSS, o governo sírio se tornou neoliberal.

Os protestos pacíficos de 2011-2012 foram duramente reprimidos, e o conflito acabou se transformando numa guerra civil que se arrasta até hoje, causando mais de 220 mil mortes. As partes em conflito são:

  • o governo,
  • setores da oposição civil, que corresponde a várias forças políticas, desde o Conselho Nacional Sírio (ligado aos EUA) até os Comitês Locais de Coordenação (que são organizações de base), até setores fundamentalistas islâmicos,
  • setores militares, dos quais os principais são a Jabhat al-Nusra (Al Qaeda na Síria), Arhat al-Sham e, finalmente o ISIS (Estado Islâmico, um racha da Al-Qaeda), enquanto a oposição liberal armada é o Exército Livre da Síria, que é muito heterogêneo, tendo desde unidades nacionalistas até a maioria, que é praticamente controlada pelos EUA.

Todas as potências regionais estão intervindo na guerra civil. O Irã, através do Hibollah/Líbano, está apoiando Assad, assim como a Rússia. Os dois tentam contrabalançar a influência americana na região, já que os EUA apoiam o CNS e os aliados dos EUA, Arábia Saudita e Qatar, apoiam os grupos fundamentalistas.

A partir de 2012, com a militarização do conflito, os setores fundamentalistas passaram a ter hegemonia quase total sobre a oposição a Assad.

A questão étnico/religiosa envenena mais ainda o conflito, porque parte da população síria,que é, em sua maioria muçulmana sunita, vê a luta contra a oligarquia alauíta como um conflito religioso. Isso tem levado setores não necessariamente pró-Assad, como os xiitas, drusos (outra dissidência do xiísmo) e cristãos, a serem contra a oposição, com medo de sofrerem perseguição religiosa se os sunitas tomarem o poder.

As divergências entre as seitas do Islã lembram um pouco as diferenças entre católicos e protestantes. A cisão entre sunitas e xiitas aconteceu após a morte de Muhammad (Maomé), e se deu em torno de quem deveria liderar a Umma (a comunidade muçulmana). Para os sunitas, qualquer muçulmano poderia ser escolhido como califa (regente), enquanto os xiitas diziam que o representante deveria ser da família de Muhammad.

O sunismo logo se tornou a religião das elites do califado, e é baseado numa interpretação mais legalista da religião (formas de orar, como praticar caridade, como se vestir e comportar etc), enquanto o xiismo se identificou com os setores mais pobres e tem um aspecto mais messiânico (é muito importante para os xiitas o retorno do Imã Mahdi, junto com Jesus Cristo, para julgar o mundo).

No mundo atual, essa divisão religiosa se transformou, no Oriente Médio, em uma divisão política, entre os sunitas, ligados à Arábia Saudita (que abriga a cidade sagrada de Meca, para onde anualmente os muçulmanos do mundo todo vão peregrinar), e os xiitas, ligados ao Irã, que desde 1979 é uma república islâmica com um regime xiita.

Os fundamentalistas são os setores que querem que as leis religiosas islâmicas (sharia) sejam a base do Estado. Entre eles, o ISIS é o mais extremista, porque eles se consideram a restauração do califado sunita estabelecido após a morte de Muhammad.

Entre todas essas forças, está o PYD (Partido Democrático da União), que é o partido sírio ligado o PKK curdo.

O PKK

O PKK foi criado em 1984 por Abdullah Öcallan, como um partido guevarista para lutar por um Estado curdo. Na época, era uma organização muito autoritária, com um forte culto à personalidade do seu dirigente, e métodos brutais, como alistamento forçado, assassinato de civis e lavagem de dinheiro do tráfico de drogas para financiar o partido.

Em 1999, Öcallan foi preso e, na prisão, influenciado pela derrota provisória da luta armada do PKK e pelo fim da União Soviética, começou a fazer uma autocrítica profunda das suas concepções políticas. Através de leituras do anarquista Murray Bookchin, a direção do PKK, e depois todo o partido, passou a defender uma teoria chamada de confederalismo democrático. Ou seja, eles defendem a criação de um poder popular formado por uma confederação de cidades, cada uma controlada por assembleias de bairro.

Ainda dentro da autocrítica, o PKK se tornou uma organização feminista. Ao lado do seu braço armado, a YPG (Unidade de Defesa Popular), foi criado um braço armado só de mulheres, a YPJ (Unidade de Defesa Feminina). A importância da YPJ é tão grande que foi uma mulher, Meisa Ebdo, que dirigiu a resistência armada contra o Estado Islâmico na cidade de Kobanê. Nos cantões (as cidades autônomas), existem estruturas femininas paralelas em todos os níveis.

Isso não significa que o PKK mudou completamente, existem vários relatos de que ainda está presente o autoritarismo na prática da organização, e muitas dessas mudanças ainda não foram realmente incorporadas pelo partido, mas parece claro que existiu sim uma mudança.

No caso do feminismo, os limites do PKK também são aparentes. As estruturas de mulheres são formalmente autônomas, mas a grande influência teórica do feminismo do PKK é reconhecida abertamente como sendo o próprio Öcalan (!!!), e as YPJ quase nunca levantam reivindicações explicitamente feministas (direitos reprodutivos, prostituição, violência masculina etc).

A revolução de Rojava

Aproveitando o vácuo de poder, em julho de 2012 os curdos, dirigidos pelo PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), tomaram o controle de Rojava (o Curdistão sírio), no norte da Síria.

Os curdos são o maior povo sem Estado do mundo, cerca de 50 milhões de pessoas, e estão dividido entre quatro países: Turquia, Irã, Síria e Iraque. No Iraque, existe o Governo Regional Curdo (KRG), com autonomia regional, dirigido pelo KDP (Partido Democrático Curdo), de direita e pró-americano.

Já em Rojava, que é o Curdistão sírio, está acontecendo uma verdadeira revolução socialista, dirigida pelo PKK, que está aplicando o confederalismo democrático.

O confederalismo também é uma resposta aos conflitos étnicos do Oriente Médio. Cada assembleia de bairro em Rojava elege três representantes para a assembleia geral da cidade, sendo que pelo menos uma deve ser mulher, e os representantes são divididos em um curdo, um turco e um sírio cristão. Não por acaso, membros das minorias religiosas sírias, como os cristãos e muçulmanos xiitas e sufis, têm se refugiado em Rojava, para fugir da violência religiosa. Asassembleias de mulheres têm poder de veto sobre as decisões que afetam as mulheres.

Curda segurando uma metralhadora.

O fato que colocou o PKK nas manchetes de todos os jornais do mundo foi a proteção que eles ofereceram aos refugiados yazidis. Os yazidis são uma religião milenar. Eles cultuam o Anjo Pavão, que segundo a religião deles, foi punido por Deus pelo seu orgulho, e foi para o inferno antes de se arrepender. Por causa da semelhança entre esse mito e o diabo no cristianismo e no Islã, os yazidis são considerados satanistas pelo Estado Islâmico, e são assassinados através de crucificação e decapitamento.

O caráter da revolução curda

Como Trotsky explicou, as tarefas das revoluções burguesas, como a separação entre Estado e religião, direitos iguais para as mulheres, democracia e independência nacional, só podem ser realizadas na era do imperialismo através de revoluções socialistas.

Portanto, a forma do confederalismo democrático expressa o conteúdo de classe de ditadura do proletariado, ou seja, o governo direto das massas populares através de assembleias (as Casas do Povo e Casas das Mulheres em Rojava), defendidas através do seu exército popular (YPG/YPJ).

A revolução curda é a segunda revolução socialista do século XXI, depois da revolução nepalesa (2006), traída pela sua direção maoísta. Nela se repete o esquema de todas as revoluções sociais dirigidas por guerrilhas no século XX (Vietnã, Cuba, Nicarágua etc): o aparato do Estado é destruído e substituído pelo aparelho guerrilheiro, que é a expressão organizada do poder das classes oprimidas.

No caso do PKK, um paralelo muito forte pode ser traçado com o PC Iugoslavo. Era um partido stalinista tradicional mas, sob pressão do isolamento imposto pela URSS, precisou se apoiar nas massas populares, adotando várias medidas democráticas e estimulando até certo ponto a autogestão e a autoorganização.

O papel dos EUA

Desde setembro de 2014, o PKK vem colaborando com os EUA na luta contra o ISIS. OS EUA têm interesse em impedir que o Estado iraquiano seja desestabilizado, já que o mesmo é uma semicolônia americana. Por isso, tem estado em conflito com a Turquia, que também é membro da OTAN, mas que prefere o ISIS do que uma possibilidade de levante popular curdo nas suas fronteiras.

Esse fato, junto com a oposição do PKK ao governo Assad desde 2004, tem levado setores da esquerda a considerar os curdos como agentes do imperialismo. Assim, vemos o triste espetáculo de setores que se reivindicam socialistas apoiando uma ditadura assassina, quando não dizendo que o ISIS deve ser defendido diante dos ataques americanos (!!!).

Essa atitude é chamada, dentro do movimento trotskista, de campismo, ou seja, dividir o mundo em dois “campos”, do quais um deve ser apoiado contra o outro. Na lógica campista, toda crítica ao suposto campo “progressivo” na verdade favorece o inimigo principal. Essa lógica foi adotada pela grande maioria dos partidos comunistas, que silenciavam sobre quaisquer formas de opressão no campo soviético e, hoje, é adotava por supostos “antiimperialistas”.

Esse tipo de visão maniqueísta apaga as lutas de classes, a substituindo pela lógica burguesa de conflitos entre governos. O nosso ponto de vista deve ser: quais são as forças reais no conflito? Elas são autônomas, ou são marionetes do imperialismo? O imperialismo está tentando se aproveitar dessas forças, ou é o impulsionador delas?

Fazer essas perguntar é respondê-las. O movimento de libertação curdo é um movimento de massas de um povo inteiro. Os EUA podem taticamente apoiá-lo, para enfraquecer o seu inimigo na região. Mas esse apoio, como o ano passado mostrou, pode ser rapidamente retirado, assim que os curdos se voltam contra os seus aliados (como a Turquia).

Sobre o assunto, esse texto é altamente recomendável.

O futuro de Rojava

Mas qual é a perspectiva para uma revolução social democrática, laica e feminista num mundo globalizado?

Hoje, por causa da mundialização do capital, é qualitativamente mais difícil um país conseguir manter alguma autonomia econômica, como foi demonstrado no caso da chantagem da União Europeia contra a Grécia e a capitulação do seu governo.

Portanto, é praticamente inviável a confederação democrática de Rojava conseguir expropriar o conjunto da burguesia. O foco de um governo popular na região deve ser manter e fortalecer as estruturas democráticas e apoiar a revolução curda na Turquia e no Irã.

Portanto, é coerente a formação das Forças Democráticas Sírias, para lutar por uma Síria democrática onde os curdos possam viver em uma região autônoma. Já na Turquia, o HDP (Partido da Democracia Popular), que é o braço político da esquerda turca e curda está enfrentando o começo de uma guerra civil, depois do seu resultado eleitoral histórico esse ano (mais de 10% dos votos). Enquanto isso, o PJAK (PKK no Irã) ainda sofre a maior repressão de todos os quatro países.

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As perspectivas em Rojava nesse contexto são duas: ou uma “sulafricanização” (ou seja, aderir às regras do capitalismo dependente, como o CNA fez) sob pressão dos EUA. Ou uma “zapatização” (manter o governo popular através da autonomia regional, e tentando desenvolver a luta pela autonomia na Turquia e no Irã, a exemplo do EZLN no México), que seria a forma viável, nas condições atuais, de dar um desfecho estável e progressista ao conflito.

De qualquer forma, o nosso apoio, a partir dos Comitês de Solidariedade em todo o mundo, é uma forma de quebrar o isolamento político e dar um alívio econômico, na medida das nossas forças. Estamos vendo uma revolução que está durando mais que a Espanhola (1936-39), e que é a perspectiva mais concreta de uma nova sociedade que estamos vendo no nosso século.

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As ruas gritam: Solidariedade à Resistência popular curda!

29 terça-feira set 2015

Posted by litatah in Abdula Ocalan, abdulah ocalan, Anti Capitalismo, Comunicação Libertária, curdistão, Curdistão/Kobane, curdos, Experiências anarquistas, Federação Anarquista do Rio de Janeiro, Internacional anarquista, Mártires da Luta, Municipalismo Libertário, Organizações Anarquistas, pós-capitalismo, pkk, Prática, Repressão, Revolução Curda, Rojava, turquia, Turquia

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Fonte: FARJ – Federação Anarquista do Rio de Janeiro – Organização Integrante da Coordenação Anarquista Brasileira

Rojava hoje é o centro de uma revolução popular protagonizada pelas comunidades curdas em luta. O valente exército feminino do YPJ e do exército popular do YPG. Em Rojava, a luta revolucionária autogestiona espaços de produção, forma assembleias populares (que tomam as decisões) e combatem em armas na mão tanto o subimperialismo do estado Turco (aliado à OTAN) quanto a extrema-direita fascista do ISIS (vulgo, Estado Islâmico).

O garotinho sírio, Alan Kurdi, que morreu afogado numa praia da Turquia era curdo e de Kobane, cidade que ficou conhecida pela resistência heróica das mulheres curdas contra a violência patriarcal e de direita do ISIS. Os curdos e curdas são o maior povo sem estado do planeta (50 milhões de pessoas) que hoje se organizam não para construir mais uma fronteira e Estado-nacional, mas implodir esse instrumento dos capitalistas, dando o poder das decisões, de fato, aos trabalhadores e trabalhadoras com armas nas mãos. As curdas e curdos não querem construir um Estado, tampouco gerir o modelo de dominação capitalista.

O internacionalismo é uma prática fundamental do anarquismo e da luta popular. A violência estatal que mata negros e pobres no Brasil faz parte da mesma lógica da violência do capital e do Estado, que fecha as fronteiras e mata ou oprime imigrantes sírios, gregos, haitianos.

Divulgamos a página para apoiar financeiramente a reconstrução de Rojava (parcialmente destruída pelo Estado Islâmico).

https://www.facebook.com/pages/Kobane-Reconstructing-Board/1392691501039799

Toda nossa solidariedade a Kobane e a Rojava! Toda nossa solidariedade aos imigrantes!

Nossa pátria é o mundo inteiro! Viva Rojava! Viva a revolução popular curda!

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Comunicado dos camaradas da DAF (Ação Anarquista Revolucionária – Turquia)

18 terça-feira ago 2015

Posted by litatah in Análise de Conjuntura, Partidos, Institucionalidade,, Curdistão/Kobane, Internacional anarquista, Manifestos, Notícias, Entrevistas, Atos, Manifestos, Revolução Curda, Rojava

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Fonte: Comitê de Solidariedade à Resistência Popular Curda

 

21 de julho de 2015.

NOSSA TRISTEZA SERÁ NOSSA RAIVA, KOBANÊ SERÁ RECONSTRUÍDA

10703563_10152053307717325_5172907232422204094_nNo dia de ontem, cerca de 300 pessoas procedentes de diferentes cidades, se reuniram no âmbito do chamado da Federação de Associações de Jovens Socialistas para reconstruir Kobanê, cidade que o Estado Islâmico tentou saquear. Hoje, ao chegar a Suruç (Pîrsus em curdo), pouco antes de sair rumo a Kobanê, estas jovens pessoas fizeram um comunicado à imprensa em frente ao Centro Cultural Amara de Suruç (Pîrsus). Ao final do comunicado de imprensa, uma bomba explodiu no meio da multidão, silenciando muitos corações que estavam batendo com a esperança da reconstrução.

Segundo informações coletadas até o dia de hoje, 31 pessoas morreram e centenas foram feridas na explosão.

Após a explosão de hoje, desde os hospitais de Suruç (Pîrsus) ouvimos os nomes dos mortos. Aqueles que saíram procedentes de diferentes cidades, aqueles com grandes esperanças em seus corações, agora estão caídos, como queriam os assassinos. As pessoas que sairam às ruas com o fim de reclamar a morte dos caídos, aqueles que esperam em frente aos hospitais, são ameaçados pelos TOMA (veículos com canhão de água) e pela polícia, que chegou ao Centro Cultural Amara antes das ambulâncias. Em Mersin, em Siirt, em Istambul… as pessoas que saem às ruas são ameaçadas com o massacre do Estado assassino, por meio da colaboração de assassinos.

Aqueles que massacraram muitas vidas, começando desde o primeiro dia da Resistência de Kobanê, estão agora tratando de nos desmoralizar mediante o assassinato de nossos irmãos.

Estamos tratando de reconstruir uma nova vida contra o ISIS (Estado Islâmico), contra o Estado que colabora com o ISIS, contra a política de guerra do Estado que nunca termina. Não importa o que custe, ainda que com nossa dor, assim como nossa raiva, vamos reconstruir Kobanê e recriar a vida nessa geografia saqueada.

(Hoje Alper Sapan da Iniciativa Anarquista de Eskişehir foi assassinado no ataque. E um amigo chamado Evrim Deniz Erol foi gravamente ferido.)

Bijî Berxwedana Kobanê! / Longa vida à resistência em Kobanê!
Bıjî Şoreşa Rojava! / Longa vida à Revolução de Rojava!

Ação Anarquista Revolucionária (DAF)

Tradução: Iruatã

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[Curdistão] De Tuzluçayır para Kobane: entrevista com um combatente anarquista

28 terça-feira jul 2015

Posted by litatah in Anarco Ecologia, Anarquia, Curdistão/Kobane, Ecologia, Internacional anarquista, Municipalismo Libertário, Rojava, Veganismo

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Birleşik Özgürlük Güçleri, Curdistão, curdos, ei, Estado Islâmico, ISIS, Kobane, Kurtuluşçular, Rojava, Sosyal isyan, YPJ

Postado em Unio Mistyka, em julho de 2015

O artigo a seguir é uma entrevista com um anarquista ambientalista e vegetariano da Turquia, que é membro da Sosyal isyan (Insurreição Social), e que luta fazendo parte da Birleşik Özgürlük Güçleri (Forças Unidas da Liberdade) lado a lado com as YPG (Unidades de Defesa do Povo) e YPJ(Unidades de Defesa das Mulheres) em Kobane, Rojava. A entrevista foi conduzida por H. Burak Öz e apareceu originalmente no site jiyan.org. Nós gostaríamos de agradecer o camarada Ece Eldem por traduzir a entrevista para o inglês.

Estamos na sede das Forças Unidas da Liberdade (Birleşik Özgürlük Güçleri) em Kobane. Peço um cigarro de um combatente afim de conhecê-lo e conversar com ele. Enquanto me oferece o fumo, pergunto quantos grupos formam as Forças Unidas da Liberdade. Ele diz que, esta força consiste em salvacionistas (Kurtuluşçular), MLSPB, TDP  e anarquistas, indicando que ele também é um anarquista.
Pergunta > Qual é o objetivo de lutar aqui para os anarquistas?
Resposta < Sou um dos fundadores da organização Insurreição Social e também um porta-voz. Quando os ataques do ISIS começaram em Kobane, em nome da solidariedade internacional, sem pensar duas vezes, idealizamos construir uma defesa como Brigadas Internacionais, algo muito próximo do que ocorreu durante a Guerra Civil Espanhola.
Pergunta > As Forças Unidas da Liberdade foram formadas por diferentes frações socialistas da Turquia. Sendo anarquista, como você se envolveu com esta estrutura?
Resposta < As Forças Unidas da Liberdade foram fundadas quando nós chegamos. Realizamos uma chamada para anarquistas e ecologistas.
Pergunta > Existem outros combatentes anarquistas que vieram de outros países além da Turquia?
Resposta < Camaradas vieram da Itália e da Espanha. Também há um anarquista argentino que luta no YPG.
Pergunta > Quando a Insurreição Social foi fundada?
Resposta < Insurreição Social foi fundada em 2013 nos acampamentos de resistência em Tuzluçayır (Distrito de Istambul, Turquia).
Pergunta > Por que você preferiu uma bandeira verde e negra?
Resposta < Tanto pela memória dos camponeses makhnovistas quanto pelo fato de sermos ecologistas.
Pergunta > Que tipo de estrutura tem a Insurreição Social?
Resposta < Nós defendemos a Guerra de classes e rejeitamos o anarquismo neoliberal. Temos o anarquismo clássico como maior referência, camaradas que reivindicam Makhno e Proudhon. No geral, temos uma concepção plataformista. Podemos descrever a Insurreição Social da seguinte forma: não tomamos Bakunin, Proudhon, Luigi, Galleani, Malatesta etc. ao pé da letra. Examinamos cada anarquista e adicionamos nossas próprias reflexões, concluindo o que construímos sendo Insurrecionários Sociais.
Pergunta > Quando você entrou para a luta armada?
Resposta < Nós defendemos a luta armada desde a fundação da nossa organização. Nós fomos influenciados mais especificamente pela perspectiva do anarquista insurrecionário Alfredo M. Bonanno. Fundamos nossa própria teoria insurrecionária. Acreditamos que a revolução terá início com a luta armada. Primeiro, de 3 a 5 ações armadas nas favelas turcas, e agora, tudo isso nos conduziu até Kobane. Mas antes de tudo, nós sonhamos com isso. Se não tivéssemos sonhado e tentado pôr em prática, estaríamos apenas bebendo cerveja em um bar de Kadıköy ou Beyoğlu. Alguns de nossos camaradas permaneceram como eram.
Pergunta > Como é a proximidade do Movimento Curdo com você em Kobane?
Resposta < De alguma forma, nossa presença em Kobane mostra que a luta armada anarquista não terminou na Guerra Civil Espanhola. No início, camaradas socialistas e Apoístas (defensores de Abdullah Öcalan) ficaram surpresos de ver anarquistas usando armas por aqui. Isso é resultado e uma ideia de anarquismo que se criou na mente das pessoas. Na verdade as pessoas não sabem o que realmente é anarquismo por aqui. Conhecem o anarquismo como algo simplesmente contrário a tudo e a todos os tipos de organização. Tem uma ótima frase do Kropotkin: “Anarquia é ordem”. Estamos explicando e nos responsabilizando por isso. Apesar de que esta responsabilidade é dura de assumir, estamos tentando lidar com ela.
Pergunta > Em que momento a teoria do anarquismo ecológico e a prática em Kobane se encontram?
Resposta < Nós vivemos determinadas coisas por aqui que não conseguíamos entender senão através de cada passo no sentido da ação, ou seja, não conseguimos encontrar as respostas nos livros.
Pergunta > Como o quê?
Resposta < Estamos no meio de uma Guerra. Por exemplo, rejeitamos todo tipo de hierarquia, mas aqui, você precisa de um comandante. Você não pode entregar um walkie-talkie para todo mundo, senão ninguém poderá agir do seu próprio jeito. Talvez, a naturalidade crie suas próprias necessidades. Nós entendemos que a orientação de Malatesta e a liderança natural de Bakunin estão aqui, o que não compreendemos durante a leitura. Havia informação; nós a praticamos e obtivemos a informação novamente.
Pergunta > O que você sonhava antes de vir para Kobane, e o que você encontrou aqui?
Resposta < Eu pensei que teria problemas sobre a cadeira de comandos mas não tive. Não me confrontei com nenhum tipo de pressão ou dificuldade com o YPG e as Forças Unidas da Liberdade. Alguns de nossos camaradas talvez tenham gritado quando uma bala passava próxima de nossas cabeças em tempos estressantes de Guerra, mas é normal.
Pergunta > Nenhum problema ecológico ocorreu?
Resposta < Havia uma perspectiva de orientação como a necessidade de pessoas virem para cá preencher um vazio de consciência. Por exemplo, camaradas da Itália queriam importar agricultura orgânica mas existem pessoas por aqui que já conhecem a agricultura orgânica e a aplicam. Estão falando sobre ecologia. Um camarada espanhol insistiu em “não usar diesel para acender o fogo”. Você está num lugar onde o óleo diesel custa 7 centavos. Madeira é mais caro e você não pode encontrar madeira fácil por que o lugar é basicamente um deserto. Existem Oliveiras mas estão plantadas com a agricultura. Não pode cortá-las. Portanto, é absurdo dizer a essas pessoas “não use óleo diesel, por que você usa diesel para se aquecer?”.
Pergunta > Você nos contou mais cedo que camaradas das Forças Unidas da Liberdade pediram a amigxs socialistas não comerem carne e pedir desculpas para os animais que mataram, mas quando esgotaram-se os suprimentos, você comeu majoritariamente carne. Pode falar um pouco sobre isso?
Resposta < Muitas coisas aconteceram nas montanhas. Os suprimentos não chegaram. Nós estávamos com fome e não havia nada mais além de patos deixados para trás nos vilarejos. Quando os camaradas começaram a cortar os patos, eu disse “o que vocês estão fazendo? É assassinato!” mas o disse a parte da realidade, como uma reflexão. Coisas que fazemos apenas de acordo com a teoria colapsaram.
Pergunta > Você está lutando com socialistas no mesmo grupo. Algum tipo de discussão teórica já aconteceu entre vocês?
Resposta < Mesmo que ocorram essas discussões, são mais como brincadeira. Nunca tivemos problemas com isso. Nós e elas, estamos conscientes de que viemos aqui pela solidariedade internacional. Estamos agindo de acordo com a ética revolucionária. Dormimos lado a lado e comemos juntxs. Estamos tentando entender um ao outro. Talvez a gente precise de uma nova teoria revolucionária no século XXI, e que esta prática possa colaborar, em termos de compreendermos uns aos outros.
Pergunta > Você deve ter passado por momentos em que esteve próximo da morte. O que você pensa nestes momentos?
Resposta < Eu definitivamente tive estes momentos, mas na frente de Guerra, você pensa nxs camaradas. Talvez existam alguns momentos de medo e pânico mas quando você ouve o som de uma arma disparando, esses sentimentos vão embora. Digo, você desenvolve um reflex para se proteger e proteger xs camaradas.
Pergunta > O que é esta garrafa de Coca-Cola?
Resposta < Não toque! É uma bomba caseira.

Via Agência de Notícias Anarquista

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[BRRN] Declaração sobre o recente massacre em Suruc, Turquia – Tradução

21 terça-feira jul 2015

Posted by litatah in Curdistão/Kobane, Fascismo, Federação Anarquista do Rio de Janeiro, Revolução Curda, Rojava

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‎SuruçtaKatliamVar‬, ‬ ‎SurucBomb‬, Kobane, kurdistan, Rojava

bombing

Postado pela FARJ em 21/07/2015, confira na íntegra:

Traduzimos a nota da organização americana Black Rose Anarchist Federation/ Federacion Anarquista Rosa Negra sobre o massacre ocorrido em Suruc, Turquia, dia 20 de julho.

Original: http://www.blackrosefed.org/statement-on-bombing-turkey-suruc/
Espanhol: http://www.blackrosefed.org/declaracion-sobre-el-reciente-masacre-en-suruc-turkia/

Declaração sobre o recente massacre em Suruc, Turquia
BLACK ROSE ANARCHIST FEDERATION / FEDERACION ANARQUISTA ROSA NEGRA (EUA)

20 de julho, 2015

‪#‎Rojava‬ ‪#‎SurucBomb‬ ‪#‎SuruçtaKatliamVar‬

Hoje lamentamos a perda de amigos e amigas, companheiros e companheiras, e renovamos nosso comprometimento com uma luta revolucionaria internacional em memoria deles e delas.

Meio-dia, na cidade de Suruc, fronteira da Turquia com Curdistão, uma bomba explodiu nos corpos de comunistas, socialistas e anarquistas, que estavam a caminho de ajudar na reconstrução de Kobane. Dezenas de pessoas foram mortas e muitas outras feridas. Um militante da Black Rose estava presente ajudando na preparação para uma campanha em suporte a reconstrução de Kobane e Rojava, porém não ficou ferido.

Meia hora após a explosão, a cidade de Suruc tremeu outra vez, quando uma segunda bomba atingiu a fronteira em Kobane. Notícias indicam que foi um ataque de carro-bomba que foi impedido por forças de autodefesa que minimizaram as perdas.

A viagem a Kobane foi organizada pela organização marxista-leninista Sosyalist Gençlik Dernekleri Federasyonunun (SGDF) – Associação das Federações da Juventude Socialista. A organização trouxe jovens e famílias inteiras através da Turquia e outros lugares para dar suporte revolucionário a revolução social que está ocorrendo em Rojava. Quase 300 pessoas estavam se preparando para atravessar a fronteira interditada para ajudar na reconstrução da cidade, aprender sobre os desenvolvimentos políticos e conectar as lutas da esquerda turca com o movimento curdo.

Depois da bomba, os primeiros a responder foram os veículos militares armados do ocupado estado Turco que desceram a rua em frente ao Centro Cultural Amara para bloqueá-la e apontar suas armas aos e as recentemente feridos/as e afligidos/as revolucionários/as. As ambulâncias demoraram tanto tempo pra chegar ao local que carros privados foram organizados para levar feridos/as aos hospitais. Os militares e policiais estavam no local em poucos minutos, tratando de formar uma barreira de policiais antes das ambulâncias chegarem. A vigilância deles não foi uma surpresa ja que estavam assediando os ônibus de revolucionários/as indo a Suruc naquela manha, monitorando muitos deles/as e fizeram ligações aos familiares dizendo que seus jovens parentes estavam se juntando a terroristas em Rojava.

Isso demonstra a atitude do estado e e indicativo de uma triste realidade: a Turquia esta continuando sua política de extermínio contra os Curdos e esse ataque pode ser visto como a realização da promessa de Erdogan (presidente da Turquia) de deter Rojava a qualquer custo. Nos próximos meses, a Black Rose continuará a expandir o plano de organizar comitês e redes em solidariedade a Rojava. Contamos com sua ajuda.

Biji Rojava! Rojava vive!

Secretaria Internacional, Black Rose Anarchist Federation/Federacion Anarquista Rosa Negra (BRRN)

Tradução: FARJ

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Direito à Cidade e Municipalismo Libertário

17 sexta-feira jul 2015

Posted by litatah in Abdula Ocalan, Anarquia, Análise de Conjuntura, Partidos, Institucionalidade,, Anti Capitalismo, Anti Fascismo, Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares (CAZP), Correntes da Anarquia, Curdistão/Kobane, História, Internacional anarquista, Municipalismo Libertário, Municipalismo Libertário, Murray Bookchin, Revolução Curda, Rojava, Teoria

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Por Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares (CAZP)

Fonte: Anarkismo.net

A cidade que passou ao longo de sua existência a aglutinar o conjunto da população que antes ocupava em maior número o campo, e que buscava uma forma de organização societária de maneira a atender o bem coletivo, foi aos poucos sendo atravessada por uma relação de poder específica, denominada de domínio, que surgiu com a divisão em classes sociais e que implicava que a organização da vida atendia os interesses de uma minoria em detrimento da maioria. Isso permitiu o desenvolvimento do Estado, sendo um instrumento que sempre serviu aos interesses das classes dominantes, disfarçando sua política essencialmente opressora das mais variadas formas.

A construção da vida em sociedade implica em diferentes posições e ideias que serão disputadas por diferentes grupos e indivíduos – as relações de poder. A divergência e a disputa de ideias não é um problema a ser combatido, mas uma realidade do ser humano. Ocorre que em uma sociedade dividida em classes sociais, permeada por relações de domínio (tipo específico de relação de poder), os interesses das classes dominantes prevalecem contra o bem-estar coletivo, ainda que seja em nome deste.

Desde que as relações de domínio passaram a determinar a relação social e a forma de estruturar a cidade em que vivemos como uma das consequências também houve resistência das camadas que sofrem opressão. Mesmo considerando grupos melhor posicionados dentro da escala de acesso à produção material e cultural da humanidade, a maioria não constrói as políticas de gestão da cidade de maneira satisfatória. Quem tem influência decisiva nesse processo é a camada minoritária da sociedade, que confirma seu projeto de dominação com as políticas executadas pelo Estado, gestor das cidades.

Essa resistência, mesmo que não tenha saído do marco da dominação, garantiu alguns direitos dentro da organização da cidade. As necessidades mais imediatas pautaram a luta dos grupos dominados na disputa pela cidade. Se há exclusão da maioria de certos espaços da classe dominante, existem bloqueios de estradas que reivindicam as mais variadas coisas (saneamento básico, lazer, educação etc.), que podem travar toda a cidade.

Essas lutas imediatas constituem a possibilidade de construção de uma força social capaz de reivindicar a cidade para o conjunto de quem mora nela. Cada disputa de espaço na cidade pelos grupos dominados é um caminho trilhado na luta contra o Estado e por uma cidade para os trabalhadores.

No entanto, um desafio que se coloca é fazer o trabalhador – que está imerso no seu dia a dia, tragado pela rotina trabalho-casa-trabalho – pensar criticamente, para que se interrompa esse boom de projetos de exclusão social, que só geram lucros para o empresário.

Quando paramos e procuramos alternativas para ir de encontro aos problemas que todos sofremos no cotidiano, e se fizermos isso de maneira solidária aos outros setores que sofrem dos reverses provocados pela cidade capitalista, podemos ter uma chance de impedir o sucesso da classe dominante. Por mais difícil que seja, temos uma chance. Parar e aceitar é a certeza da derrota. Nós preferimos tentar. Cada derrota no curdprojeto excludente, cada avanço em termos de mobilidade urbana, cada derrota da especulação imobiliária são vitória daqueles que concebem uma nova forma de se construir a cidade.

Não podemos esquecer que nossos espaços de convivência foram forjados numa sociedade profundamente desigual. Para termos êxito definitivo somente se aliarmos a luta do bairro com a luta por uma nova sociedade. Não esperemos uma nova sociedade para lutar pela melhoria de nosso bairro e de nossa cidade, mas não esquecemos que ela só ganha sentido se encararmos como degraus necessários para construção de outro patamar histórico.

Bookchin e o Municipalismo Libertário

O anarquista norte-americano Murray Bookchin defendia uma nova forma de sociedade baseada na reinvenção da construção dos espaços de convívio, de moradia e de construção de nossa sociabilidade. Chamava de Municipalismo Libertário sua proposta. Trata-se de uma proposta de organização política da cidade baseada na democracia direta em oposição à lógica representativa do Estado que tira da coletividade seu poder de decisão, sempre delegando a uma minoria aliada aos interesses capitalistas ou incapaz de ultrapassar estes interesses.

Na compreensão de Boockin, tornar os sujeitos ativos nas decisões, chamando para si a capacidade de planejar e executar as tarefas do dia a dia da cidade é formar sujeitos críticos que passam a ver que a sua vida depende do bem-estar do coletivo, que suas decisões têm que ir para além do egoísmo individualista para ela mesmo ter sentido. Isso não é possível numa sociedade desigual, por isso o municipalismo libertário concebe o fim das classes sociais e a gestão da cidade pelos seus próprios moradores.

Acreditamos que resgatar essas ideias do municipalismo libertário colabora bastante no atual debate das discussões do direito a cidade e colabora muito na tentativa de se aliar as lutas imediatas a luta por uma nova sociedade. Porém uma crítica ao pensamento de Bookchin é extremamente importante. Para ele a categoria do trabalho está ultrapassada. A luta por uma nova sociedade não passaria pela luta construída pelo local de trabalho, senão apenas pelo local de moradia.

Para nós, anarquistas, o anarquismo sempre esteve junto a organizar os trabalhadores a partir das contradições vivenciadas no local de trabalho. Inclusive foi na militância sindical que os anarquistas tiveram mais expressão social. A desigualdade da sociedade se dá, sobretudo, na distribuição desigual da riqueza material e imaterial produzida pela humanidade. Para reformulá-la de maneira a apontar para uma sociedade sem classe, é necessário mudar a maneira como se trabalha, acabando com a divisão de trabalho manual e trabalho intelectual, e mudando a lógica de como os produtos são produzidos e distribuídos. Isso só se dá no local de trabalho.

O mesmo sentido se dá ao trabalho voltado para a prestação de serviços, como saúde e educação. Para reorganizá-los numa perspectiva igualitária e livre, é preciso reformulá-lo dentro do próprio ambiente de trabalho. Tudo sendo planejado e executado pelo conjunto dos/ das trabalhadores/as. Obviamente que a reorganização desse trabalho deve ser feita em sintonia com as demandas do bairro e da cidade.

Bookchin prossegue, afirmando que a fábrica ao destruir o trabalho artesanal acabou a possibilidade de um trabalho mais positivo, mais próximo das ideias comunitárias. Virou uma padronização dos operários, uma nova fórmula de escravidão.

De fato, o ambiente fabril, estruturado numa sociedade de classes, reproduzirá a desigualdade e é extremamente opressor. No entanto, não podemos desprezar que a seria impossível para sociedade se manter hoje, mesmo em outra perspectiva societária, sem uma produção industrial. Se o capitalismo trouxe a degradação ambiental, desperdício de recursos e exclusão social, a produção fabril nos permite produzir para 7 bilhões de pessoas no mundo. Hoje a distribuição do que é produzido é desigual, mas o fato é que existe produção para todos, mesmo que os produtos não cheguem a atender a necessidade do conjunto, mas apenas de alguns. Não seria possível alcançar essa produção em escala artesanal. Tampouco podemos acreditar, como defende Bookchin, que a tecnologia permitiria livrar a humanidade totalmente do trabalho material.

Para nós, a luta por uma nova sociedade será feita no dia a dia do trabalho e da vida cotidiana. Pensamos uma sociedade federada em locais de moradia e de trabalho. Nisso Bookchin erra e deixa a desejar, não anulando sua belíssima contribuição com a discussão da cidade.

Ficamos nesse ponto com Bakunin, que fala que a humanidade se diferencia dos demais animais pela capacidade do trabalho inteligente e da fala. Somos homens e mulheres porque trabalhamos. Nenhuma mudança social será feita se desprezar esse espaço fundante da humanidade.

A Revolução de Rojava e o Municipalismo Libertário

Existe em uma parte do Oriente Médio uma população dispersa entre alguns países: a população curda. Tem seu direito de soberania popular negado há muito tempo. Durante a guerra civil na Síria e o recente avanço do Estado Islâmico, o povo curdo, que já luta por sua liberdade há décadas, se organizou de maneira inusitada na fronteira da Síria com a Turquia, numa região chamada Rojava. Milícias guerreiras da Unidade de Proteção Popular (YPG/YPJ) travaram combates ferrenhos contra a selvageria ignorante do Estado Islâmico e com seus próprios esforços conseguem o que Estados da região tiveram dificuldade de fazer: barraram o avanço do Estado Islâmico na cidade de Kobani.

Momento único na história recente da humanidade, não pela derrota imposta militarmente, mas, principalmente, por como foi feito isso e o que ocorreu depois. É o que queremos destacar. O protagonismo da mulher, nesse processo, tem sido uma força decisiva. Planejando, cuidando da cidade e participando dos combates aos facínoras do Estado Islâmico. Mulheres que sofrem bem mais com o avanço de ideias ultra machistas e totalitárias e que souberam dar a resposta.

Sobre a orientação do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) se vive uma nova forma de vida nessa localidade, com todas as dificuldades que uma realidade de guerra impõe. Incríveis semelhanças com Barcelona da Guerra Civil espanhola de 1936. O PKK deu uma guinada na sua orientação teórica ao adotar o Municipalismo Libertário como uma das suas orientações para reconstruir sua vida em sociedade. Tem conquistado a população de Kobani. Organização de assembleia por bairros, controle da própria população sobre suas vidas no que se é chamado de Confederalismo Democrático.

Auto declarados anti-estatistas e anti-capitalistas esse movimento tem uma dura tarefa pela frente: combater um inimigo feroz por um lado e reconstruir uma vida social sobre novos parâmetros. Suas ideias, obviamente, não agradam as fossas hegemônicas do Oriente Médio e nem ao sistema capitalista internacional. Nossa solidariedade às mulheres e homens curdos em luta. Eles mostram que um novo mundo é possível.

Related Link: https://cazp.wordpress.com

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Guerra e revolução nas trincheiras de Rojava: Posição dos anarquistas revolucionários

01 quarta-feira jul 2015

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Fonte: União Popular Anarquista 

Comunicado nº 44 da União Popular Anarquista 

Brasil, março de 2015.


A luta pela liberdade do Curdistão não começou hoje. O povo curdo possui uma luta pela autodeterminação que percorre séculos de combate na região da Mesopotâmia. Entre guerras e revoltas, domínio externo ou controle e repressão pelas próprias oligarquias, a história de luta deste povo, especialmente a história recente, começa a criar interesses pelos quatro cantos do mundo. Afinal, quem são esses homens e mulheres que hoje combatem e resistem ao avanço do Estado Islâmico no norte da Síria? A imprensa mundial e os governos não têm interesse em divulgar informações.

Hoje os olhos do mundo se voltam para a resistência heroica e as vitórias das massas populares em Kobane contra o Estado Islâmico do Iraque e Levante (ISIS). Os conflitos recentes nesta região que abarca a Turquia, Iraque e Síria é alvo da intervenção e controle imperialista e de grupos jihadistas que disputam o redesenho geopolítico do norte da África e Oriente Médio.

A resistência armada em Kobane se insere hoje em um teatro de operações político-militares complexo e que impõe para a ordem do dia o debate teórico, estratégico e programático dos revolucionários e anarquistas. A calorosa solidariedade no mundo inteiro e o tremular das bandeiras negras novamente nas trincheiras de Kobane nos mostraram a importância da solidariedade internacional para o avanço da luta e de uma linha anarquista que não fuja às tarefas da revolução.

Porém, mais do que apenas uma defesa simplista (e até estética) ou uma crítica purista e irresponsável (pacifista ou sectária) hoje é fundamental um posicionamento dos anarquistas revolucionários afim de influir nos acontecimentos, para defender e avançar nas conquistas do povo curdo e das massas trabalhadoras do mundo inteiro. É buscando contribuir com uma análise anarquista e revolucionária da situação e com um objetivo militante que nós da UNIPA lançamos esse comunicado.

As guerras no Iraque, Síria e Turquia: O terreno da luta

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Fonte: Wikimedia. 26 de setembro de 2014.

Devemos situar que o atual conflito em Kobane está intimamente relacionado com a guerra no Iraque, com a guerra civil síria, bem como com a guerra de guerrilhas desenvolvida e dirigida pelo PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) e demais organizações curdas atuantes na Síria e Iraque.

Depois do atentando sobre as torres gêmeas nos EUA em 2001, o governo de George W. Bush, dos EUA, e de Tony Blair, da Inglaterra, invadiram o Iraque em 2003 e destruíram o Estado comandando pelo Partido Baath (Nacionalista Árabe, de maioria Sunita – um ramo do islamismo) de Saddam Hussein sob a justificativa, falsa, de eliminar armas de destruição em massa. Em busca de uma ação rápida que atendesse os interesses do imperialismo, de controle de reservas energéticas, petróleo, e de controle político-militar da região, apoiado por Israel e as monarquias do golfo pérsico, os americanos e britânicos destruíram o Estado iraquiano, um dos poucos Estados laicos e não-alinhados com os EUA, dividindo-o.

A partir de então se iniciou uma guerra civil pelo controle do “novo” Estado iraquiano e uma luta de resistência contra as tropas imperialistas. Uma parcela de grupos étnicos-político locais, curdos e xiitas, que estavam fora do poder durante o governo de Saddam Hussein, apoiaram a invasão. Por sua vez, os EUA e a Inglaterra sustentaram a formação de um governo fantoche composto por curdos, xiitas e sunitas. Entretanto, os conflitos se acirraram na medida em que antigos grupos fora do poder (principalmente sunitas) passaram a se vingar. Não houve aliança possível para o controle compartilhado do Estado Neoliberal proposto pelos EUA e aceito pelas classes dirigentes desses grupos étnicos e religiosos.

Assim, a política da OTAN, de Israel e dos EUA para o Iraque passa pelo redesenho e a divisão de todo o Oriente Médio. É uma política claramente neocolonial. O desmantelamento do Iraque aumentou a resistência à ocupação com grupos vinculados à rede Al Qaeda. De origem Sunita, composto por jihadistas de várias partes do mundo, esse grupo criou o Estado Islâmico do Iraque e Levante (ISIS), com leis baseadas em textos religiosos do Islã, formando um novo Califado, também patrocinado pelos EUA. Os rebeldes da Frente Al Nursa (ramificação da Al-Qaeda na Síria) e do ISIS são vinculados às forças paramilitares patrocinadas e treinadas pela aliança militar ocidental para a guerra civil na Síria. Não por acaso, romperam com Al-Qaeda para se concentrar na luta pela formação desse estado que compreende o Nordeste da Síria e quase todas as regiões de maioria árabe sunita do Iraque.

Abu Bakr al-Baghdadi

Abu Bakr al-Baghdadi, autoproclamado Califa do Estado Islâmico.

Portanto, que fique claro, o Estado Islâmico é filhote do imperialismo norte-americano. Por isso está correto quando a organização turca Ação Anarquista Revolucionária (DAF) afirma que: “Estados covardes cuja única expectativa é o lucro, fundariam o ISIS hoje, arrepender-se-iam hoje, e reconheceriam o Estado Islâmico amanhã. Enquanto o povo sempre lutará pelo seu futuro e por sua liberdade, como no passado.” Essa frase define muito a atuação imperialista na região do Oriente Médio nas últimas décadas, apoiando atores contraditórios, oligarquias “do bem” contra oligarquias “do mal”, golpistas contra governos democráticos, e modificando essas definições de acordo com os seus interesses políticos.

A fundação do ISIS, do Califado, está vinculado a agenda dos EUA para retalhar o Iraque e a Síria em mais dois territórios separadas: uma república xiita árabe e a República do Curdistão (de caráter burguês e pró-imperialista). Esse projeto conta com apoio dos israelenses e das ditaduras e monarquias absolutas do Kuwait, Catar, Arábia Saudita e Emirados.

O atual Governo Regional do Curdistão (KRG), também conhecido como Curdistão Iraquiano, atende essa agenda geopolítica e é apoiado pelos EUA e o Estado de Israel. O KRG é controlado, através de eleições, por três partidos da direita curda e mantêm uma política de apoio às multinacionais que exploram esta região com imensas reservas petrolíferas. As forças políticas da burguesia curda que atualmente controlam o Curdistão Iraquiano colaboraram no combate ao PKK e à guerra de guerrilhas, chegando a entrar em conflito durante o início da década de 1990.

A atual guerra civil na Síria, iniciada no primeiro semestre de 2011 sob a forma de grandes manifestações de rua e que em alguns meses ganharam o caráter de conflito armada, ganhou contornos regionais e mundiais com a intervenção das principais potências imperialistas (EUA, França, Alemanha, Inglaterra, Rússia e China) e de países semiperiféricos como a Turquia. Depois de uma ameaça de intervenção direta na Síria pelo presidente estadunidense Barack Obama (Partido Democrata), reprovada a priori pelo próprio parlamento, o governo Russo articulou um acordo de entrega de armas químicas sírias com a ONU. Assim, Putin reforçou a posição do eixo Moscou-Pequim contra a intervenção militar defendida pelos líderes europeus, encabeçados pelo “socialista” François Hollande e Angela Merkel, Obama e o governo Turco de Erdogan.

Iraqi Kurdish leader Massud Barzani (R) shakes hands with Turkish Prime Minister Ahmet Davutoglu during their meeting in Arbil, the capital of the Kurdish autonomous region in northern Iraq, on November 21, 2014.

Massud Barzani (Curdistão Iraquiano) e Ahmet Davutoglu (primeiro ministro da Turquia). 21 de novembro de 2014.

A oposição síria está dividida entre grupos salafistas, jihadistas sunitas (Brigadas Liward al Tawhidi, Ahrar al Cham, Souqour al Cham) que formaram o Conselho Islâmico, os islâmicos moderados (Brigadas Al-Farouk), grupos curdos e o Exército Livre da Síria (sigla FSA, coalização mais pró-ocidental) que formaram o Conselho Nacional Sírio. No início do ano de 2014 foi formado o Comitê Nacional de Coordenação para Mudança Democrática que negocia com as potências ocidentais e com a Liga Árabe.

Ao contrário do que muitos afirmaram, a radicalização da luta de classes no norte da África e no Oriente Médio, através dos levantes populares, não apenas não levaram a “revoluções democráticas” como serviram para piorar as condições de vida, aumentando a miséria e o autoritarismo, abrindo espaço para a atuação de grupos militares fundamentalistas e sucessivos golpes militares e conflitos étnicos. Hoje existem mais de 300 mil refugiados da guerra civil. Além disso, segundo dados do Observatório Sírio de Direitos Humanos (OSDH), mais de 200 mil pessoas já morreram desde o início dos conflitos em 2011. As mortes aumentaram a cada ano, e em 2014 chegaram a 76.012 pessoas mortas, com alto índice de mortes de crianças e civis em geral. Uma das principais razões para que os levantes do norte da África tenham fracassado é o domínio religioso-conservador na direção das oposições (que reestabeleceram novas oligarquias no domínio do poder do Estado) e a inexistência de organizações revolucionárias de massas capazes de questionar o fundamento desse poder de exploração e opressão sobre o povo.

As disputas em curso tanto no Iraque como na Síria estavam dentro de um jogo de interesses políticos e econômicos dos países centrais e de potências regionais (como Turquia e Irã). Há fortes disputas energéticas em torno do fornecimento de gás para a Europa. Por fim, há as disputas políticas pelo controle político do Norte África, Oriente Médio e Ásia Central.

Com isso, a instabilidade na região com a quedado governo ditatorial de Bashar Al-Assad pode gerar problemas para Israel, devido a ação dos grupos islâmicos fundamentalistas, e mesmo para o Irã, que procura estabelecer novas relações com as potências mundiais. Mas para China, Rússia, EUA e União Europeia surge a necessidade de manutenção do domínio político e econômico da região. O povo trabalhador da Síria estava nas mãos das potências do ocidente, da autocracia do Partido Baas Sírio e de setores islâmicos (como o ISIS), militares e burgueses nacionais, com apoio de movimentos socialistas colaboracionistas que compõem a oposição.

Porém, o controle por parte de organizações revolucionárias curdas do território ao norte da Síria denominado de Rojava, e dos combates militares em Kobane, anunciaram a entrada em cena de um novo sujeito social nos conflitos geopolíticos da região, as massas populares armadas.

A guerra em Kobane contra a invasão jihadista e a defesa da revolução social

YPG

A formação do território de Rojava e seus desafios políticos e estratégicos estão inexoravelmente relacionados a esse contexto regional e mundial. Os ataques à Kobane não começaram há três meses. Aproveitando a oportunidade aberta pela guerra civil síria, uma série de conflitos político-militares se desenvolveram na região, desde julho de 2012, até que as milícias de autodefesa popular curda, YPG – Unidades de Defesa Popular e YPJ – Unidade de Defesa das Mulheres (fração feminina do YPG), libertassem o território reconhecido como a parcela síria do Curdistão e organizassem uma nova política, economia e cultura.

Sobre as razões do início do conflito territorial, o Ministro da Autodefesa do Cantão de Kobane, İsmet Şêx Hesen, em uma entrevista, afirma que:

“(…) a batalha de Kobane está acontecendo há cerca de um ano e seis meses. Antes eram principalmente grupos como a frente Al-Nusra e Ahrar-i farsa e outros que estavam no ataque contra Kobane. Kobane foi cercada por um ano e meio. Kobane fora privada de suas necessidades básicas, como água, eletricidade e comércio. A batalha que hoje está chegando ao seu terceiro mês, é parte desta história. Eu não olho para os ataques ao Cantão de Kobane como uma batalha com o EI. Olhamos para o EI como um agente de uma parceria internacional. Este agente possui parceiros em diversas partes do mundo. Ele tem parceiros no Afeganistão, na China, na Arábia Saudita, no Sudão, na Turquia e em muitos outros lugares. Vários Estados diferentes têm a sua participação neste grupo. Por exemplo, eles receberam muito apoio de regiões como do regime Baath e da Turquia. Foi a partir daí que eles tiveram a coragem de atacar Kobane.” (Fonte:http://www.resistenciacurda.wordpress.com)

Portanto, segundo o ministro da autodefesa, o atual combate contra o Estado Islâmico deve ser entendido dentro de um contexto internacional onde vários grupos e Estados estão intervindo e buscando se beneficiar a partir do conflito.

Um dado importante deste conflito são as batalhas entre a própria oposição síria não jihadista pelo controle territorial do Curdistão sírio. O Exército Livre Sírio (FSA) alinhado ao imperialismo norte-americano, combateu Rojava durante três meses, sendo derrotado pela YPG no final de 2013, levando ao armistício e ao reconhecimento do território curdo pelo FSA. Portanto, além de serem atacados pelos jihadistas da frente Al-Nusra e do Partido Baas (de Assad), as milícias populares curdas tiveram de combater a chamada “oposição democrática” financiada pelos EUA.

A Turquia de Erdogan, com sua política islamista pró-ocidente, tem sido peça chave na estruturação política da região. Aliada do imperialismo norte-americano, o governo turco vem desenvolvendo a anos uma caçada contra o povo curdo e a luta do PKK e do Partido da União Democrática (PYD – Partido curdo atuante em solo sírio, aliado do PKK, e que dirige as milícias YPG-YPJ). A Turquia classifica, junto com os EUA e União Europeia, as organizações pela libertação curda de terroristas.

O papel que cumpre atualmente a Turquia neste conflito é extremamente importante. Rojava é um território que está hoje sendo atacada por um dos lados pelo ISIS e em sua retaguarda possui fronteira com a Turquia. Antes de iniciar este conflito entre as milícias curdas e o Estado Islâmico a fronteira Turquia-Síria já era um importante meio de passagem dos traficantes de armas, equipamentos e pessoal para os jihadistas, tudo isso com o apoio do islamismo “moderado” de Erdogan. Durante o início da guerra civil síria e com as grandes multidões de refugiados que se deslocavam para fugir da guerra, Erdogan tentou a tática da abertura das fronteiras para a pulverização étnica e superpopulação da região do Curdistão sírio. Táticas que fracassaram.

Com o início dos ataques do Estado Islâmico contra Kobane (um dos cantões de Rojava), a política da Turquia foi de fechar as fronteiras para o apoio, proibindo a passagem de pessoas e equipamentos para a resistência em Kobane. Enquanto isso as fronteiras turcas permanecem abertas para os assassinos jihadistas do ISIS. Essa política foi parcialmente burlada quando da passagem de centenas de pessoas entre sindicalistas, comunistas, anarquistas e pessoas solidárias em setembro de 2014. Além disso, por pressões diretas do presidente norte-americano Barack Obama, o primeiro ministro turco Erdogan teve que assumir algumas medidas da coalizão ocidental contrária ao ISIS, sendo que uma delas era permitir a passagem de combatentes do KRG e do FSA para apoiar a resistência em Kobane.

Desde o início do conflito em Kobane, a coalizão das potências imperialistas (Coalizão Internacional) que se propôs a combater o avanço do ISIS, não cumpriu esse papel quando isso significou apoiar diretamente o armamento do povo curdo organizado nas milícias YPG. A política da coalizão imperialista de não atuar por terra, apenas através de bombardeios e ataques aéreos, foi covarde e irrisória frente a tarefa de combater o avanço do exército jihadista fortemente armado e equipado.

Desde meados de outubro Obama pactuou com Erdogan, presidente da Turquia, para uma “mudança de orientação” que consistiria em uma atuação mais enérgica e pesada em apoio aos combatentes curdos de Kobane. No dia 20 de outubro de 2014, aviões dos Estados Unidos lançaram 28 contêineres contendo armamentos em um território controlado pelos curdos, apesar de 2 acabarem caindo em território controlado pelos jihadistas e um destes ter sido destruído pelas milícias curdas.

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Exército do Curdistão Iraquiano, apoiado pelo imperialismo

Um dia antes, dia 19 de outubro, havia sido lançado um comunicado pelo Comando Geral do YPG afirmando o acordo político-militar com o Exército Sírio Livre (FSA), o exército aliado dos EUA. Seguindo essa orientação, a Turquia libera a fronteira para a passagem de combatentes peshmergas (forças militares do Governo Regional do Curdistão – KRG, do Curdistão iraquiano). No entanto, como era de se esperar, a política fronteiriça da Turquia em relação a esquerda revolucionária, especialmente o PKK, continuou inalterada.

Portanto, entendamos o cenário da guerra em Kobane. De um lado do front combatem as forças aliadas do YPG, FSA e peshmergas, do outro lado combate o ISIS. Porém, dentro das forças aliadas de Kobane existem interesses em conflito geopolítico latentes. Tanto FSA como peshmergas são representantes regionais e militares da burguesia imperialista. A aliança destes setores na resistência de Kobane é cínica e oportunista, tal como o apoio dos EUA e da Turquia. As milícias populares curdas já se enfrentaram militarmente com todos esses agentes que hoje se dizem aliados contra o ISIS. E para a Turquia está claro: antes a vitória do terrorismo fundamentalista do que a vitória dos “terroristas” de Rojava. Para os EUA a situação não é diferente. Porém, tampouco o ISIS cumpre as demandas do imperialismo para o norte da África e Oriente Médio, especialmente no que tange a hegemonia e aliança com o Estado de Israel.

Nesse contexto o apoio da coalizão internacional e dos destacamentos militares do FSA e de peshmergas possui uma importância estratégica para a burguesia imperialista. Os Estados pretendem disputar a direção da resistência e reforçar suas posições nos territórios de Kobane para, em um curto prazo, acabar com as conquistas políticas e econômicas das massas populares de Rojava. Afinal, no território sírio liberado pelos curdos também existem grandes jazidas petrolíferas.  

Esse debate, sobre a guerra de defesa nacional, sempre esteve presente nas lutas do proletariado. Os trabalhadores se defrontaram com essa situação em diversos momentos, seja na guerra franco-prussiana de 1870-1871 (situação em que emergiu a rebelião operária-popular que construiu a Comuna de Paris), passando pela Revolução Russa de 1917 e a luta contra a invasão de mais de uma dezena de países estrangeiros em meio a I guerra mundial, ou durante a guerra civil espanhola onde a luta contra o fascismo tomou contornos internacionais que exigiu uma política de defesa nacional.

Frente a esses episódios cabe ressaltar aqui a experiência histórica, a política e a teoria dos anarquistas revolucionários: Mikhail Bakunin e a Aliança, a Makhnovitchina e o grupo Dielo Trouda, Jaime Balius e os Amigos de Durruti. Todos estes anarquistas defenderam uma via de independência política do proletariado como peça chave para o triunfo, não apenas da revolução mas também da guerra anti-imperialista, ou seja, defenderam a inseparabilidade das duas esferas (nacional e internacional) do conflito social. Segundo Bakunin em suas Cartas sobre a situação da guerra franco-prussiana:

“Não deve-se contar com a burguesia. (…) Os burgueses não veem, não compreendem nada fora do Estado, fora dos meios regulares do Estado. O máximo do seu ideal, de sua imaginação, de sua abnegação e do seu heroísmo, é a exageração revolucionária da potência e da ação do Estado, em nome da salvação pública. Mas já demonstrei suficientemente que o Estado nessa hora e nas circunstancias atuais – com os bismarckianos no exterior e os bonapartistas no interior -, longe de poder salvar a França, não pode mais do que derrota-la e matá-la.

O que unicamente pode salvar a França, em meio aos terríveis e mortais perigos exteriores e interiores que a ameaçam atualmente, é a sublevação espontânea, formidável, apaixonada, enérgica, anárquica, destrutiva e selvagem das massas populares em todo o território da França. Esteja convencido: fora disso não há salvação para vosso país.” (Bakunin, pág. 112-113)  

A elaboração teórica de Bakunin sobre as consequências da guerra de defesa nacional em um período de decadência e guinada contrarrevolucionária do liberalismo burguês, onde o principal interesse da burguesia é a manutenção do Estado e continuidade da exploração do trabalho, é clara e fundamental. A defesa do país colonizado ou vítima de invasão imperialista exige uma ação autônoma do proletariado. Essa ação autônoma, massificada, organizada em resistência popular armada (seja na forma de milícias ou exército revolucionário), para expressar verdadeiramente sua potencialidade e força social deve ser guiada não pelos ideais políticos do patriotismo e da grandeza do Estado que animaram a burguesia em um passado qualquer, e sim pelos ideais internacionalistas e pela construção prática do socialismo e da liberdade. A guerra anti-imperialista ou antifascista deve se tornar guerra revolucionária socialista. Apenas assim é possível vencer não apenas um fascismo/imperialismo particular, mas avançar resolutamente na luta universal pela emancipação do proletariado.

A partir dessa consideração teórica bakuninista existem algumas conclusões que podemos chegar para entender a guerra em Kobane. O apoio militar vindo das potências imperialistas, por maior que fosse (mas não foi), não possui qualquer relação com os interesses de libertação do povo curdo ou do Oriente Médio do jugo do autoritarismo e da exploração. Muito menos será esse apoio que irá garantir a vitória curda. O que os EUA, ou qualquer Estado capitalista, pretende com o combate ao Estado Islâmico é manejar a guerra civil síria aos seus interesses e remodelar a geopolítica do norte da África e Oriente Médio. Claro que é também um jogo perigoso para o imperialismo armar as milícias populares de Kobane caso não se consiga controlar ou neutralizar politicamente essa força revolucionária. Por isso a importância do FSA e do KRG como meio de disputa interna em defesa dos interesses da burguesia.

A luta de libertação curda: federalismo ou estatismo?

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“Não estando apegada a terra, a burguesia, tal como o capital da qual é hoje a encarnação real e viva, não têm pátria. Sua pátria está onde o capital lhe traga maiores lucros. Sua preocupação principal, para não dizer a única, é a exploração lucrativa do trabalho do proletariado. Desde o seu ponto de vista, quando essa exploração avança tranquila, tudo está perfeito, e, ao contrário, quando ela se interrompe, tudo está péssimo. Portanto, não pode ter outra ideia além de pôr em movimento, por qualquer meio possível, ainda que esse meio seja desonroso, signifique a decadência e a submissão de seu próprio país. E, no entanto, a burguesia possui necessidade da pátria política, do Estado, para garantir seus interesses exclusivos contra a exigências tão legítimas e cada vez mais ameaçadoras do proletariado.”

Mikhail Bakunin, Cartas, pg. 197.

Como dissemos no início deste comunicado, os Curdos experimentaram um longo processo de lutas. Excluídos das negociações e traídos pelo Tratado de Lausanne de 1923, depois de ter sido prometido um Estado próprio pelos aliados da I guerra mundial e com a partilha do Império Otomano. Os curdos ficaram divididos deste então nos Estados da Turquia, Iraque, Síria e Irã, sendo a maior minoria étnica sem-Estado, oprimidos por diversos Estados. Vale ressaltar que outros povos também compartilham com os curdos a opressão étnica e nacional destes Estados.

Segundo Abdullah Ocallan o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) foi fundado em 1978 na Turquia sob a orientação teórico-política do marxismo-leninismo. O PKK é até hoje a principal organização em defesa dos curdos na região. A defesa durante a década de 70 e 80 da URSS e da linha comunista internacional para os países semifeudais e semicoloniais se dava dentro do contexto da guerra fria e da bipolaridade mundial. O início da luta armada, através da guerra de guerrilhas, ocorre em 1984 e tem como objetivo estratégico a defesa da libertação nacional, através da formação de um Estado curdo independente. Posteriormente, com o fim da URSS, o PKK se aproxima do maoísmo internacional.

A formação do PKK se deu em um período de identificação étnica específica durante a década de 70, orientada especialmente por um novo movimento estudantil com ideias esquerdista. Esse jovem movimento foi atacado desde o seu início não apenas pelo Estado Turco mas também pelas aristocracias curdas, que se sentiram ameaçadas pela nova identidade étnica curda de matriz popular que questionava a identidade étnica “tradicional” feudal defendida por essa aristocracia.

freedom_fighters_ypg_pkk_kurdistan_by_doganerol1-d8ek7r8Durante a guerra de 1991 no Iraque, houve uma modificação importante na luta de libertação nacional dos curdos. Os Estados Unidos apoiaram a formação de um governo curdo iraquiano governado por essa aristocracia curda aburguesada e pró-imperialista. Esse apoio dos EUA desde a década de 90 irá resultar no que hoje é o Governo Regional do Curdistão (KRG), localizado ao norte do Iraque. Como já afirmamos, o KRG é governado por três partidos da direita curda, através de eleições parlamentares, e mantêm em seu território imensas jazidas de petróleo sendo exploradas por multinacionais. O Curdistão Iraquiano é divulgado na imprensa ocidental como um “civilizado, moderno e democrático”. O antagonismo com a política do PKK é evidente, chegando a levar a conflitos diretos entre estas forças políticas.

Porém, a alguns anos atrás, uma mudança importante também ocorre no movimento de libertação curda. Com a prisão do fundador e líder do PKK, Abdullah Öcalan, momento em que este foi condenado a morte pelo Estado turco pelo crime de traição (posteriormente modificada para prisão perpétua), este passa a operar um processo de autocrítica em relação às concepções gerais com que vinham desenvolvendo a luta de libertação nacional curda. É nesse processo em que desenvolve sua tese do Confederalismo Democrático.

O Confederalismo Democrático se baseia no autogoverno das massas, através de organismos descentralizados de base e que se unificam de baixo para cima, formando os organismos centrais. A autonomia e a igualdade de direitos entre diferentes povos e coletividades étnico-culturais é complementada com a liberdade religiosa e a igualdade de gênero. Acima de tudo tais igualdades de direitos e de fato (com órgãos e espaços concretos para exercício do poder popular) tem se mostrado muito mais avançados e reais neste rincão do Oriente Médio do que em qualquer carta constitucional, tão bonita quanto inútil e farsante, dos países ocidentais e “liberais”.

Essa nova linha político-estratégica do PKK e do movimento de libertação nacional curda é acima de tudo uma autocrítica da linha estatista e industrialista do marxismo internacional, em que o modelo clássico de lutas de libertação nacional confluem para a formação de um Estado-nação forte e independente, visando o desenvolvimento industrial e econômico em termos capitalistas, como etapa prévia ao socialismo. Ocorre que o destino histórico das “democracias populares” e das revoluções democrático-burguesas ao longo do século XX, apesar de importantes escolas do proletariado internacional, desenvolveram-se para a restauração da exploração das massas trabalhadores por novas classes dominantes e burocracias. O proletariado que participou ativamente, e até mesmo dirigiu essas revoluções no século XX, experimentou êxitos grandiosos (Vietnã, China, Nicarágua, etc.) e, também por isso, derrotas históricas. 

A defesa de um revolução politicamente federalista, culturalmente feminista e multiétnica, deve ser complementada necessariamente por um programa econômico de socialização dos meios de produção-distribuição-consumo sob o controle das massas trabalhadoras. Essa revolução social não possui etapas mecanicamente determinadas pela ação do Estado/partido, de cima para baixo. Muito menos deve cumprir primeiramente uma etapa nacional-estatal e industrial para após isso se tornar internacionalista e socialista. Ai reside toda a importância histórica da experiência de Rojava e o potencial revolucionário desta luta, ou seja, a possibilidade de apontar um norte não para a formação de um Estado-nação curdo, mas para superar o modelo estatista de autodeterminação dos povos e assim se vincular à luta revolucionária internacional.

O “cessar fogo” com o Estado da Turquia, há cerca de dois anos, e a defesa do fortalecimento de territórios autônomos e liberados é fruto desta nova linha política do PKK. Ao que tudo indica, pelos acontecimentos de Rojava, isso não significa a adoção de uma linha pacifista ou democrático-burguesa. Tanto é que esse cessar fogo foi recentemente quebrado pelo governo da Turquia em um ataque a bases do PKK no dia 14 de outubro de 2014. Porém, deve-se analisar o desenvolvimento dos acontecimentos, as políticas de alianças, etc. afinal de contas, tampouco a revolução em Rojava está isenta de contradições e disputas.

É importante observar que esta não foi a primeira ruptura de linha ou revisão do marxismo em direção ao federalismo no contexto de lutas anti-coloniais. No final do século XX, os grupos guevaristas do México fizeram também uma revisão de linha, se adequando às condições de vida e luta dos povos sem-estado do sul do México, e desse processo nasceu o moderno zapatismo, com o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Similarmente aos curdos, os povos indígenas do Sul do México, colonizados e oprimidos por diversos Estados, geraram uma nova prática de luta e liberação territorial. Outro exemplo modelar foi o da Comuna de Paris, em que os republicanos estatistas abdicaram de sua política em favor de uma política federalista, possibilitando assim o surgimento de um novo modelo Anti-Estatista de revolução.

O debate e a luta de tendências no seio da “esquerda” e do anarquismo internacional

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Desde o início da guerra em Kobane contra o ISIS diversas organizações no mundo inteiro (comunistas, socialdemocratas e anarquistas) tem se posicionado sob diferentes pontos de vista. A omissão também foi um tipo de posicionamento, em geral covarde. Um posicionamento militante, que se desenvolve em solidariedade internacionalista, possui uma grande importância, e isso porque as revoltas e revoluções possuem causas e efeitos que extrapolam as localidades geográficas onde elas acontecem. Devemos entender que a luta pela revolução social em Rojava faz parte da longa marcha de aprendizagens e avanços da classe trabalhadora, sendo dever de uma organização revolucionária atuar decididamente em sua defesa e pela sua vitória.

A omissão e/ou negligência da esquerda internacional frente a guerra revolucionária em Rojava diz respeito especialmente ao posicionamento pró-aliança com as burguesias de stalinistas, trotskistas e socialdemocratas. Eles fazem tal como a imprensa burguesa internacional e os governos, fingem desconhecer o processo e tratam de isolar e menosprezar a luta do povo curdo. Isso ocorre em parte pelo simples fato de não estarem na “direção” ou em qualquer posto de combate da luta popular na região. Incapazes de tomar parte na luta e disputar sua direção (por conta de suas tradições e métodos reformistas que não se aplicam a esta realidade) “acusam” o PKK de ser stalinista e caem no mais puro idealismo, tornam seu julgamento político-moral como mais importante do que a análise do processo real e suas contradições. Porém, essa omissão e secundarização é apenas uma face cínica dessa esquerda burocrática e reformista.

O debate internacional em torno da guerra em Kobane apresentou pelo menos duas vertentes errôneas de interpretação. A primeira delas é o posicionamento de alguns partidos e organizações que há algum tempo vem saudando a chamada “oposição síria” do Conselho Nacional de Transição (CNT) e do Exército Sírio Livre (FSA) e não por acaso passaram a se pronunciar mais decisivamente em defesa da luta em Kobane após a unidade das milícias YPG com o FSA. Segundo o PSTU (seção brasileira da LIT-QI): “(…) a unidade político-militar entre os combatentes curdos e os rebeldes sírios árabes não só é progressista como, em nossa opinião uma condição para a vitória, tanto no terreno da luta para derrubar a ditadura de Al Assad como para avançar rumo a um Estado independente de toda a nação curda.”. Essa posição não é apenas defendida pelo PSTU, mas também por correntes do PSOL e outros partidos reformistas brasileiros e europeus. Apresentando-se sob o rótulo de “progressista” revela-se na prática das disputas geopolíticas um apêndice da política burguesa pró-imperialista.

Além disso, a posição trotskista revela dois elementos que estão em jogo na resistência de Kobane: 1) a formação de um Estado-nação (e o discurso pan-curdo), ou seja, a união de todo o povo curdo sob o poder centralizado do Estado; 2) a submissão à política norte-americana para o Oriente Médio. Isso significaria a submissão do processo revolucionário em Rojava pela aliança com a burguesia curda pró-imperialista, no Curdistão Iraquiano. Essa é a velha política marxista e reformista, e nesse caso entra em perfeita consonância com os interesses imperialistas para a região.

O anarquista russo Bakunin, quando combateu na França contra a invasão prussiana em 1870-1871, já havia se posicionado em relação a política de setores de “esquerda” que apoiaram a direção política da burguesia republicana, tudo isso em nome da unidade e da força nacional. Bakunin fala sobre a esquerda radical republicana:

“E a esquerda contestou? Não fez absolutamente nada. Aclamou estupidamente esse ministério agourento que, no momento mais terrível que França podia ter passado, se apresentou a ela, não como um ministério político, senão como um ministério de defesa nacional. (…) A esquerda radical acreditou ou pareceu acreditar que se podia organizar a defesa do país sem fazer política, que se podia criar uma potência material sem a inspirar por nenhuma ideia, sem a apoiar por nenhuma força moral. (…).

Por patriotismo e por temor a paralisar os esforços sobre-humanos para a salvação da França destes digníssimos homens, a esquerda radical se absteve de toda recriminação e de toda crítica. Gambeta acreditou ser seu dever dirigir comprimentos calorosos e expressar sua plena confiança no general Palikao. Afinal, não tinham que “manter a qualquer preço a união e impedir funestas divisões que apenas beneficiariam os prussianos”? Tais foram a desculpa e o argumento principal da esquerda, que se serviu deles para mascarar todas suas imbecilidades, todas as suas debilidades, todas as suas covardias.” (Bakunin, Cartas, pág. 200)

A segunda forma errônea de linha política para Kobane foi apresentada por grupos anarcossindicalistas no texto “Rojava: uma perspectiva anarcossindicalista”. Após esse texto algumas respostas e réplicas foram feitas, dentre elas destacamos o texto escrito pela organização Ação Anarquista Revolucionária (DAF), da Turquia, chamado “Uma resposta para ‘Rojava: uma perspectiva anarcossindicalista’”.

O texto anarcossindicalista se baseia em informações parciais e uma concepção sectária em relação à luta de libertação curda. As acusações de que o PKK seja patriarcal, centralista, nacionalista, dentre outras, são mais baseadas na história desse partido e em falsificações do que na atualidade e na potencialidade da luta travada em Rojava. Confundem então uma organização com o conjunto diversificado dos grupos sociais em luta, da classe. Afora esse fato, o sectarismo da posição dos anarcossindicalistas, condenando a participação anarquista na luta pela autodeterminação dos povos expressa um desvio estratégico, programático e teórico. O mais contraditório é que muitos desses grupos “apoiaram” o Zapatismo quando este estava na “moda” nos anos 1990, sendo que as mesmas críticas direcionadas à resistência curda poderiam ser direcionadas ao Zapatismo.

Para os revolucionários, não interessa a priori se o partido a frente de um processo de luta é socialdemocrata, maoísta ou nacionalista, ou mesmo que não haja direção orgânica da luta. Para os anarquistas revolucionários, que defendem o materialismo e a dialética como método de análise, o que importa é o caráter concreto da luta que o povo está travando, se é justa ou injusta para os interesses da revolução social. Nunca a organização anarquista deve abdicar seus princípios ideológicos, teóricos e estratégicos. Isso, ao contrário da abstenção “purista”, implica a participação e disputa interna dentro do movimento de massas, compreendendo as particularidades de cada tendência e partido, sua história e sua atualidade.

Os anarquistas participam das lutas das massas trabalhadoras para fortalecer e orientar os aspectos positivos, e combater os desvios e deturpações burocráticas e burguesas, seja combatendo partidos, organizações militares ou setores das próprias massas populares.

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Ação Anarquista Revolucionária (DAF), organização da Turquia.

Da mesma forma que uma luta pode ser justa mesmo dirigida por um setor atrasado, também é correto afirmar que essa direção (caso persista) terá implicações diretas para a vitória ou derrota da luta, e que, portanto, é tarefa dos revolucionários a disputa e reorganização para que as massas superem esta direção. Como já dissemos em outros documentos, o papel da organização anarquista é de iniciador-dirigente, ou seja, tornar-se vanguarda das massas em luta, isso significa atuar como amigo do povo, e acima de tudo não se afastar das massas, nem fugir das contradições.

O conceito de minoria ativa surgiu historicamente, para expressar esse posicionamento. Como as forças políticas orientadas pelo princípio de autoridade tendem a ser, a princípio, as direções e hegemônicas nas organizações, os anarquistas devem atuar como minoria ativa dentro do movimento, apontando os erros e contradições desses setores. Isso é válido para diversas situações. Ou seja, atuar junto à classe, suas lutas, como organização autônoma minoritária.

O purismo e o sectarismo são uma grande armadilha. Leva uma organização ou indivíduo a não compreender o terreno no qual se luta, pois este é indiferente para ele e as suas “fórmulas” fechadas e únicas. Existe acima de tudo um sectarismo e purismo reformista, típico das esquerdas parlamentares ocidentais (mas que atinge também os setores revisionistas do anarquismo), que desconhecendo e menosprezando as condições de luta na periferia do capitalismo preferem o caminho mais cômodo da “condenação moral”. Mas devemos observa que os mesmos anarcosindicalistas não fazem nenhuma autocrítica da capitulação do anarcossindicalismo à Frente Popular nacionalista, política que ainda continua em vigor na Europa, com a acomodação de diversas organizações ao capitalismo. O mesmo acontece com relação à ideologia pós-moderna, onde grande parte do anacrosindicalismo capitulou ao eurocentrismo e racismo do feminismo burguês-imperial.

Aos anarquistas revolucionários não cabe a mera contemplação, deve-se compreender as condições da luta de classes em cada realidade (compreendendo também o que há de universal em cada realidade particular) para precisamente tomar parte na luta pela vitória do proletariado, independente das dificuldades a serem enfrentadas.

Tanto a via reformista como a via sectária e purista se completam para derrotar a libertação curda antes mesmo que ela aconteça. Uma reforça o setor burguês e pró-imperialista e a outra reforça a apatia, a indiferença e o sectarismo dos setores revolucionários, os únicos que podem fazer avançar a luta em Rojava.

Para as atuais condições da luta no Curdistão ou em qualquer parte do mundo os anarquistas não devem abdicar de sua organização, seja em prol da direção do PKK ou de qualquer perspectiva nacionalista ou estatal-burguesa. Ainda que se lute conjuntamente com maoístas, nacionalistas e outros setores que estejam apoiando a revolução de Rojava contra a invasão reacionária, é fundamental construir e fortalecer a organização anarquista revolucionária como meio de aprofundar o processo anti-estatista e socialista e combater os setores burocráticos e colaboracionistas.

A libertação da mulher está na ponta do fuzil e ao lado do povo

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“A resistência em Kobane está sendo dirigida por mulheres que ao mesmo tempo que combatem o ISIS, destroem valores machistas e favorecem uma atitude libertária para com as mulheres para que possamos ocupar um lugar numa nova sociedade.”

Comandante Meryem Kobane

Um dos fatores que deu grande repercussão à resistência curda em Kobane foi a participação ativa e o papel dirigente e destemido das mulheres em todas as frentes de luta. Apesar de haverem sido divulgadas nas mídias de massa ocidentais quase unicamente um fator superficial e estético (por vezes atendendo ao imaginário machista com a imagem de mulheres armadas), e apesar das acusações de patriarcalismo por parte de setores sectários do anarquismo, apesar disso, um amplo movimento feminino tem se formado e avançado no Curdistão.

O fato é que as mulheres em armas possuem um novo patamar de diálogo na construção da nova sociedade. Assim foi na Comuna de Paris de 1871, assim foi na guerra civil espanhol de 1936, assim foi em outras experiências proletárias em que as mulheres tiveram participação decisiva. A potencialidade de luta das mulheres sempre foi alvo de preconceito, até mesmo nas fileiras socialistas e revolucionárias. Porém, a experiência histórica é uma escola para o povo e a exigência pelos direitos das mulheres nunca esteve longe das necessidades da revolução. Portanto, apesar da importância central da ação feminina em Rojava, não podemos nos esquecer que as mulheres sempre estiveram presentes nas mais diversas lutas, armadas ou não, pelo mundo afora.

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O YPJ, ala feminina da milícias YPG, que reúne hoje mais de 8.000 milicianas, expressa uma questão central em torno da libertação da mulher: a luta pela libertação da mulher não está desvinculada da luta pela emancipação da classe trabalhadora como um todo. Essa questão se expressa de forma muito clara no caso de Kobane, mas não deixa de estar presente como dilema universal da luta das mulheres. Caso os homens e mulheres de Kobane vençam a guerra e a revolução contra a opressão do capitalismo e do jihadismo, as conquistas feministas se garantem e aprofundam; caso contrário a escravidão sexual, o feminicídio e demais formas de repressão brutal contra as mulheres coroarão um retrocesso sem precedentes. Portanto, a revolução social e a libertação das mulheres possuem uma relação de potencialização: sem a vitória de todo o povo, e com isso a transformação das bases sociais, a libertação das mulheres é impossível, sem uma base societária e organizativa feminista é impossível avançar nas tarefas da revolução.

Nas palavras de Agiri Yılmaz, uma combatente do YPG:

“Na mentalidade do Estado Islâmico as mulheres são deficientes. Elas não podem lutar. No entanto, quando se ouvem os gritos e chamadas das mulheres do YPJ, eles deixam suas posições e suas armas e fogem. Eles estão com medo de lutar contra mulheres. Eles dizem a si mesmos ‘deixe-me morrer lutando contra um homem, mas não contra uma mulher.’ Isso é oriundo de sua concepção de que as mulheres não podem fazer nada. Mas a nossa concepção é de que as mulheres organizadas gerenciam a si mesmas e se organizam.” (Fonte: http://www.resistenciacurda.wordpress.com)

A luta das mulheres curdas, porém, não significa apenas um perigo ao fundamentalismo religioso. A luta destas mulheres é um grande perigo para a concepção liberal-burguesa sobre o papel da mulher e da “libertação feminina”. O central para compreender esse conflito é a questão do poder.

A política do “empoderamento” na sociedade capitalista pela chegada seletiva de mulheres a cargos de poder e repressão (empresárias, governantes, policiais, seguranças, etc.) é uma política contrarrevolucionária. Esse “empoderamento” da mulher é falso, tão falso quanto as possibilidades de igualdade pela ascensão social de pessoas pobres, pois está circunscrito a uma estrutura societária desigual. O discurso do empoderamento burguês possui como fim a integração sistêmica das burocracias e personalidades femininas e a paralisação do potencial revolucionário das amplas massas femininas.

O “empoderamento” para o feminismo proletário significa o fortalecimento dos órgãos de poder popular (sindicatos, conselhos/soviets, movimento estudantil, assembleias populares, etc.) e ao mesmo tempo o fortalecimento da participação e direção das mulheres nessas organizações. O poder popular, democrático, federalista e socialista, é o único que pode garantir plenamente os direitos políticos, econômicos e culturais para as mulheres trabalhadoras. Mas esse poder é um novo poder, que só pode florescer e triunfar (tal como demonstra Kobane) sobre os escombros do velho poder burguês ou fundamentalista e dos sonhos mesquinhos do “empoderamento” do feminismo-liberal.

Por uma Tendência Classista e Internacionalista!

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Existem contradições nos processos revolucionários, no Curdo e no processo revolucionário em geral? Sim. As contradições foram apontadas nesse texto. Mas a solução não está nem no apoio aos projetos estatistas burgueses de independência, nem na fria ausência de solidariedade internacional de um reformismo libertário sectário. Está na organização dos anarquistas revolucionários para atuarem nos processos revolucionários e colocar seu projeto em prática. É por isso que chamamos a construção de uma Tendência Classista e Internacionalista (TCI), que possa conjugar as tarefas de organização popular e resistência local com a solidariedade militante internacionalista. A tarefa no atual momento é atuar no sentido de reorganizar uma alternativa sindicalista revolucionária, apontando novos horizontes de ação e organização para a classe trabalhadora diante da atual crise internacional e radicalização da luta de classes.

Liberdade ao Povo Curdo!

Morte ao Imperialismo e ao Estado Islâmico!

Vitória as milícias de autodefesa popular!

Pelo Socialismo e Autogoverno das massas!

Avante o Anarquismo Revolucionário!

***

Para ler em PDF: Comunicado nº44

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A Resistência é a Vida!, por Abdullan Ocalan

19 quinta-feira mar 2015

Posted by litatah in Anarquia, Anti Consumismo, Anti Fascismo, Antirracismo, Comunicação Libertária, Curdistão/Kobane

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Abdullan Ocalan, Curdistão, KOaben, kurdistan, libertário, PKK, resistência, Rojava

Foto da página Kurdish Female Fighters Y.P.J

Postado em Jornalismo B, em 26 de fevereiro de 2015

Texto de Abdullan Ocalan, militante curdo e preso político, no livro “Liberando la vida: la revolución de las mujeres”

Tradução: Lorena Castillo

A modernidade democrática: a era da revolução das mulheres

A liberdade da mulher desempenhará um papel estabilizador e igualador na formação da nova civilização e ocupará seu lugar em condições de respeito e igualdade. Para conseguir isso, temos que trabalhar no nível teórico, programático, de organização e implementação. A realidade da mulher é um fenômeno ainda mais concreto e analisável do que conceitos como “proletariado” e “nações oprimidas”. O grau de transformação possível da sociedade está determinado pelo grau de transformações que consigam as mulheres. Da mesma forma, o nível de liberdade e igualdade da mulher determina a liberdade e igualdade de todos os setores da sociedade. Por isso, o nível de democracia que alcance as mulheres é decisivo para o estabelecimento permanente da democratização e secularização. Para uma nação democrática, a liberdade da mulher tem uma grande importância, já que uma mulher livre constitui uma sociedade livre. A sociedade livre constitui por sua vez uma nação democrática. Por outra parte, a necessidade de mudar o papel do homem é de uma importância revolucionária.

O amanhecer de uma era de civilização democrática representa não somente o renascimento de todos os povos, se não também, de forma mais específica o auge da liberdade das mulheres. A mulher, que foi a deusa criativa da sociedade neolítica, sofreu perdas incessantes no decorrer das sociedades de classes. Inverter esta história acarretará inevitavelmente transformações sociais mais profundas. A mulher, renascida para a liberdade, se somará a liberdade e justiça no âmbito geral da sociedade, em todas as instituições, em todos seus níveis. Convencerá a todos que a paz, e não a guerra é mais valiosa e desejável. O triunfo da mulher é o triunfo da sociedade e do indivíduo em todos os níveis. O século XXI deve ser a era do despertar, a era da mulher livre e emancipada. Isto é mais importante ainda que libertação de classes ou de nação. A era da civilização democrática deve ser a era em que a mulher se alce e triunfe completamente.

É realista considerar nosso século como o século em que a vontade da mulher livre florescerá. Por isso é preciso estabelecer instituições permanentes para as mulheres e mantê-las quem sabe por século. Se necessitam partidos para a liberdade das mulheres. É vital também que se formem círculos ideológicos políticos e econômicos baseados na liberdade das mulheres.

As mulheres em geral, mas, mais especificamente as mulheres do Oriente Próximo, são a força mais enérgica e ativa da sociedade democrática, devido as características anteriormente descritas. A vitória definitiva da sociedade democrática só será possível com a mulher. Os povos e as mulheres são devastados pela sociedade de classes desde a era neolítica. Serão eles, como agentes fundamentais do progresso democrático, os que agora não só se vingaram da história, senão que também formaram a antítese necessária posicionando-se a esquerda da nascente sociedade democrática. As mulheres são verdadeiramente os agentes sociais mais confiáveis no caminho para uma sociedade igualitária e libertária. No Oriente Próximo, vai depender das mulheres e jovens assegurar a antítese necessária para a democratização da sociedade. O despertar da mulher e o fato de será força social líder neste cenário histórico, tem um valor de autentica antítese.

Devido às características de classes das civilizações, seu desenvolvimento está baseado pela dominação masculina. Isto é o que situa a mulher na posição de antítese. De fato, para superar a divisão de classes da sociedade e a superioridade masculina, sua posição adquire o valor de uma nova síntese. Por conseguinte, a posição de liderança dos movimentos de mulheres na democratização do Oriente Próximo possui características históricas que as constituem tanto como uma antítese (pelo fato de se desenvolverem no Oriente Próximo) e uma síntese (a nível global). Esta área de trabalho é a obra mais importante que jamais tinha feito. Acredito que deveria ter prioridade na liberdade das pátrias e a liberação do trabalho. Mas, se quero ser um lutador pela liberdade, não posso ignorar isso: a liberdade das mulheres é a revolução dentro da revolução.

A missão final fundamental da nova liderança é proporcionar o poder intelectual e a vontade necessária para conseguir os três aspectos cruciais para a conformação de um sistema de modernidade democrática, assim como ética desde um ponto de vista tanto econômico como ecológico. Para conseguir isso, devemos estabelecer um número suficiente de estruturas acadêmicas com uma qualidade adequada. Não é suficiente criticar o mundo acadêmico moderno, temos que desenvolver uma alternativa. Estas unidades acadêmicas alternativas deveriam ser criadas sobre as prioridades e necessidades de todos os campos sociais, tais como a economia e a tecnologia, ecologia e agricultura, políticas democráticas, segurança e defesa, cultura, história, ciência e filosofia, a religião e as artes. Sem um marco acadêmico forte os elementos da modernidade democrática não podem ser construídos. Os marcos acadêmicos e os elementos da modernidade democrática são igualmente importantes para alcançar êxito. A inter-relação é uma necessidade para alcançar êxito.

A luta pela liberdade (não só das mulheres, senão de todas as etnias e todos os setores da comunidade) é tão antiga quanto a história da escravidão e exploração da humanidade. O anseio pela liberdade é intrínseco à natureza humana.

Temos aprendido muito destas lutas, também da que estamos mantendo nos últimos quarenta anos. A sociedade democrática tem coexistido com diferentes sistemas de civilizações dominantes. A modernidade democrática, o sistema alternativo ao capitalismo moderno, é possível por meio de uma mudança radical da nossa mentalidade e as correspondentes mudanças, radicais e apropriadas, na nossa realidade material. Estas mudanças, devemos criar em conjunto.

Para terminar, eu gostaria de assinalar que a luta pela liberdade das mulheres deve ser levada a cabo através do estabelecimento de seus próprios Partidos Políticos, conseguindo um movimento popular de mulheres, construindo suas próprias organizações não governamentais e estruturas políticas democráticas. Tudo isso deve ser trabalhado ao mesmo tempo, simultaneamente. As melhores mulheres são capazes de escapar das garras da dominação masculina e da sociedade. As melhores serão capaz de viver e atuar de acordo como sua livre iniciativa e independência. Quanto mais as mulheres se empoderarem, mais reconstituirão sua personalidade e identidade em liberdade. Por conseguinte, apoiando a ira das mulheres, o movimento de conhecimento e liberdade é o maior aporte de companheirismo e prova de humanidade. Tenho plena confiança de que as mulheres, a margem de suas diferenças culturais e étnicas, todas as que têm sido excluídas do sistema, triunfarão. O século XXI será o século da libertação das mulheres.

Espero fazer minhas contribuições não só escrevendo, mas ajudando a colocar em prática estas mudanças.

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Murray Bookchin: “Este Planeta Merece um Destino Melhor…”

16 segunda-feira mar 2015

Posted by litatah in Anarco Feminismo, Anarco Primitivismo, Anarcosindicalismo, Anarquia, Anti Capitalismo, Anti Consumismo, Anti Fascismo, Antirracismo, Comunicação Libertária, Curdistão/Kobane, Municipalismo Libertário, Murray Bookchin, Propostas, Revolução, Teoria

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Postado em Portal Anarquista, Ex-Colectivo Libertário de Évora, em 8 de fevereiro de 2015

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As ideias libertárias de Murray Bookchin ganharam recentemente uma nova actualidade aos serem adoptadas na organização dos territórios curdos no norte da Síria e reivindicadas pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão. São elas que animam e vivificam as milícias que ainda não há muitos dias libertaram Kobane e centenas de aldeias do avanço do chamado Estado Islâmico. Daí que exista também um renovado interesse por conhecer quer o libertário norte-americano M. Bookchin (1921-2006), quer as suas ideias assentes no municipalismo libertário. Em boa hora, António Cândido Franco traduziu para o ‘Portal Anarquista’ e para ‘A Batalha’, a parte final de um dos seus mais importantes livros, “The Ecology of Freedom”.

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A ECOLOGIA DA LIBERDADE – “EPÍLOGO”

Murray Bookchin publicou em 1984 The Ecology of Freedom, um dos seus livros mais densos e revolutivos, que, de forma enciclopédica tanto recorre ao domínio da biologia, da ecologia e da astrofísica como ao da história, da antropologia, do pensamento político e da filosofia. O livro constitui assim a súmula do pensamento de Bookchin e a peça mais significativa do ponto de vista daquilo que se chama ecologia social. A sua visão actualiza e desenvolve, como nenhuma outra, o pensamento libertário do século XIX, sobretudo o de Kropotkine, com o qual tem fundas afinidades, desde logo ao defender que nos organismos vivos a organização e a cooperação são muito mais essenciais do que a hierarquia e a dominação. O livro de 1984 pode com facilidade, pela originalidade das perspectivas e a vastidão dos saberes implicados, ombrear com as melhores obras teóricas do final do século XX e do início do século XXI. Ainda por traduzir em Portugal, apresentamos n’ A Batalha e no Portal Anarquista o epílogo do livro, que funciona em poucas páginas como um condensado das suas principais ideias e propósitos. [A.C.F.]

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bookchin008-2Neste livro tentei abalar em termos teóricos o mundo, como a seu modo tentaram no seu tempo os Digger, os Leveller, os Ranter. Intentei sacudi-lo com força e tentei analisar os traços mais significativos da sua evolução. Os meus esforços terão sido bem sucedidos se consegui demonstrar que a maldição da dominação impregnou quase todo o empreendimento humano depois do declínio da primeira sociedade orgânica. Quase nenhuma realização, no campo institucional, técnico, científico, ideológico, artístico, a própria racionalidade, se salvou desta praga. Distintamente da tendência, muito em moda hoje, de procurar a origem desta na luta doselvagem contra a natureza, encontrei-a eu no esforço sinistro da elite emergente em reduzir à escravatura os seres humanos. Sublinhei o papel potencialmente libertador da arte e da imaginação ao dar expressão ao que é autenticamente humano, utópico e livre na natureza humana.

Ao contrário de Marx e Freud, que identificaram “civilização” e “progresso” com auto-controle repressivo, defendi que a antropologia e a história dão uma imagem da humanidade em tudo adversa à de Hobbes. A mentalidade do sacrifício chegou com o conflito social e com a repressão que acompanham o aparecimento da hierarquia, não com a razão e a técnica. Os baixos-relevos egípcios e mesopotâmicos revelam um mundo no qual os seres humanos eram constrangidos a negarem não apenas os seus desejos e os seus impulsos mais humanos como ainda o mais elementar sentido da personalidade. Eva, a serpente e o fruto da árvore do conhecimento não foram a causa da dominação mas as suas vítimas. A sociedade, entendida como obra de laços maternos e logo de interdependência humana, está aí para nos recordar que o paraíso terrestre foi em muitos aspectos uma realidade concreta e que o verdadeiro “pecado original” corresponde à ideia gnóstica de “auto-transgressão”.

Não creio que se possa regressar ao Éden original, onde teve lugar esta violação. A história dá-nos uma esperança de solução para os problemas da hierarquia e da dominação. O conhecimento, a gnosis, quer dizer, conhecer e transcender o nosso primeiro acto de auto-transgressão, é o primeiro passo na terapia duma patologia pessoal de natureza repressiva. O pensamento sem a acção, a teoria sem a prática, significariam, porém, abdicar de qualquer responsabilidade social.

Viu-se no nosso tempo a dominação cobrir um tal âmbito colectivo que doravante parece estar fora do controle humano. Os milhares de bilhões de dólares gastos, depois da segunda guerra mundial, pelos vários Estados em meios de destruição e de controle – aquele armamento aterrador que figura em qualquer “orçamento de defesa” – são a expressão recente duma secular ansiedade de dominação que tomou por ora proporções demenciais. No confronto com esta monumental mobilização de matérias-primas, dinheiro, inteligência e trabalho humano, com fins exclusivamente destrutivos, os resultados obtidos em qualquer outro campo de acção empalidecem e quase se tornam irrelevantes. A arte, a ciência, a medicina, a literatura, a música ou a filantropia aparecem como meras migalhas caídas duma mesa sobre a qual, em sucessivos e sangrentos banquetes, se concentra a atenção dum sistema cuja fome de dominação não parece conhecer limite. É impossível não desconfiar dos actos de “generosidade” dum tal sistema, já que por detrás dos seus desígnios aparentemente meritórios – a tecnologia, a cibernética, os programas espaciais, o desenvolvimento agrícola, as inovações energéticas – se escondem motivações destrutivas e de sujeição da humanidade, através da violência, do medo e da ameaça.

1_2-216x300Este livro tentou dar um panorama da dominação a partir das suas origens numa oculta pré-história da hierarquia, que precedeu de muito a estratificação das classes económicas. A hierarquia esconde-se não só na pré-história da humanidade como ainda no mais profundo da nossa psique. Por esse motivo toda a riqueza da palavra liberdade parece ter sido traída no seio dos processos de socialização e no mais íntimo das nossas experiências. Esta traição vem ao de cima na forma como tratamos as crianças e as mulheres, nas relações interpessoais, na conduta física, nos pensamentos íntimos, na vida quotidiana e até no modo inconsciente com que organizamos a percepção da realidade. É uma traição que não se cumpre só nas instituições políticas e económicas mas no quarto, na cozinha, na escola, nos lugares de divertimento e nos centros de educação moral como as igrejas ou os círculos de terapia psíquica. A hierarquia e a dominação chegam até a presidir a movimentos de emancipação, como é o caso do marxismo nas suas formas mais vulgarizadas e convencionais, nas quais a organização autónoma das “massas” é vista com desconfiança e frequentemente denunciada como “desvio anárquico”.

A hierarquia desforra-se da nossa pretensão de termos superado a “animalidade”, atingindo a “liberdade” e a “individualidade”. Nos instrumentos que usamos para salvar vidas humanas, para criarmos belos objectos, que tornam mais aprazível o mundo que nos rodeia, há sempre qualquer coisa de desafinado que faz com que mesmo as nossas acções mais criativas acabem por ser percepcionadas como “triunfos”, tornando a “obra-prima” correlata à dominação. A grandeza da tradição dadaísta, a partir do gnosticismo ofita até à sua moderna expressão surrealista, é ter possibilitado, com a exaltação do direito à insubordinação, à imaginação, ao jogo, à fantasia, à inovação, à iconoclastia, ao prazer e à criatividade do não consciente, a ascensão e a consciência de tudo aquilo que a hierarquia nos ocultou. Fê-lo muito mais implacavelmente e lealmente do que os mais sofisticados jogos teóricos no campo hermenêutico, estruturalista e semiótico, tão em voga nas universidades da sociedade ocidental contemporânea.

Um mundo assim contaminado pela hierarquia, organizando-se do comando à obediência, exprime o seu espírito autoritário no modo como fomos habituados a ver-nos: como objectos a manobrar, coisas a usar. A nossa concepção de realidade, partindo desta imagem de nós próprios, alargou-se à imagem que temos da natureza “exterior”, assim se revelando que fomos encarando de forma cada vez mais mineral e inorgânica quer a nossa natureza quer a “exterior”. Simplificámos de forma tão perigosa a natureza, a sociedade e a personalidade, que comprometemos seriamente a integridade das formas complexas de vida, a riqueza das formas sociais e o ideal duma personalidade poliédrica.

Num tempo em que o mecanicismo materialista tem como concorrente um espiritualismo não menos mecânico, sublinhei a necessidade de prestar atenção à diversidade, visando alimentar uma noção de totalidade como princípio unificante duma ecologia da liberdade. Um tal acento é muito diverso daquilo que se acentua como “unitariedade”. Ao opor-me às tentativas correntes de dissolver a diversidade em denominadores comuns, materiais ou espirituais, exaltei a riqueza da variedade no desenvolvimento natural, social e pessoal. Propus uma interpretação, algo hegeliana, em que a história dum fenómeno – trate-se de subjectividade, de ciência ou de técnica – define esse fenómeno. Em cada um destes âmbitos, encontramos sempre vários graus e aspectos de compreensão, de intuição e de engenho, que devem ser sempre requeridos, caso se queira tomar a realidade nas suas várias graduações e aspectos. Ao invés, o pensamento ocidental procurou compreender a experiência e agir na realidade por meio dum único modo de subjectividade, de ciência e de técnica. Tendemos a fundar as nossas noções de realidade sobre bases reciprocamente exclusivas: económica num caso, técnica noutro, cultural noutro ainda. Destarte, linhas evolutivas fundamentais foram classificadas, da perspectiva dum limitado nível de desenvolvimento da evolução natural ou humana, como “basilares” ou “contingentes”, “estruturais” ou “supra-estruturais”.

municipalismo-libertarioTentei evidenciar que cada uma destas “linhas” ou de cada uma destas “super-estruturas” tinha a sua autenticidade e um direito histórico à sua identidade, sem dúvida interdependente com outras linhas evolutivas mas rica duma integridade só dela. O problema singular que mais me preocupou foi a interacção entre a evolução da dominação e a evolução da liberdade. Por liberdade não entendo só a diferença dos diferentes, mas também o alargamento das nossas noções de subjectividade, técnica, ciência e ética, com o reconhecimento da história delas e da capacidade de penetração que delas deriva a respeito dos vários estádios de desenvolvimento. Tentei mostrar não só como estes aspectos da liberdade formam um mosaico cada vez mais rico e completo, que apenas uma sensibilidade ecológica pode abalroar, mas também como esses aspectos interagem entre si, sem perderem, na multiforme variedade de tudo, a sua unidade. Não há uma “base” económica que reja a cultura, como não há uma “base” cultural que reja a economia. Na realidade, os próprios termos “base” e “supra-história” são estranhos à perspectiva que permeia este livro. Redutores e simplistas, estas palavras tendem a reflectir visões ingénuas duma realidade cuja riqueza desafia qualquer interpretação esquemática e estática.

Se a história pré-capitalista mostra alguma coisa é o facto dramático dos homens e das mulheres terem feito sacrifícios invulgares, por vezes até o da própria vida, pela crença na virtude, na justiça e na liberdade – crença que não se explicam apenas por interesses materiais e de estatuto social. A extraordinária história dos judeus, uma história de perseguições quase ininterruptas durante cerca de dois mil anos, a dos irlandeses no último século, e a dos movimentos populares revolucionários, da Reforma até à Comuna de Paris, estão aí a testemunhar a força dos ideais religiosos, nacionais ou sociais, capazes de empurrarem centenas de milhões de pessoas para actos de incrível heroísmo. Dizer que na “base” esses homens e essas mulheres foram empurrados por “factores económicos” de que não tinham consciência, quer dizer, manobrados pela dialéctica “económica” da história, significa presumir que estes factores eram de facto dominantes, quando na verdade ainda está sequer por provar que, em alguns casos, eles tenham sequer existido. Ainda quando esses factores pareçam evidentes, a sua importância nos actos humanos é tudo menos óbvia. Quando John Ball ou Gerrard Winstanley descrevem a avidez da classe dominante do seu tempo, sente-se que a sua crítica é menos guiada por interesses materiais do que por ideais de justiça e de liberdade.

A aversão à injustiça fervia no coração dos oprimidos não tanto por causa duma condição social particularmente pesada mas por via dum flagrante contraste entre as regras morais relativas à justiça e a sua transgressão no dia-a-dia. A história do cristianismo está impregnada desta contradição, que explica o papel catalisador que ele tantas vezes representou na história humana, gerando movimentos milenaristas revolucionários. Só quando o capitalismo contaminou a história com a ideia de “escassez”, fazendo dum mesquinho espírito de competição o motor de qualquer avanço social, é que grande parte destes ideais de virtude, de justiça e de liberdade degeneraram em grosseiros interesses materiais. Até os primeiros movimentos a favor duma redistribuição aparecem menos como grandes movimentos de saque e mais como esforços de reabilitação dum modo de vida revoluto, uma ordem social tradicional em que os hábitos de partilha e de não acumulação eram as normas prevalecentes. Muitas vezes estes movimentos destruíram não só os registos legais que legitimavam a autoridade e a propriedade do escol como ainda os palácios, as herdades, as mobílias e até os celeiros que pareciam encarnar o poder.

A revolução francesa, como notou Hannah Arendt (On Revolution, Viking Press, New York, 1965, pp. 36-52), assinala uma inversão das finalidades na mudança social: da aspiração ética passa-se a uma consciência da “questão social” expressa em termos de necessidades materiais. Na realidade esta alteração de perspectiva só parece ter chegado mais tarde, porventura já no nosso século. Marx exultou com este novo “realismo” ou “materialismo economicista”, mas o resultado é que, espartilhados entre a “fetichização das necessidades” e o desejo de significado ético e comunitário, acabámos por nos tornar produtos esquizofrénicos dum mundo condenado à imobilidade da sensação de impotência pessoal e social. Inventámos uma mística das “leis históricas” e do “socialismo científico” que serve mais, como construção, para compensar os nossos frustrados impulsos comunitários e a nossa malograda necessidade de sentido ético do que para explicar o motivo pelo qual comunidade e ética estão tão assentes no real e tão longe como fins.

Se não há um único aspecto da realidade, seja económico ou outro, que por generalização possa explicar a evolução social, se não existem leis sociais que orientem a nossa aproximação mental aos fenómenos, em que base e com que coordenadas podemos então interpretar os comportamentos sociais? Em meu entender o quadro de maior significado em que decorre a aventura humana está na distinção entre autoritário e libertário. Não quero com isto dizer que estes termos exprimam um sentido teleológico da história, nem tão pouco que estão isentos de ambiguidade. Não somos por certo nós que afirmaremos ou negaremos que exista na história humana um ponto de chegada, que possa corresponder ao “absoluto” hegeliano, ao “comunismo” marxista… ou então à extinção definitiva. É pura figura de estilo dizer que a “verdadeira história” da humanidade só começará no momento em que a “questão social” ficar resolvida. Por outro lado a crença iluminista no progresso tecnológico é o sistema menos fiável de que dispomos. Hoje, no mais tecnicizado dos mundos, em que a própria ética foi acoplada ao qualificativo “instrumental”, estamos dispostos a reconhecer que até os nossos projectos mais cativantes, não obstante os atributos que ostentam, “conviviais”, “apropriados” ou outros, possam ser empregues para criar estratégias “alternativas” à violência.

Nunca é de mais sublinhar que as palavras “libertário” e “autoritário” não se referem só a formas institucionais, técnicas e científicas antagónicas, mas sobretudo a sensibilidades e valores, em suma a epistemologias opostas. A definição que dou do termo “libertário” aparece modelada pela definição que dou de ecossistema: unidade na diversidade, espontaneidade e relações de complementaridade, em que está ausente qualquer forma de hierarquia e dominação. Com o termo “autoritário” refiro-me à hierarquia e à subordinação nas suas várias formas sociais: gerontocracia, patriarcado, relações de classe, elites de vários tipos e por fim o Estado, incluídas as suas várias formas socialmente mais parasitárias: o capitalismo de Estado. Mas se não incluirmos aí também as formas contrárias de sensibilidade, ciência, técnica e ética e as contrárias formas de razão aí implícitas, as palavras “libertário” e “autoritário” reduzem-se a termos meramente institucionais. Devem-se pois explicitar ao máximo aquelas implicações, e de igual modo as do arco de qualquer outra experiência, caso se queira que o seu recíproco antagonismo tenha um sentido dinâmico e transformador.

Reconheça-se à razão, na tensão que a disputa entre o autoritário e o libertário, o direito a uma racionalidade libertária. Do ponto de vista filosófico insistimos talvez até de mais que uma racionalidade libertária deve fundar-se em cânones de verdade e de coerência, mas também de intuição e de contradição, que invalidam por inteiro as pretensões de verdade do pensamento formal e analítico. Dado que intuição e contradição podem servir fins autoritários, como se vê na filosofia fascista e no materialismo dialéctico estalinista, e que ao invés a razão analítica teve momentos que serviu a liberdade de pensamento, não temos, além dos nossos critérios éticos, nenhum guia seguro e exclusivo, que garanta frutos indiscutíveis de emancipação ao nosso pensar. As figuras de Buda e de Cristo tanto foram usadas com propósitos de autoritarismo ou de liberdade. O misticismo e o espiritualismo radicais tanto se mostraram anti-naturais e anti-humanos como ecológicos e milenaristas. Aquilo que é decisivo no ajuizar dos critérios da razão, ou para ser mais preciso no modelar duma nova aproximação à subjectividade, é a forma como é ou não é impulsionado um modelo ético biologicamente variado, baseado na fecundidade da vida e na qualidade da complementaridade, resultado dum mosaico de experiências sempre mais ricas e acima duma concepção piramidal e hierarquizada da experiência. Nem sequer é preciso renunciar aoOrganum de Aristóteles, que durante tantos séculos serviu de base aos princípios lógicos do pensamento ocidental, ou à teoria dos sistemas, com o seu conceito de causalidade circular. Devemos apenas modelar a razão, linear ou circular que seja, sobre uma ética pessoal e socialmente emancipadora. A razão, cuja demolição por Horkheimer e Adorno, suscitou tanto pessimismo entre os colegas deles, pode ser devolvida à ética libertária, uma ética aberta à riqueza da sensibilidade humana, enquanto encarnação da faculdade mesma de sentir a todos os níveis da evolução da orgânica social.

Há uma base sobre a qual é possível edificar esta ética libertária, uma área que dá uma direcção e um significado que não dependem nem dos caprichos da opinião e do gosto nem da fria eficácia instrumental. À parte os lugares-comuns sobre o povo, a raça ou as “inevitáveis leis dialécticas”, parece existir na natureza uma espécie de direcção latente, uma evolução da auto-organização, que dá lugar à subjectividade e cujo termo final parece ser a auto-reflexão característica dos seres humanos. Semelhante visão pode constituir um preconceito antropormófico, prestando-se a um relativismo arbitrário, muito parecido à razão subjectiva, ou instrumentalismo, criticada por Horkheimer. Todavia, até a pretensão filosófica dum princípio sem pressupostos é um pressuposto da mente. Ainda não se concluiu que a antiga crença de que há valores intrínsecos na evolução natural é mais discutível do que a imagem russeliana da vida e da consciência humana como puros produtos do acaso.

Será fantasia avançar a hipótese que o nosso ser seja só por si uma epistemologia e uma ontologia, quer dizer, uma filosofia do organismo capaz de responder às acusações de antropomorfismo? A forma não é menos essencial à natureza do movimento e à finalidade da função. Qualquer coisa que se escolha por natural implica como função seja a forma seja o movimento. Invocar o acaso puro como deus ex machina dum desenvolvimento estupendamente organizado, que se presta a uma demonstração sintética matemática, é usar o acidental como túmulo da explicação. Argumentando com perspicácia a favor duma aproximação teleológica, Hans Jonas perguntou-se se uma análise estritamente psico-química da estrutura do olho e do seu estímulo tinha sentido e se não era correlata ao acto de ver. Diz Hans Jonas (The phenomenon of life, Delta Books, Nova Iorque, 1966: p. 90; sublinhados meus): Sempre se encontrará a intencionalidade do organismo enquanto tal e a sua ânsia de vida: presente já em cada tendência vegetativa estes atributos ganham a primeira forma de consciência nos reflexos indistintos, na reactiva excitabilidade, dos organismos inferiores, consciência que se avoluma nos impulsos, nos esforços e na ânsia da vida animal, atingindo a máxima clareza na sensibilidade, na vontade e no pensar humanos. Reflexos, impulsos, consciência… todos são aspectos essenciais do lado teleológico da “matéria” (…). Em cada caso, a estrutura e o comportamento teleológicos dos organismos não configuram simplesmente um modo alternativo de os descrever: são, e prova-o a consciência orgânica de cada um deles, a manifestação exterior da natureza íntima da substância. O que carreia que não exista organismo sem teleologia, que não exista teleologia sem essa natureza íntima e que só a vida possa conhecer a vida.

Poder-se-á acrescentar que só se conhece a vida como resultado da vida. Esta não pode nunca, pela sua natureza mesma, ser dissociada da sua capacidade potencial de conhecer. Poder-se-iam juntar muitas outras sequências às considerações de Jonas sobre teleologia. Pode-se conceber por exemplo a teleologia como actualização duma potencialidade, mais precisamente como o resultado final da tendência imanente para a auto-realização, uma tensão que deixa espaço à casualidade e à incerteza. Neste sentido, a teleologia expressa a auto-organização dum fenómeno para ser aquilo que é, sem certeza à partida que assim será. O nosso conceito de teleologia não necessita de nascer em linha recta de nenhuma “férrea necessidade”, de nenhum auto-desenvolvimento linear e preciso, que “inevitavelmente” assegure a realização final dum fenómeno a partir do seu ponto de partida. Não obstante um fenómeno não poder auto-constituir-se por acaso, a casualidade pode impedir a auto-realização. O seu “telos” apresenta-se assim como consequência duma tensão vitoriosa e não como uma necessidade inevitável.

rojavaO mais cativante, porém, que está hoje acontecendo é o facto de ser a própria natureza a escrever a filosofia e a ética natural, não os lógicos, os positivistas, os sociobiologistas, os místicos ou os herdeiros do cientismo de Galileu. É cada vez mais óbvio que não estamos sozinhos no universo, nem mesmo no vazio do espaço. Graças a uma revolução muito recente na astrofísica, talvez só equiparável às descobertas de Copérnico e Kepler, o entendimento do cosmos exige um volta-face especulativo da mente e uma aproximação mais qualitativa aos fenómenos naturais. Torna-se dia a dia mais plausível que o universo inteiro seja o berço da vida e não apenas o nosso planeta ou planetas de condições idênticas. O “big-bang”, a grande explosão, cujos ecos distantes, atravessando mais de quinze mil milhões de anos, ainda hoje são perceptíveis pelos instrumentos dos astrofísicos, pode ser a prova, mais que incidente casual, de uma forma de “respiração” cósmica, cujas expansões e contracções se estendem por um tempo infinito. Se assim é, e situamo-nos no plano das meras conjecturas, estamos diante de processos cósmicos, mais do que ante um episódio singular, na formação do universo. Se estes processos exprimem uma forma sem fim de história universal, nós, que estamos irrevogavelmente fechados na era cósmica que nos é própria, não estaremos nunca em condições sérias de interpretar a realidade e o significado deles. Não é porém despropositado perguntar se é dum vasto e contínuo desenvolvimento do universo que se trata ou se dum género de respiração rítmica universal.

Tudo isto se passa no campo das conjecturas, dizíamos, conquanto a formação de todos os elementos do hidrogénio e do hélio, a sua combinação em pequenas moléculas e depois a sua auto-formação em grandes, e por fim a organização destas nos componentes da vida e da mente, seguem uma sequência que desafia a imagem russeliana duma humanidade como faúlha acidental num vácuo privado de sentido. Certos passos desta sequência põem fortemente em dúvida tais concepções em que a palavra “acaso” se torna um cauteloso substituto duma substancial inevitabilidade. Um universo disseminado por um pó composto de hidrogénio, carbono, azoto e oxigénio pareceria inevitavelmente destinado à formação de moléculas orgânicas. Os radio-astrónomos encontraram no espaço inter-estelar cianogénio, óxido de carbono, ácido cianídrico, formaldeído, ácido fórmico, álcool metílico, acetal e formato de metilo. A imagem clássica do espaço como vácuo está, em suma, ultrapassada e dá lugar à imagem dum espaço como lugar de incessante actividade química e genética, a favor duma surpreendente sequência de compostos orgânicos cada vez mais complexos.

Daqui até à auto-organização de moléculas que constituam formas rudimentares de vida o passo é curto. A análise dos meteoritos com pequenas inclusões carbonáceas evidenciou a existência de hidrocarbonetos aromáticos de cadeia longa, como ácidos gordos, aminoácidos e porfirinas, isto é, compostos de que é feita a clorofila. Num conjunto de experiências de laboratório, iniciadas pela conhecida “spark.gap” de Miller Urey, produziram-se aminoácidos simples fazendo passar descargas eléctricas através dum recipiente que continha gás presumivelmente idêntico, enquanto combinação, à atmosfera terrestre primitiva. Modificando o gás a partir de teorias sobre a atmosfera originária, outros investigadores conseguiram obter aminoácidos complexos, precursores do ADN.

Sempre de modo hipotético, mas com um impressionante número de provas, é agora possível imaginar como os microrganismos anaeróbios puderam desenvolver membranas simples e como, num crescendo de complexidade, emergiram formas distintas de vida capazes de processos metabólicos altamente desenvolvidos. Outras hipóteses, nas conjecturas sobre a formação das estruturas genéticas, revelam num modo ainda mais impressionante a gradativa continuidade entre inorgânico e orgânico. Tais conjecturas conduzem-nos à característica central da vida mesma: a capacidade que tem um complexo mosaico de macro moléculas orgânicas de se reproduzir e, o que é mais, de o fazer com mutações suficientemente significativas para permitir a evolução. Já em 1944, Erwin Schrodinger tinha fornecido uma definição da reprodução e da evolução orgânica. No livro What is life? Mind and matter (Cambridge University Press, Nova Iorque, 1944: 5) este ilustre físico observava que “a parte essencial da célula viva – o cromossoma – podia ser definido como um cristal aperiódico”. Este na verdade não se limita a crescer por adição, como um periódico, mas modifica-se de modo significativo, dando lugar a formas evolutivas novas, mutações que iniciam e desenvolvem dados hereditários.

Rojava011Graham Cairns-Smith avançou uma outra hipótese, uma das muitas que hoje são avançadas, que pode ajudar a esclarecer a natureza dos primitivos processos reprodutivos. O  ADN é demasiado instável quimicamente, sublinha Cairns-Smith, para poder ter sobrevivido às radiações e às altas temperaturas a que estava exposta na origem a superfície terrestre. Com uma analogia, Cairns-Smith equipara o ADN a um “nastro magnético: é muito eficiente se provido dum ambiente protector indicado, de matérias-primas adequadas e dum complexo sistema de registo”. Estes atavios, sustém ele, podem-se até encontrar no mundo inorgânico (Genes Made of Clay, “The new scientist”, 24 de Outubro de 1974, p. 276): Em conjunto com numerosas outras considerações, isto leva a pensar num processo de cristalização como mecanismo de reprodução, um qualquer defeito nos cristais torna-se o modelo de formação dos novos modelos. Certas argilas de mica parecem-me oferecer cruciais e  promissoras possibilidades.

A hipótese de Cairns-Smith sugere no mínimo que a vida, por vias próprias e seguindo a sua própria evolução genética, não se retraiu com os fenómenos do mundo inorgânico. Não quero com isto dizer que a biologia possa ser reduzida à física, tanto como a sociedade não pode ser reduzida à biologia. Aquilo que Cairns-Smith sugere é que, se certos cristais de argila podem ser os precursores das sucessivas e das mais avançadas formas de material hereditário orgânico, a natureza pode ser unificada por algumas tendências comuns. Tais tendências partilhariam uma idêntica origem na realidade do universo, ainda que funcionando de forma diferente e em diversos níveis de auto-organização.

Reside aqui, do meu ponto de vista, o aspecto essencial: a substância e a sua propriedade são inseparáveis da vida. A concepção bergsoniana da biosfera como factor da redução da entropia, num  universo que se presume avançar para a perda de energia e para a desordem crescente, parece atribuir à vida uma razão cósmica para existir. Caso as formas de vida tenham esta função, isso não sugere de todo que a vida tenha sido projectada do exterior por um demiurgo sobrenatural. Sugere antes que a “matéria”, ou substância, tem propriedades auto-organizativas, não menos válidas que a massa e o movimento que a física newtoniana lhe atribui.

Ao modo dos atributos tradicionais da “matéria”, não faltam dados para tornar plausíveis estas novas propriedades. No mínimo a ciência deve ser aquilo que na realidade a natureza é; e a vida na natureza, para usar a terminologia bergsoniana, é uma força que age em sentido contrário à segunda lei da termodinâmica, isto é, como factor de redução entrópica. A auto-organização da substância em formas cada vez mais complexas – e do mesmo modo da forma em correlação com a função e da função com a auto-organização – implica uma incessante actividade para chegar à estabilidade. Pode-se pois supor que a estabilidade, assim como a complexidade, seja um “objectivo” da substância, que a complexidade, e não apenas a inércia, favoreça a estabilidade e que, enfim, a complexidade seja a característica fundamental da evolução orgânica e duma interpretação ecológica das inter-relações bióticas. Todos estas noções são modos de compreender a natureza, não divagações místicas. São elementos probatórios e são-no muito mais do que os preconceitos teóricos que ainda hoje se opõem à ideia de que o universo tenha um significado, um significado moral, atrever-me-ei a dizer.

Parece claro que não nos podemos mais contentar com uma matéria “morta” e passiva que fortuitamente se junta em substância viva. O universo dá testemunho duma substância que está em constante tensão e se desenvolve, e não apenas se movimenta, uma substância cujo atributo dinâmico e criativo é a sua incessante capacidade auto-organizativa em formas sempre mais complexas. A fecundidade natural deriva antes de mais do crescimento, não da deslocação no espaço. Não podemos retirar às formas a sua situação central neste processo de crescimento e de desenvolvimento, nem podemos inferiorizar a função da forma que lhe é correlata. Aquele universo ordenado que torna a ciência um projecto possível e que dá sentido ao uso duma concisa linguagem lógico-matemática supõe esta correlação de forma e função. Nesta perspectiva, a matemática serve não apenas como “língua” da ciência mas também como seu logos. Este logos é sobretudo um projecto possível, já que toma em mãos um motivo que é inerente à natureza, “objecto” da indagação científica.

Uma vez superado o degrau do comportamento meramente instrumental nos embates da “linguagem” das ciências, podemos encontrar outros atributos para aquela substância que chamamos vida. Concebida como uma substância que infinitamente se conserva e se desenvolve, metabolismo incessante, a vida mostra também uma outra característica: a simbiose. Dados recentes confirmam a hipótese do naturalismo cooperante de Pedro Kropotkine não é só aplicável às relações dentro duma mesma espécie e entre espécies, mas ainda dentro das formas celulares complexas e entre elas. Há mais duma década observava já William Trager (Symbiosis, Van Nostrand Reinhold Co., Nova Iorque, 1970: VII): O conflito existente na natureza entre organismos diversos foi largamente divulgado e popularizado pelas expressões “luta pela vida” e “sobrevivência do mais forte”. Poucos se dão conta, porém, que a cooperação entre organismos diferentes – a simbiose – é igualmente  importante e que “o mais forte” pode ser aquele que mais ajuda o outro a sobreviver.

Consciente ou não, esta definição do “mais forte” não é só uma mera conjectura científica dum ilustre biólogo; é também um juízo ético idêntico ao que Kropotkine extraía do seu trabalho de naturalista e do seu ideal de anarquista. Trager sublinha que a integração “quase perfeita” dos “microrganismos simbióticos na economia do hospedeiro (…) levou à hipótese de que certos organismos intracelulares pudessem ter sido na origem microrganismos independentes.” Na verdade os cloroplastas, que desempenham a fotossíntese nas plantas de células eucarióticas, são estruturas definidas que se replicam por divisão, têm um ADN característico, semelhante ao das bactérias cocoformes, sintetizam as suas próprias proteínas e estão envolvidas por uma dupla membrana.

O mesmo se pode dizer das mitocôndrias, “centrais eléctricas” das células eucarióticas. As primeiras investigações neste campo remontam à década de 60 do século XX e foram desenvolvidas com muito entusiasmo por Lynn Margulis (Symbiosis in cell evolution, W. H. Freeman and Co., San Francisco, 1981) em numerosos artigos e livros sobre a evolução celular. Como se percebe a célula eucariótica é a unidade morfológica elementar de todas as formas complexas de vida vegetal e animal. Também os fungos apresentam esta estrutura celular provida de núcleo. As células eucarióticas são aeróbias e incluem várias subclasses claramente definidas. Ao invés, as células procarióticas não têm núcleo, são anaeróbias, menos especializadas e, segundo Margulis, são os antecedentes evolutivos das eucarióticas. As procarióticas são a única forma de vida que podia sobreviver e prosperar na atmosfera terrestre primitiva, onde apenas existia uma quantidade mínima de oxigénio.

Margulis conjecturou e largamente demonstrou que as células eucarióticas consistem numa adaptação simbiótica funcional de procarióticas tornados interdependentes umas com as outras.  Os flagelados eucarióticos tornaram-se espiras anaeróbias; as mitocôndrias fizeram-se bactérias capazes de respiração e de fermentação e os cloroplastídeos deram lugar às algas verde azuis recentemente classificadas como cianobactérias. Esta teoria, amplamente aceite hoje entre os biólogos, retém que os antepassados fagócitos das eucarióticas tinham absorvido, sem os digerir, espiras, protomitocôndrias (que Margulis sugere possam ter invadido os seus hospedeiros) e, no caso das células da fotossíntese, cianobactérias e clorobactérias de forma arredondada. As diversas formas aeróbias de vida teriam assim tido origem num processo simbiótico que integrou uma variedade de microrganismos naquele que pode ser definido como um organismo colónia: a célula eucariótica. O mutualismo cooperante, não predatório, aparece assim como o princípio guia para a evolução das formas da vida aeróbia altamente complexa que hoje conhecemos.

A perspectiva de que a vida e todos os seus atributos estão latentes na substância enquanto tal e de que a evolução biológica esteja profundamente radicada na simbiose e no mutualismo indica como é importante redireccionar a nossa noção de “matéria” como substância activa. Observava Manfred Eigen (Molecular self organization and the early stages of evolution, inQuartely review of biophysis, vol. IV, n.º 2/3, p. 202) que a auto-organização molecular sugere que a evolução “se apresenta como evento inevitável dada a presença duma certa matéria com específicas propriedades auto-catalíticas e dum fluxo limitado de energia livre, isto é, de energia solar, necessária para compensar a produção fixa de entropia.” Com efeito esta actividade auto-organizativa vai além da emergência e da evolução da vida e diz respeito àqueles factores aparentemente inorgânicos que produziram e mantêm “um ambiente bioticamente favorável ao desenvolvimento de formas de vida cada vez mais complexas”. Como sublinha Margulis, sintetizando a hipótese Gaia, elaborada por ela e por James E. Lovelock, não é mais sustentável que a vida haja sido constrangida a adaptar-se a um ambiente independente, geológica e meteorologicamente determinado. Este dualismo entre mundo vivente e não vivente – baseado em mutações casuais e pontuais das formas de vida, que por sua vez determinam quais as espécies que se salvam e as condenadas – aparece substituído pela noção mais estimulante que a vida, como diz Margulis, “produz grande parte do seu ambiente”. E ainda: “certas propriedades da atmosfera, da terra e da hidrosfera são controladas para e pela biosfera.”

Comparando planetas sem vida como Marte ou Vénus com a Terra, Margulis nota que a alta concentração de oxigénio na nossa atmosfera é anómala quando confrontada com o anidrido carbónico dos outros planetas. Demais “a concentração de oxigénio na atmosfera terrestre permanece constante, não obstante a presença de azoto, metano, hidrogénio e outros reagentes potenciais”. Na realidade a vida tem um papel activo na manutenção das moléculas de oxigénio livre na atmosfera. O mesmo se pode dizer para a alcalinidade e do nível moderado de temperatura da superfície terrestre. Diz Margulis (op. cit., pp.348-49): As anomalias da atmosfera terrestre são outra coisa que casualidade. As temperaturas das regiões tropicais e das temperadas divergem dos valores que teríamos por interpolação entre os valores correspondentes de Marte e Vénus e os desvios que têm lugar na maior parte dos organismos. O oxigénio mantém-se em cerca de vinte por cento, a temperatura média dos estratos inferiores da atmosfera é de cerca de 22 graus centígrados e o pH apenas acima de 8. Estas anomalias a escala planetária conservaram-se por longo tempo. A estranha composição química da atmosfera terrestre manteve-se por milhões de anos, apesar do tempo de permanência dos gases reagentes se medirem apenas em meses ou anos. Margulis conclui assim: É altamente improvável que o acaso possa explicar o facto da temperatura, o pH e a concentração de elementos nutritivos hajam sido por grande espaço  de tempo os adequados à vida. Ainda mais improvável, se pensarmos que os principais perturbadores dos gases atmosféricos são os organismos, antes de mais os micróbios. Ao invés, parece mais provável o investimento de energia, por parte dos viventes, numa actividade de conservação destas condições.

Em suma, até a Síntese Moderna, para usar a terminologia empregue por Julian Huxley para definir o modelo neo-darwinista de evolução orgânica introduzido nos anos 40, foi posta em discussão pela sua perspectiva limitada e talvez demasiado mecânica. A imagem dum ritmo evolutivo lento, saído da interacção de pequenas variações seleccionadas pela sua adequação ao ambiente, não se afigura sustentável, como parecia ser, a partir das descobertas fósseis disponíveis. A evolução aparece hoje mais esporádica, muitas vezes intervalada por longos períodos de estagnação. Espécies altamente especializadas tendem a modificar-se ou a desaparecer por causa dos reduzidos nichos ecológicos em que podem sobreviver, enquanto espécies menos especializadas se transformam mais lentamente e desaparecem com menos frequência, graças aos ambientes mais variados em que conseguem sobreviver. Esta hipótese, dita “hipótese de efeito”, adiantada por Elisabeth Vrba (citada por Robert Lewin, “Evolutionary theory under fire”, Science, vol. 210, 1980, p. 885), sugere que a evolução seja mais uma tendência imanente e não tanto o produto de forças selectivas externas. As mutações acasalam mais um mosaico voluntário do que pequenas e casuais modificações na estrutura e nas funções das formas de vida. Como alguém observou, enquanto a selecção das espécies atribui a força evolutiva às condições do ambiente, a “hipótese de efeito” endereça essa forças a parâmetros internos que determinam os níveis de especialização e de extinção.

A ideia de pequenas e graduais mutações casuais, uma teoria que concorda com a concepção vitoriana de transformações evolutivas estritamente fortuitas, pode ser posta em causa apenas por razões de base genética. Não só um gene mas um cromossoma, em mutáveis combinações entre si, podem ser modificados quimicamente e mecanicamente. As transformações genéticas podem ir de “simples” mutações pontuais a novas sistematizações de cromossomas muitos mais consistentes. Demais parece evidente, sobretudo no seguimento de resultados experimentais, serem possíveis trocas de mutações morfológicas geneticamente determinadas. Pequenas modificações genéticas podem dar lugar a transformações morfológicas, relevantes ou irrelevantes, e o mesmo vale para as grandes mutações genéticas.

A observação de Trager de que a espécie “mais adequada” pode ainda ser “aquela que mais ajuda uma outra viver” é uma fórmula excelente para refazer o quadro da evolução natural, vulgarmente pintado como drama insensato de sangrenta competição visando a sobrevivência. Existe uma rica literatura, que, remontando ao fim do século XIX, sublinha o papel desempenhado pela cooperação intra e entre específica na capacidade de sobrevivência das formas de vida no planeta. O famoso Apoio mútuo de Kropotkine sintetizou o conhecimento então disponível e juntou a palavra mutualismo  ao vocabulário biológico. Os primeiros capítulos desse livro resumem trabalhos contemporâneos de Kropotkine, as suas pesquisas na Ásia oriental e ainda uma montanha de dados novos sobre insectos, crustáceos, pássaros, as associações para caça dos “mamíferos carnívoros”, as sociedades de roedores, e outras sequências idênticas. O material é em grande parte intra-específico, mesmo que os biólogos mutualistas de há um século não tivessem ainda evidenciado os sistemas de apoio específico que nós sabemos hoje existirem numa quantidade muito maior do que Kropotkine podia imaginar. Buchner escreveu em 1953 um volume inteiramente dedicado à endo-simbiose dos animais com microrganismos vegetais; Henry, por sua fez,  no meado da década de 60 actualizou o estudo desta questão nos dois volumes de Symbiosis. As provas que este último apresenta sobre esse modo particular de mutualismo que é a simbiose inter-específica são, dizendo pouco, massivas. Ainda mais do que Apoio mútuo de Kropotkine, o trabalho de Henry documenta as relações mutualistas a partir da relação inter-específica entre rhizobium e legumes, passando pelas associações vegetais, pelo comportamento simbiótico entre animais, para chegar ao grande mecanismo homeostático de escala planetária ao nível das relações bioquímicas.

A adaptação raramente tem um significado biológico como pura sobrevivência e adequação ao meio das espécies. Se ficar por este nível de superfície, torna-se apenas uma empresa de adaptação individual que não consegue explicar a necessidade dos sistemas vitais de apoio que todas as espécies têm, seja por sistema autotrófico ou heterotrófico. A teoria evolutiva tradicional tende a abstrair uma espécie do seu ecossistema, isolando-a e considerando a sua sobrevivência de modo muito abstracto. Por exemplo, a interacção de mútuo apoio entre os organismos de fotossíntese e os herbívoros, longe de ser a forma mais simples de acção predatória ou de heterotrofia, é ao invés indispensável até para a fertilidade do solo, graças aos dejectos animais, à disseminação das sementes, à reciclagem dos cadáveres num ecossistema que se enriquece a cada momento. Mesmo os grandes carnívoros, predadores dos herbívoros, têm uma função vital, de controle demográfico selectivo, eliminando os animais doentes ou velhos, para os quais a vida estaria destinada a ser sobretudo sofrimento.

Paradoxalmente se desvalorizamos o significado do verdadeiro sofrimento e da crueldade reduzindo-o a dor e a acção predatória, do mesmo modo desvalorizamos o significado da hierarquia e da dominação roubando-lhes o sentido social e reduzindo-as a relações transitórias entre indivíduos mais ou menos violentos no seio duma específica comunidade gregária animal. O medo, a dor e a morte que um matilha de lobos dá a uma velha rena doente dão testemunho não da crueldade da natureza mas antes dum modo de morrer adequado à renovação orgânica e à estabilidade ecológica. O sofrimento e a crueldade pertencem ao mundo da angústia pessoal, da dor inutilmente infligida, da degradação moral de quem atormenta a vítima. Estas noções não são aplicáveis à eliminação dum organismo que já não pode funcionar a um nível que torna a vida tolerável. É perverso associar qualquer dor a sofrimento, qualquer acção predatória com crueldade. Sofrer a angústia da fome, os traumas psicológicos, a insegurança, o abandono, a solidão, a morte na guerra, as doenças incuráveis, nada disto pode ser comparado com a breve dor duma morte quase insciente dum acto predatório. As aflições da natureza são raramente tão cruéis como os sofrimentos sistemáticos e organizados infligidos pela sociedade humana aos seres vivos, animais ou homens, de perfeita saúde, sofrimento que só a mente humana pode conceber.

daf_in_kobaneNem a dor, nem a crueldade, nem a agressão, nem a competição explicam de forma satisfatória o aparecimento e o desenvolvimento da vida. Para uma melhor explicação devíamos tomar em consideração o mutualismo e um conceito de “adaptação” que reforce os sistemas de mútuo apoio e que responsabilize o mais adaptado. Se estamos dispostos a reconhecer a natureza auto-organizativa da vida, o papel decisivo do mutualismo e a sua dinâmica evolutiva impõem-nos a redefinição de “adaptação” em termos de ecossistema. E se estamos dispostos a ver a vida como um fenómeno que pode modelar e conservar aquele mesmo “ambiente” que se considera como fonte selectiva da sua evolução, uma pergunta crucial se impõe: faz sentido continuar a falar de “selecção natural” como força motriz da evolução biológica? Não precisaremos antes de falar em “interacção natural” para darmos conta de forma plena do papel da vida no criar e no orientar as forças que explicam a sua evolução? A biologia contemporânea dá-nos um quadro de interdependências muito mais importante na modelação das formas de vida do que tudo aquilo que um Darwin, um Huxley ou os autores da Síntese Moderna poderiam ter previsto. A vida é necessária não apenas em termos de auto-conservação mas até por causa da sua auto-formação. “Gaia” e a subjectividade são mais que efeitos da vida: são os seus atributos integrais. A grandeza duma autêntica sensibilidade ecológica, bem diferente do “ambientalismo” superficial hoje dominante, é que ela nos dá a possibilidade de generalizar de modo radical as inter-relações mutualistas, fazendo da variedade em que assenta o fundamento da estabilidade. A sensibilidade ecológica dá-nos uma perspectiva coerente que explica a realidade no sentido pleno do termo, dando-lhe uma explicitação ética.

Desde a longínqua idade helénica até ao primeiro Renascimento a “natureza” foi vista sobretudo como bússola de orientação ética, graças à qual o pensamento humano encontra o seu sentido e a sua coerência. A natureza não humana não era externa à natureza humana e à sociedade. Ao invés, a mente era apenas uma parcela dum logos cósmico que fornecia critérios objectivos para os conceitos pessoais e sociais de bem e de mal, justo e injusto, belo e feio, amor e ódio e, em suma, para todo um conjunto de valores, graças aos quais era possível caminhar em direcção da virtude e duma existência feliz. As palavras dike e andike – justiça e injustiça – compunham a cosmologia dos filósofos gregos da natureza. Sobraram até hoje traços desses valores em numerosa terminologia da moderna linguagem das ciências da natureza, por exemplo em palavras como “atracção” ou “repulsa”.

O erro da cosmologia antiga não reside na sua orientação ética mas na sua aproximação dualista à natureza. Por causa da maior importância atribuída à especulação sobre a experimentação, a antiga cosmologia cometeu o seu maior erro ao tentar ligar uma natureza fecunda auto-organizada com uma força vital alheia ao mundo natural. A dike de Parménides é, como o élan vital de Bergson, um substituto das propriedades auto-organizantes da natureza, não é uma força interna à natureza, uma força que explique a ordem do mundo. Até nas cosmologias monísticas que procuram juntar eticamente a humanidade e a natureza existe um dualismo latente, um deus ex machina que corrige os desníveis, seja num universo desequilibrado, seja numa sociedade insensata. A verdade tem uma coroa invisível, é uma espécie de verdade de Deus ou do Espírito, já que do mesmo modo que não se confia no desenvolvimento espontâneo da natureza também se espera que o Estado, como herança da “civilização”, funcione.

Estes arcaísmos, com as suas vagas teologias e as suas teleologias rigidamente elaboradas, foram justamente avaliados como armadilhas socialmente reaccionárias. Contaminaram as obras de Aristóteles e de Hegel, como magnetizaram as mentes escolásticas medievais. Mas os erros da antiga filosofia da natureza não residem tanto na tentativa de colher uma ética da natureza mas antes no espírito de dominação que desde o princípio a envenenaram, com a imposição dum “arbítrio” sobrenatural, quase sempre autoritário, que avaliava e corrigia os desequilíbrios ou injustiças que tinham lugar na natureza. Por isto os deuses antigos estavam sempre presentes, por muito racionais que estas primeiras cosmologias pudessem querer ser. Mereciam eles, os deuses, ser exorcismados para que se pudesse construir um contínuo mais significativo e democrático entre natureza e humanidade. Tragicamente, o pensamento do Renascimento tardio não foi mais democrático do que o pensamento anterior; nem Galileu na ciência, nem Descartes na filosofia conseguiram de modo satisfatório esta operação cirúrgica. Eles e os seus herdeiros separaram a natureza da mente, recriando outras divindades, sob a forma de preconceitos científicos e epistemológicos, não menos infectados pela dominação do que a tradição anterior que haviam demolido.

Encontramo-nos hoje ante a possibilidade da natureza – não como dike, justitia, Deus, Espírito ou mesmo élan vital – mostrar eticamente os seus próprios termos. O mutualismo é um bem em si, em virtude da sua função de estímulo à evolução da variedade natural. Não temos necessidade de nenhuma dike nem de nenhum cânone de “objectividade científica” para afirmar a esperança natural e social da vida e do seu papel. Do mesmo modo, a liberdade é um bem em si: a sua reivindicação funda-se naquela que Hans Jonas chamou com finura a “íntima natureza” das formas de vida, a sua “identidade orgânica”, a “aventura da forma”. O esforço visível de auto-identificação que qualquer ser vivo, no decurso da sua continuidade metabólica, para se conservar, põe em prática revela, até nos mais rudimentares organismos, um sentido de identidade e de actividade selectiva que Jonas apropriadamente viu como provas duma “liberdade embrionária”.

Enfim, a crescente complexidade e variedade que, através do curso da evolução, transforma as partículas subatómicas naquelas formas conscientes e auto-reflexivas que chamamos seres humanas, não pode senão levar-nos a reflectir sobre a existência dum telos, entendido este em sentido largo, e sobre uma subjectividade latente na substância que por fim dá lugar à mente e à inteligência. Na reactividade da substância, na sensibilidade dos microrganismos menos desenvolvidos, na formação dos nervos, dos gânglios, da espinal medula, no desenvolvimento estratificado do cérebro, percebe-se uma evolução da mente tão irresistivelmente coerente que a tentação de a definir, ao modo de Manfred Eigen, como “inevitável” é grande. É difícil acreditar que a casualidade pura possa explicar a capacidade que as formas de vida têm para responder neurologicamente aos estímulos, de desenvolver sistemas nervosos altamente organizados, de prever, ainda que de forma confusa, os resultados do seu comportamento e por fim  de conceptualizar de forma clara e simbólica esta antecipação. Uma verdadeira história da mente deveria começar com os atributos da substância, talvez logo nos obscuros esforços dos cristais mais simples para se perpetuarem, na evolução do ADN de fontes químicas ignoradas até ao momento em que manifesta a seu modo aquele princípio de replicação já presente no mundo inorgânico, e na diferenciação de moléculas orgânicas vivas ou não vivas como resultado daquelas características intrínsecas de auto-organização que definimos como propriedade da vida.

O estudo da natureza – deixando de lado todos os preconceitos das epistemologias antigas – mostra uma modelação autónoma da evolução, uma “semente”, por assim dizer, implicitamente ética. O mutualismo, a liberdade e a subjectividade não são valores exclusivamente humanos; estão presentes, ao menos de forma embrionária, nos mais amplos processos cósmicos e orgânicos, que não necessitam de ser movidos por nenhuma divindade aristotélica e não precisam de ser revivificados por nenhum espírito hegeliano. Se a ecologia social conseguir perspectivar de forma coerentemente unitiva o mutualismo, a liberdade e a subjectividade como aspectos duma sociedade cooperativa, livre de dominação e orientada pela reflexão e pela razão, conseguirá então remover as taras que envenenaram desde o início a ética naturalista e dar uma voz ética comum à natureza e à humanidade. Não teremos mais necessidade do dualismo cartesiano ou do mais recente dualismo neo-kantiano que deixa muda a natureza e isola a mente do vasto mundo que a rodeia. Desgastar a comunidade, paralisar a espontaneidade, que, no coração mesmo da realidade auto-organizada, se move em direcção a uma crescente complexidade e racionalidade, limitar a liberdade, tudo isto significa negar a “semente” da natureza, negar a nossa hereditariedade nos processos evolutivos, negar a nossa função no mundo da vida. Se não formos bem sucedidos na criação duma sociedade ecológica e na articulação duma ética ecológica, ficará em jogo, não entrando sequer em linha de conta com as péssimas consequências para o ambiente, nada menos do que a nossa legitimidade ética.

O mutualismo, a auto-organização, a liberdade e a subjectividade, sustentados pelos princípios ecológicos de unidade na diversidade, de espontaneidade e de relações não hierárquicas, são assim fins em si mesmos. À parte a responsabilidade ecológica que estes fins delegam na nossa espécie enquanto voz auto-reflexiva da natureza, eles definem-nos literalmente. A natureza não existe para nosso uso, ela limita-se a legitimar a nossa existência ecológica e a nossa unidade. Como a noção de ser, estes princípios de ecologia social não têm necessidade de explicações, apenas de verificações. São elementos dumaontologia ética, não regras dum jogo que possam ser mudadas para adequar exigências pessoais.

Uma sociedade que nega o núcleo essencial desta ontologia levanta o problema da sua realidade mesma como entidade significativa e racional. A “civilização” deixou-nos em herança uma concepção de alteridade como “polarização” e “desafio” e da essência orgânica, visando a identificação pessoal, como “guerra” permanente. Tais concepções arriscam-se a minar por inteiro a legitimidade ecológica da humanidade e a realidade da sociedade como dimensão potencialmente catalisadora do mundo que nos rodeia. Bombardeados por falsas percepções duma natureza em constante oposição à humanidade, redefinimos de tal modo a nossa essência humana que a guerra passou a ser o preço da paz, o controle o preço da consciência, a dominação o preço da liberdade, o antagonismo o preço da reconciliação. Num tal contexto auto-destrutivo, estamos a construir um Valhalla que por certo se tornará uma mina para as labaredas devoradoras de Ragnarok.

Não obstante, dos conceitos de alteridade e de essência da vida, pode tirar-se um sistema filosófico e social completamente distinto. Se tivermos uma ampla visão ecológica da natureza e concebermos um mundo benigno que a vida plasmou no curso da evolução, podemos então formular uma ética da complementaridade que se alimenta da diversidade em lugar duma ética que tutela a essência individual por meio duma alteridade ameaçadora e invasora. Na verdade a essência da vida pode ser vista como expressão de equilíbrio mais do que como mera resistência à entropia e ao fim de qualquer actividade. A própria entropia pode ser vista como uma das características dum mais vasto metabolismo cósmico, de que a vida é só a dimensão anabólica mais visível. Um tal metabolismo geral pode ser visto como resultante da integração, da comunidade e do apoio mútuo, sem que por isso se diminua a identidade individual e a espontaneidade singular.

Destarte duas alternativas estão neste momento frente a frente. Podemos tentar apaziguar o espírito guerreiro de Odin, pacificando-o a ele e à sua corte, abrindo o Valhalla ao vento da reflexão e da ponderação. Tentaremos então remendar os esfarrapados pactos que outrora sustinham precariamente em conjunto o mundo e passar com eles a melhores e mais benévolas situações. Podemos até esperar que Odin se convença a arrumar a lança, a guardar a armadura e a prestar ouvidos às doces vozes que aconselham o diálogo e a compreensão. Em alternativa os nossos esforços podem dar lugar a uma reviravolta radical: arruinar Odin, de cuja senilidade testemunha uma sociedade abortada. Abandonaremos então os mitos contratuais que “harmonizam” um mundo intrinsecamente dividido, esses mitos mantidos de pé pela épica nórdica com o exílio e as cadeias. O nosso desafio será então criar um novo mundo e uma nova sensibilidade, a partir duma base de reflexão pessoal e duma ética de que somos herdeiros enquanto resultado do incessante movimento evolutivo em direcção à consciência. Temos a possibilidade de nos legitimar como expressão acabada da mente no mundo da natureza, como racionalidade que favorece a diversidade natural e integra os processos naturais com sucesso, uma certeza e uma direcção que são porém incompletos na natureza não humana.

A “civilização” tal como a conhecemos hoje é mais muda do aquela natureza em nome da qual ela, a civilização, pretende falar e mais cega do que aquelas forças elementares que pretende controlar. Esta “civilização” vive mergulhada no ódio ao mundo que a rodeia e no ódio por si. As suas cidades estão feridas, esventradas, as terras degradadas, a água e o ar envenenados; a sua mesquinha cobiça é uma acusação diária à sua imoralidade odiosa. Um mundo assim empobrecido é talvez irrecuperável, ao menos no quadro das suas actuais estruturas institucionais e éticas. Se o fogo de Ragnarok purificou o mundo nórdico, o apocalipse nuclear que ameaça engolir o planeta poderá deixá-lo irremediavelmente inútil para a vida, cadáver testemunhando um fracasso cósmico. Este planeta merece um destino melhor do que aquele que parece esperá-lo no futuro – já que a sua história, incluída a humana, se não mais houvesse, foi rica de promessas, de esperanças, de criatividade.

MURRAY BOOKCHIN

[tradução de A. Cândido Franco]

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[Curdistão – Argentina] Entrevista com militante internacionalista

09 segunda-feira mar 2015

Posted by litatah in Anarco Feminismo, Anarcosindicalismo, Anarquia, Anti Capitalismo, Anti Consumismo, Anti Fascismo, Anti Machismo, Anti Misoginia, Antirracismo, Curdistão/Kobane, Entrevistas, Municipalismo Libertário

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Argentina, confederalismo democrático, Curdistão, iraque, irã, Kobane, milícia curda, militante, PKK, Rojava, Síria, turquia

Fontes: RedLatinaSinFonteiras
Original de PERFIL, aqui.
Tradução por Arthur Dantas, do Coletivo Anarquia ou Barbárie.

Por Diego Rojas, 15/02/2015

De volta: María Alvarez viveu sua própria experiência no frente. A sua foi uma experiência que incluiu somar seu conhecimento nos campos de refugiados yazidis.

De volta: María Alvarez viveu sua própria experiência no frente. A sua foi uma experiência que incluiu somar seu conhecimento nos campos de refugiados yazidis.

A experiência da entrevistada em uma das regiões mais conflituosas do planeta. Na luta do Curdistão, não só há questões étnicas e religiosas: também há o papel fundamental das mulheres nessa sociedade.

ISIS (Estado Islâmico) foi derrotado. A notícia percorreu o mundo no final de janeiro deste ano. Os grupos armados do grupo terrorista que querem impor o califado islâmico em todos os lugares – e que tem predileções por degolamentos e execuções de jornalistas e de reféns estrangeiros, além de uma forte opção pela opressão da mulher – tiveram que abandonar Kobanê após dois anos de combate. Os vencedores foram os combatentes organizados nas milícias do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PPK).

Entre as mulheres armadas com Kalashnikovs, combatentes do sexo masculino disparando contra os islamitas, no interior da infra-estrutura de uma cidade destruída pelos bombardeios, uma mulher argentina chegou ali para ajudar com os deveres médicos como uma brigadista.

Nas trincheiras: María Álvarez, profissional da saúde e militante da Convergência Socialista, partiu para o Oriente Médio com a finalidade de chegar à região curda em novembro de 2014.

“Meu plano inicial era entrar pelo Iraque – conta Álvarez ao PERFIL. Viajei à Turquia e me dirigi à fronteira com o Iraque, mas ali negaram meu passaporte porque havia uma situação de guerra. Me informaram que não poderia passar na qualidade de turista ou algo assim. Fiquei, assim, na Turquia ajudando vários campos de refugiados curdos”.
Nos dois anos de combates na região produzidos pelo avanço do ISIS, milhares de refugiados cruzaram a fronteira escapando dos terroristas. ISIS, por seu lado, deixou um total de 20 mil mortos e seqüestrou 3500 mulheres e crianças que foram vendidas em outras regiões sob seu controle.

Médica de guerra: “Em várias cidades colaborei com assistência médica aos refugiados –continua Álvarez. Em Cizre trabalhei em um campo de refugiados yazidis. Nessa cidade havia uma situação de guerra civil em aberto: os curdos consideram que vivem sob ocupação por parte do exército turco e por isso organizaram auto-defesas populares casa por casa, aonde desde as avós até as crianças estão armados e mantém barricadas em todas as quadras. Estavam produzindo um processo similar ao de Rojava, mas na Turquia, um país que é membro da OTAN e por isso não iriam permitir isso tão facilmente”.

— O que é Rojava? – pergunta PERFIL.

— Em 2012, em meio à guerra civil na Síria, o povo curdo declarou sua autonomia através de um levantamento. O exército de Assad retirou-se e assim formaram um governo autônomo baseado em assembléias populares. Isso ocorreu na região de Rojava, que tem três cantões, um chamado Kobane.
O autogoverno também definiu a criação de auto defesas, de homens e mulheres. O papel das mulheres é notável: elas estão na vanguarda não só para defender a revolução com milícias armadas, mas por estarmos à frente de todas as organizações que foram criadas para o auto-governo. Por lei, deve haver duas pessoas para cada posição: se há um presidente tem de ter uma presidenta. Se há um ministro tem que ter uma ministra. Eles estabeleceram uma espécie de Constituição nessas províncias, chamado Contrato Social, onde as mulheres impuseram a criminalização da violência contra as mulheres. É proibido o casamento infantil, a mutilação genital feminina, a poligamia, o dote para a noiva para se casar. Um cargo público não consegue aceder homens acusados de violência contra as mulheres.
Estabeleceram a separação da religião dos organismos de governo. E para defender este processo decidiram resistir ao assédio do ISIS. Os terroristas tinham avançado porque o exército sírio abandonou as regiões sem combatê-los. Retiraram-se deixando os bancos com milhões de dólares. A única resistência armada ao ISIS foi em Kobanê, armado apenas com Kalashnikovs contra esta gente armada pelas monarquias da região, por parte da CIA e Mossad. A mobilização dos curdos na Turquia fez com que iniciassem os bombardeios às posições do ISIS e, assim, avançaram as milícias expulsando-os. Por fim, as milícias curdas derrotaram o ISIS.

— Como continuou sua travessia para chegar a Kobane?

— Dos campos de refugiados na Turquia, onde estava, fui guiada por membros da resistência curda. Uma noite, após planejarmos tudo, subimos em uma van com vários curdos e uma sueca. Andávamos sem luzes por estradas onde não passavam carros. Em um ponto paramos e tivemos que continuar a pé. Nós andamos à noite através de campos abertos e territórios cercados. Também cruzamos uma vala que os turcos fizeram para impedir a chegada de refugiados.
Assim chegamos a Kobane. Lá eu servi como assistente de saúde aos feridos provenientes da frente de combate, nos hospitais que foram armados pelas milícias. O hospital trabalhava com uma equipe de médicos e enfermeiros. Lá se recuperaram vários feridos em combate, de gravidades várias. O médico-chefe do hospital era um jovem com idade inferior a 40 anos que atendia com uma arma na cintura o tempo todo.
Enquanto isso, a luta persistiu e bombas caíam sobre Kobane. Houve momentos dramáticos com os feridos, tive que realizar amputações, de milicianos feridos lutando diretamente com o ISIS. O cenário era dramático. Os terroristas tinham literalmente destruído a cidade. A infra-estrutura de Kobane tinha sido arrasada.

— Qual o rumo político do processo?

— O PKK converteu-se em um verdadeiro partido de massas. Abandonou o marxismo-leninismo e tem uma definição socialista difusa, autonomista, semi-anarquista. São os dirigentes do processo. Conheci comandantes das milícias que vieram de vários lugares do Curdistão.

1k__Cumpa_internacionalista___autodefensa_de_las_mujeres_kurdas– Álvarez faz uma pausa e mostra uma fotografia. Está junto à três mulheres vestidas de fajina. Estas três garotas tinham o grau de comandantes.

– A da esquerda era uma curda de origem turca, a do meio de origem iraniana e a terceira da região da Síria. A comandante que nasceu na Turquia morreu em combate contra o ISIS. As mulheres combateram ombro a ombro com os homens.

O Retorno: Maria Àlvarez retornou ao país em meados de janeiro. Dias depois, os curdos foram às colinas que circundam Kobanê e bandos armados do ISIS fugiram. Kobanê, o bastião em disputa, foi recuperado pelos milicianos curdos e mulheres que haviam derrotado os terroristas mais brutais da era contemporânea. Milhares caíram e a cidade foi destruída, mas mostrou-se que o temido ISIS não era uma entidade invencível. E também enfatizou que a luta das milícias irregulares mistas, impulsionada pela vontade de resistir e, dependendo da continuidade de um projeto político de transformação, podem vencer. Os últimos relatos indicam que os corpos dos membros do ISIS que não eram vítimas dos combates com as forças curdas, indicando divisões e execuções ulterinas. No futuro imediato, ISIS não será um perigo para os curdos, que devem se cuidar em relação às decisões que serão tomadas pelos governos da Turquia e da Síria, que vêem o processo em Rojava como um potencial perigo político.

Para celebrar o triunfo, centenas de bandeiras curdas amarelas, vermelhas e verdes foram hasteadas em toda a região de Kobanê e outras, em Rojava, e mais adiante, em todo o Curdistão.

Há um processo aberto na região curda, uma experiência social e política inédita em marcha e uma moral elevada em todos seus protagonistas devido às virtudes que insuflou nos espíritos dos que sentiram o sabor do triunfo.

 

Notas adicionais à reportagem: “Los problemas étnicos são também ideológicos” –http://www.perfil.com/mobile/?nota=/contenidos/2015/02/15/noticia_0066.html
Por Diego Rojas

Gran Ozcan é membro do Comitê de Solidariedade na América Latina com o Curdistão e conversou com PERFIL sobre o processo político que se desenvolve nessa região do Oriente Médio.

— O PKK é um partido étnico?

— Abdullah Öcalan, o líder do PKK preso na Turquia desde 1999, sempre disse que os problemas étnicos são problemas ideológicos. A questão étnica é um sintoma dos problemas do sistema. Por isso, a luta nacional dos curdos é também uma luta anti-sistema. Öcalan propõe que a questão da independência não pode ser regida por um Estado nacional. A proposta do PKK está centralizada pelo assim chamado confederalismo democrático, que é uma solução antiestatal. Para Öcalan, quando se toma o controle do Estado, o Estado toma controle dele. Por isso tem que desfazer-se do Estado.

— Os marxistas têm como sujeito a classe obreira, O que acha o PKK?

— A centralidade não está colocada na classe trabalhadora, mas [para o PKK] a categoria principal são as mulheres. A mulher é o setor mais explorado. A classe trabalhadora só pode libertar-se uma vez que a mulher tenha se libertado na sociedade. Os curdos em Rojava estão se organizando com essas premissas. As mulheres têm suas próprias milícias. Todo posto político é composto por duas pessoas, por um homem e uma mulher. É uma revolução porque está mudando o sistema econômico e político. O planejamento é uma revolução antiestatal socialista no Oriente Médio e acreditamos que ela se iniciará pelo socialismo no Curdistão.

— Qual é a situação atual em Rojava?

— Quando o ISIS atacava Kobanê, os turcos mantiveram objetivamente o ISIS. Faz alguns dias que chegou a notícia de que deixaram cair armas para o ISIS de aviões na região síria. Turquia está mantendo-os abertamente. São os inimigos do povo curdo e do processo político que protagonizam. Não por acaso Öcalan foi entregue à Turquia pela CIA e o Mossad. O desenvolvimento dos curdos é uma ameaça para seus interesses na região.

http://www.perfil.com/mobile/?nota=/contenidos/2015/02/15/noticia_0065.html
Saiba mais:

Os curdos são uma etnia que vive no território chamado Curdistão, que se encontra no território de quatro nações com maiorias étnicas diferentes da curda: Turquia, Síria, Irã e Iraque.
Após a invasão dos EUA ao Iraque, se destacou uma zona autônoma curda cujo líder é Masud Barzani, de tendência pró-estadounidense. Foi eleito como presidente do Curdistão iraquiano.
O Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) é uma organização fundada por Abdullah Ocalan, de grande influência na região curda da Turquia e da Síria. Ocalán cumpre uma pena de prisão perpétua na Turquia.
O confederalismo democrático é a forma política do PKK, que apregoa um socialismo antiestatal. Seu sujeito central são as mulheres. O PKK tem milícias masculinas e femininas e advoga por um sistema de decisões tomadas em assembleias populares. Este projeto abarca a região autônoma curda de Rojava, na região síria, aonde derrotaram o ISIS.

Links relacionados:

https://www.facebook.com/nicolas.rio.37?fref=nf&pnref=story
https://www.facebook.com/marialvarezdelanus?pnref=story
http://www.perfil.com/mobile/?nota=%2Fcontenidos%2F2015%2F02%2F15%2Fnoticia_0067.html

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[Curdistão] Comunas e Conselhos de Rojava

03 terça-feira mar 2015

Posted by litatah in Anarco Feminismo, Anarcosindicalismo, Anarquia, Anarquia Verde, Anti Capitalismo, Anti Consumismo, Anti Fascismo, Antirracismo, Aquecimento global - Mudanças climáticas, Comunicação Libertária, Curdistão/Kobane, Revolução

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anarquismo, Anti Fascismo, comunas e conselhos de rojava, comunidades, Curdistão, curdos, Estado Islâmico, Kobane, Qamislo, Revolução de Rojava, Rojava, Tev-Dem

A commune meeting in a Qamislo neighborhood

Um encontro da comuna em uma vizinhança de Qamislo

Postado por Janet Biehl, em Ecology or Catastrophe, em 31 de Janeiro de 2015
Tradução do Coletivo Anarquia ou Barbárie.

No sábado, 6 de dezembro, a Delegação Acadêmica para Rojava reuniu-se em Qamişlo com dois representantes do Tev-dem, o Movimento por uma Sociedade Democrática. Abdulkerim Omar e Çınar Salih primeiramente nos deram um histórico do pensamento de Rojava sobre o estado e a democracia. Em seguida, eles explicaram a estrutura do auto-governo – o sistema da comuna e do conselho – e responderam nossas perguntas. Falando por meio de tradutores, Salih foi quem mais falou a respeito.

Nós construímos a nossa democracia para que as pessoas de diferentes nacionalidades vivam juntas. Nos somos novos, e nós cometemos erros, e nós estamos tentando parar o Daesh [Estado Islâmico] de entrar em Rojava. Outras delegações vieram aqui, mas estamos muito satisfeitos em ter vocês. Seu projeto está nos dando esperança. Nós não alcançamos a liberdade ainda, mas aprendemos a lutar.

O sistema em que estamos vivendo já se arrasta há cinco mil anos. Diferentes fases da história tem dado-lhe nomes diferentes, mas em seu núcleo, ele se manteve o mesmo, e seu principal pilar é o Estado. Isto tem de ser bem compreendido. Nos últimos cem anos, as pessoas têm lutado contra o Estado, e elas conquistaram a independência historicamente, mas elas não conseguiram a liberdade, porque não se emanciparam do Estado. O seu conceito de liberdade permanece dentro dos limites do Estado.

Ao invés de um estado independente, nós preferimos autonomia. A solução tem que ser ao nível das bases. O sistema do Estado-nação criou muitos preconceitos, para que as pessoas pensem que árabes e curdos e turcos não podem se dar bem. Essa ideia foi reforçada pelo sistema do Estado-nação. Foi incutido na cabeça das pessoas e com más consequências. Isso excluiu condições de coexistência e cooperação entre as pessoas. Estamos lutando para se livrar desses preconceitos e criar condições para a convivência.

Acreditamos que o sistema estatal é igual à destruição sistemática das mulheres, e que a autonomia democrática é igual a libertação das mulheres. É por isso que a nossa revolução de Rojava é uma revolução das mulheres. Em Rojava, não há nenhuma área da vida em que as mulheres não sejam ativas. Uma das nossas maiores conquistas foi a quebraa deste dogma predominante no Oriente Médio, que as mulheres são fracas e necessitadas, como expresso de diferentes maneiras, como na lei da Sharia. Mas este é apenas um dos resultados de nossa revolução. Nós acreditamos que uma revolução que não abre o caminho para a libertação das mulheres não é uma revolução. Houve revoluções na Líbia e no Egito e na Tunísia, houve novos governos, mas o mesmo status para as mulheres tem persistido.

Nosso sistema repousa sobre as comunas, constituídos de bairros de 300 pessoas. As comunas têm co-presidentes, e há co-presidentes em todos os níveis, desde a administração da comuna à administração do cantão. Em cada comuna, há cinco ou seis comissões diferentes. Elas funcionam de duas maneiras: primeiro, eles resolvem os problemas de forma rápida e precoce (por exemplo, um problema técnico ou um social). Alguns trabalhos podem ser feito em cinco minutos, mas se você o envia para o estado, ele cai em uma burocracia. Assim, podemos resolver problemas rapidamente. A segunda maneira é política. Se falamos de uma verdadeira democracia, as decisões não podem ser feitas a partir do topo e ir para baixo, elas têm de ser feitas de baixo para cima e “subir em degraus”. Há também os conselhos distritais e municipais, até o cantão. O princípio é “poucos problemas, muitas resoluções”.

Para que o governo não permaneça suspenso, tentamos preenche-lo debaixo. Houve perguntas sobre como a base é realmente organizada. Então, pode fazer essas perguntas.

 

Salih and Omar na sede de Tev-Dem, em Qamislo

Salih and Omar na sede de Tev-Dem, em Qamislo

 

Q. É conceito muito interessante e, provavelmente, há tensões e desafios dentro deste sistema. Uma delas é a tensão entre as decisões a partir de baixo e necessidades imediatas no nível de todo o cantão. Por exemplo, provavelmente você tem que decidir de uma forma centralizada que você precisa para montar um moinho de fazer farinha. Ou você tem que decidir construir uma refinaria. Estrategicamente, essas são coisas muito importantes. Por outro lado, você tem este sistema de baixo para cima que vem das comunas. Não é útil estabelecer infra-estrutura semelhante em vários municípios ou em várias cidades. Então você precisa de algum tipo de coordenação entre as comunas e as câmaras municipais. Quem as coordena?

Nós também estamos discutindo essas questões; não há uma fórmula pronta a ser aplicada. Conversar com os números pode ajudar. Qamişlo tem 6 distritos diferentes. Cada distrito tem 18 comunas, e cada comuna é composta por 300 pessoas.
Agora, cada município tem dois co-presidentes eleitos. E cada comuna tem diferentes comitês. Os dois co-presidentes eleitos de cada comuna reúnem-se para compor juntos o Conselho popular daquele distrito.

Q. Cada comuna vota para os representantes que vão para o nível mais alto?

Sim.

Q. Qamişlo fica com mais representantes: quem decide quantos representantes cada cidade recebe?

É com base na população.

Q. De acordo com o qual censo?

Da época do regime. Neste momennto, o conselho popular do cantão ainda não existe. Está sendo feito um censo agora. Mas a nível de comuna em cidades, isso já funciona. O conselho popular do cantão nem sequer tem um nome ainda; ele ser chamado de parlamento.

Cada comuna tem comitês como, digamos, um comitê de saúde, e existem comitês semelhantes em níveis mais elevados. É assim que eles se certificam que o comitê de saúde da administração do cantão tem uma conexão direta com as necessidades da comuna.

Q. Qual é o papel da Tev-Dem?

Tev-DEM coordena e mobiliza as pessoas nas bases, e assim realiza a conexão para o parlamento. Isso garante a ligação da democracia direta ao governo. Ele mobiliza e coordena, mas também se senta no parlamento, onde representa os interesses do povo. É uma dupla identidade.

Q. O conselho das mulheres existe em paralelo ao conselho popular, nos quais as mulheres têm 40 por cento. Isso existe em todos os níveis? E todos têm poder de veto sobre as questões das mulheres?

Sim. O conselho das mulher existe em paralelo em todos os níveis: da comuna, do distrito, da cidade e do cantão. Os conselhos das mulheres não decidem sobre questões gerais – os conselhos populares é que são para isso. Elas discutem questões que são especificamente sobre mulheres. Se há uma disputa social, falam sobre conflitos interpessoais. Uma comissão tenta resolver problemas entre as pessoas. O conselho de mulheres também tem uma comissão como esta. Então, se elas veem nesta comissão um problema que diz respeito às mulheres, como uma disputa de violência doméstica, e elas não concordam com o conselho popular, e elas dizem ‘não’, o ‘não’ do conselho das mulheres será aceito. Elas têm o poder de veto sobre as questões relativas às mulheres.

Q. É sempre claro o que é um problema das mulheres?

Nós analisamos caso por caso. Não há alguma fórmula definida. Sempre que um conselho das mulheres veta algo, este veto é aceito. Se um problema não pode ser resolvido ao nível mais baixo, essas questões vão a tribunal. Mas estas questões, como todas as questões em Rojava, são resolvidas primeiro localmente, quando possível.

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A esquerda refém da institucionalidade aprisiona a revolução

20 sexta-feira fev 2015

Posted by litatah in #contratarifa, Anarco Ecologia, Anarco Feminismo, Anarco Primitivismo, Anarcosindicalismo, Anarquia, Anarquia Verde, Anti Capitalismo, Anti Consumismo, Anti Fascismo, Anti Homofobia, Anti Machismo, Anti Misoginia, Anti Transfobia, Antirracismo, Aquecimento global - Mudanças climáticas, Bakunin, Chomsky, Comuna de Paris, Comunicação Libertária, Cultura, Curdistão/Kobane, Esquerda partidária, Experiências anarquistas, Feminismo e Transfeminismo, Gentrificação, Grécia, História, Internacional anarquista, Kropotkin, Malatesta, Manifestações, Militarização das periferias, Mobilidade Urbana, Mobilização Indígena, Mobilização Quilombola, Moradia, Municipalismo Libertário, Murray Bookchin, Oaxaca, Organização de base, Prática, Presos Políticos, Propostas, Questão indígena, Questão racial, Quilombolas, Revolução Espanhola, Teoria

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ethos

Por Gilson Moura Henrique Júnior

O advento do governo do Syriza na Grécia expõe dois caminhos que são exemplares demonstrações das contradições da esquerda partidária.

Um deles é o do salutar ânimo com a vitória de um programa avançado em relação ao de uma direita liberal e até de algo bem pior, o programa nazifascista de grupos como Aurora Dourada. Outro é o aprisionamento da conquista do governo como elemento de avanço social coletivo rumo a uma revolução, numa reedição do etapismo stalinista com a roupagem da limitação da utopia como horizonte.

Essa contradição é filha de um processo histórico que ameniza, adestra, amacia a esquerda revolucionária, tornando-a geradora de alternativas transformadoras para a institucionalidade sem mudança concreta de sistema.

Esse processo histórico começa na assimilação das sociais democracias europeias pelo capitalismo a partir dos primeiros anos do século XX; passa pela política dos Partidos Comunistas (PCs) de convivência pacífica com o capitalismo a partir de uma mistura de etapismo e aliança com as burguesias nacionais em nome da produção de “libertações nacionais diante do imperialismo”, obedecendo às ordens do Politburo1 de Krushev e seus sucessores; o processo avança com o surgimento de uma esquerda pós-PCs que organiza diversos grupamentos de origem múltipla entre marxistas-leninistas, trotskistas, esquerda cristã, etc e que vê nos avanços da institucionalidade e na redução da miséria um norte que em paralelo à organização dos movimentos sociais pode trazer um processo revolucionário, mas que ao fim e ao cabo só constrói e fortalece no programa democrático popular e suas variantes a vertente de reforço à ocupação do estado e humanização do capitalismo que acaba tendo o mesmo efeito da assimilação da social-democracia pelo capital no início do século XX e termina num mundo onde a cada possibilidade de ampliação da organização popular nas ruas se constrói um contraponto com discurso radical e que mira a ocupação da institucionalidade e não a transformação do sistema.

Todo esse processo não tem explicação fácil e precisa de uma ampla investigação inclusive entre marxistas para compreender que parte do processo organizativo da esquerda partidária acaba por produzir a partir dela apenas elementos de renovação do sistema capitalista com produção de avanços concretos, mas limitados, para a vida da população, sem produzir a ruptura que garanta que esses avanços sejam pontos de partida para avanços maiores.

Não podemos cair também em simplificações de demonização pura e simples do poder e construção de fraseologia que produz comparações amalucadas entre o anarquista e o autonomista e o militante da esquerda partidária como se ler Bakunin trouxesse naturalmente superioridade moral, ética e política ao leitor em relação ao trotskista.

A questão é muito mais ampla e exige uma investigação baseada no método, que investigue a forma organizativa, etc. O primeiro ponto a meu ver é investigar o motivo da insistência na priorização da ocupação de governos, por maiores avanços que produzam, sabendo que isso gera uma paulatina cooptação que, via de regra, torna partidos radicais em simulacros discursivos cujo objetivo final é manter o sistema. O caso do PT, por exemplo, não é exceção, é regra.

Outro elemento sintomático é uma recusa a assimilar processos revolucionários com desconstrução do estado, como o processo revolucionário Curdo no norte da Síria, como parte do horizonte utópico da esquerda como um todo enquanto se abraça com tesão redobrado processos como o do Syriza, o do PODEMOS, o do PSOL, com falhas gritantes e elementos extremamente preocupantes que deixam sinais bem nítidos de cooptação pelo estado e pela institucionalidade sem nenhuma proposta mais radical de transformação deste com o fim de produção de uma sociedade mais igualitária.

Enquanto no Curdistão Sírio se produz uma política, uma economia e uma justiça radicalmente horizontais, comunitárias, comunistas, libertárias, com interseccionalidade e cuja forma revolucionária se torna mais eloquente quando entendemos que isso ocorre no coração do majoritariamente conservador Oriente Médio, na Grécia, Espanha e Brasil se produzem processos de ocupação do estado a partir de bandeiras mais ou menos radicais sem nenhuma proposta de fundo de reforma que vá além de avanços pontuais.

É positivo que se audite a dívida pública? Opa, é claro! Mas quando isso se torna o ponto máximo de radicalidade na luta contra o sistema financeiro e seu domínio das populações a partir do controle dos estados, a coisa toda complica. Nenhuma proposta mesmo de controle popular do sistema financeiro. Popular e não estatal, é preciso enfatizar. Sério que não rola nem isso como horizonte utópico? E por que não rola?

É positivo que se lute pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo? Muito, enormemente, mas e ai? Esse é o horizonte máximo? Que tal um processo de discussão horizontal, em fóruns amplos, da demolição da homofobia, machismo e misoginia a partir da escola com um debate em cada comunidade, com intervenção dos coletivos de militantes homoafetivos, de mulheres, etc, para que a partir da escola se transforme a divisão social com discriminação por gênero, orientação sexual ou identidade de gênero? Que tal propor mais que algo que se precise ter o controle estatal, partidário? A perda do controle é uma ameaça? Não pode haver revolução sem a gestão dela a partir de dirigentes partidários?

Esses são apenas alguns pontos onde se vê muitos ecos de formas de organização que ao fim e ao cabo cerceiam, freiam, processos de desconstrução do estado e da hierarquização por ter a ocupação da institucionalidade como norte máximo.

Como ampliar o programa e avançar na luta pela hegemonia do pensamento coletivo rumo a uma revolução, se com medo de perder votos se opta conscientemente por calar temas indigestos ao eleitorado?

Imaginam-se processos de ampla libertação feminista como no Curdistão Sírio onde as mulheres são e foram centrais inclusive na reorganização dos grupos de defesa social, que chamamos aqui de “tropas de resistência do exército curdo” ainda viciados na retórica com jargões estatais e estatistas, em países como Espanha, Grécia e Brasil? Em partidos como PODEMOS, Syriza e PSOL? Não, e exatamente porque a ideia da hierarquia compõe o processo de divisão social machista e que ainda se mantém nestes e na maioria dos partidos.

Isso também ocorre em coletivos anarquistas e autonomistas? Claro, mas o exemplo do Curdistão Sírio aí é mais fundador e fala mais alto do que o exemplo das experiências partidárias, e é nítido, eloquente, tá claro pra esses coletivos, foi gritado por eles em cada site, jornal, etc que possuem. Para os partidos não, a assimilação do processo levou meses, anos, para se tornar assunto nos meios de comunicação partidários e mesmo assim é tratado de forma secundária diante da vitória do Syriza na Grécia e possibilidade de vitória do PODEMOS na Espanha.

É preocupante que esse tipo de sinal exista vindo de quem sai às ruas disputando-as com quem produz coletivos horizontais de auto-organização popular, postulando ocupar a gerência da revolução ao mesmo tempo que a divide com o desejo de ocupar a gerência do estado. Onde foi parar a ideia de transformar o estado, demolir o estado, tornar o estado um processo comunal?

Não é preciso dizer do quanto é fundamental rediscutir a descentralização da produção de alimentos, da produção de energia, da gerência de energia e discussão sobre matrizes energéticas a partir de processos descentralizados, ainda mais diante da necessidade de redução radical de emissões de carbono, fim do uso de combustíveis fósseis e de tudo o que amplia a crise climática e com ela a crise hídrica, e a crise maior, a crise ecológica, mas como fazer isso se em toda a esquerda que se põe como esperança da população o que se vê é uma recusa a repensar o papel decisório da população em relação ao estado? Como fazer isso se parte de toda a militância que se diz revolucionária se nega a discutir processos de democracia direta concretos que vão além, muito além de plebiscitos pontuais aqui e ali pra fingir que o povo controla o estado e o gere?

Como a gente combate a centralização decisória, política, policial, os aparatos de reprodução ideológica amarrados e sustentados por esta centralização, os aparatos de dominação econômica e os processos de gestão ecológica centralizada e centralizadora, se temos como ferramentas para tal, ferramentas auto proclamadas, quem se põe a favor da manutenção desta centralização a partir de propostas de gerência do estado com tintas “progressistas” e nenhuma ação concreta de desierarquização do processo decisório, de descentralização decisória?

Como a gente pensa ecologicamente, algo que demanda pensar de forma descentralizada e decentralizante, se a proposta central da maior parte dos partidos é manter o estado e reformar o método de gerenciamento dele a partir de parâmetros socialmente avançados, mas ainda dentro da institucionalidade centralizadora e hierarquizante?

Difícil, né?

Enquanto isso, os processos revolucionários como os do Curdistão Sírio são secundarizados pela esquerda partidária e processos de conquista institucional são louvados como panaceia. Ao fim e ao cabo isso diz muito.

Por isso que enquanto permanecer tendo o estado como horizonte, a esquerda é refém da institucionalidade, e enquanto a esquerda manter-se refém da institucionalidade, ela aprisiona a revolução. E aprisiona a revolução pois reforça o papel do estado como gestor da vida comunitária e da população, sem construir parâmetros de descentralização e comunitarização dos processos decisórios.

Enquanto a comunidade não decidir sobre seus rumos e for refém do estado, não há revolução, e enquanto a esquerda se manter como refém da institucionalidade e sonhando com a ocupação do estado, ela serve como impeditivo para que a comunidade decida sobre seus rumos.

1Polítiburo era o nome dado ao comitê central do Partido Comunista da União Soviética e que também funcionava como uma espécie de comitê central internacional dos partidos comunistas.

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[Curdistão] Surge uma Guerrilha Anarquista em Rojava

19 quinta-feira fev 2015

Posted by litatah in Anarco Ecologia, Anarquia, Anarquia Verde, Anti Capitalismo, Anti Consumismo, Anti Fascismo, Antirracismo, Aquecimento global - Mudanças climáticas, Comunicação Libertária, Curdistão/Kobane, Experiências anarquistas, Municipalismo Libertário, Murray Bookchin, Organização de base, Propostas, Revolução, Teoria

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anarco, anarcoecologia, confederalismo democrático, Curdistão, curdos, ecollogista, ecologia, Estado Islâmico, Kobane, kurd, kurdistan, kurds, Municipalismo Libertário, Murray Bookchin, Rojava, Síria

Postado em Jornal Bandeira Preta, Contrainformação Anarquista
Por JBP, em 06 de fevereiro de 2015
Fonte original: SOSYAL SAVAŞ

(Bandeira anarco-ecologista)

(Bandeira anarco-ecologista)

Recentemente um grupo de anarco-ecologistas da Turquia e outro da Espanha, assim como anarco-ecologistas de vários lugares do mundo, conjuntamente, somaram-se as Forças Unidas de Libertação (BOG), ”Birleşik Özgürlük Güçleri”, de Kobane (Rojava), formando uma frente internacionalista de combatentes anarquistas e comunistas.

Eles fizeram um chamado não só para anarquistas de varias tendências de todo o mundo, mas também a libertários, ecologistas e anti-capitalistas, a se somarem à luta e ao apoio desta revolução social. Cada um com sua língua e cor, através da auto-organização e solidariedade, mobilizando-se em rebeldia.

A guerrilha anarquista se comprometeu em continuar apoiando a defesa de Kobane e Rojava como um todo, assim como ajudar na reconstrução da vida comunal no local recém liberado.

O teórico que deu origem ao “Confederalismo Democrático”, a proposta revolucionária sendo atualmente implantada em Rojava, foi Murray Bookchin, um famoso ambientalista bem próximo dos ideais anarquistas, que escreveu sobre o “Municipalismo Libertário”.

(A cidade de Kobane, destruída após a batalha contra o “Estado Islâmico”)

(A cidade de Kobane, destruída após a batalha contra o “Estado Islâmico”)

(Anarquistas e comunistas somando forças para uma frente internacionalista em Rojava)

(Anarquistas e comunistas somando forças para uma frente internacionalista em Rojava)

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[Curdistão] 6 Notas sobre a Economia da Revolução de Rojava

11 quarta-feira fev 2015

Posted by litatah in Anarquia, Anti Capitalismo, Anti Consumismo, Anti Fascismo, Curdistão/Kobane

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Curdistão, curdos, economia, Kobane, kurdistan, revolução, Rojava

Fonte: Passa Palavra, 5 de fevereiro de 2015, já traduzido por Leo Vinicius a partir do original por Nic Beuret, postado em Novara Wire.

rojava-map

O programa econômico de Rojava, junto com os outros elementos da revolução, torna-a um experimento em ‘democracia sem estado’ o qual vale a pena apoiar e aprender. Por Nic Beuret

Muito já foi escrito sobre a revolução em Rojava, um território composto por três cantões de maioria curda no norte da Síria, que se tornou famoso pela defesa da cidade de Kobane contra as forças do Estado Islâmico. Após a Síria entrar em guerra civil em 2011, o povo de Rojava, incluindo muitos esquerdistas curdos, tomaram a região e embarcaram num projeto radical que eles chamam de ‘autonomia democrática’. Esse projeto visa criar uma democracia sem o Estado através da criação de conselhos e comunas em vários níveis políticos para governar o território, assim como trabalhar para abolir a polícia. Rojava também é famosa (com justiça) por colocar uma política feminista no centro do projeto político. Implementou sistemas de quota para participação feminina em várias comunas e conselhos, sendo quase tão mencionadas quanto a participação armada das mulheres nas forças de defesa de Rojava. Mas tudo isso raramente é suficiente para alguns segmentos da esquerda – a questão que não cala é, sem dúvida, e as relações de classe e a economia? Afinal, não é realmente #comunismointegral sem a tomada dos meios de produção…

Não muito tem sido escrito especificamente sobre a economia de Rojava, fora alguns poucos relatos de delegações que visitaram a região e entrevistas com representantes. Porém, o que sabemos até agora é que a transformação econômica de Rojava é tão radical quanto o resto do projeto.

rojava11. O estado da economia antes de 2011

As regiões que compõem Rojava foram deliberadamente deixadas no subdesenvolvimento pelo regime Assad e direcionadas para suprir a Síria com matérias primas, incluindo trigo, algodão e petróleo. A região era expressiva como fonte desses produtos, sendo uma das regiões mais férteis da Síria e fonte da maior parte de seu petróleo.

Contudo, embora houvesse vários milhares de poços de petróleo na região, havia poucas fábricas e nenhuma refinaria ou engenho. Cerca de metade da terra era propriedade estatal gerida por pessoas do governo como feudos privados. Após o início da revolução a maioria dessas pessoas e dos capitalistas que havia, fugiram. Os recursos que eles controlavam e que foram deixados para trás foram expropriados pelos conselhos locais.

2. A economia social

A prioridade para os vários níveis do governo de Rojava é implementar o que eles chamam de ‘economia social’ – um sistema econômico construído com base em uma série de cooperativas em todos os setores econômicos. O objetivo inicial é se tornar autossuficiente para satisfazer necessidades básicas como comida e combustível. No momento isso é menos um ideal e mais uma necessidade uma vez que Rojava vive efetivamente sob embargo, sendo muito difícil importar para a região até mesmo os suprimentos mais básicos.

O programa econômico imediato visa criar uma infraestrutura para prover as necessidades vitais. Rações de pão são fornecidas pelas administrações locais a cada família e combustível é distribuído pelas comunas locais. Até agora duas refinarias de petróleo foram construídas assim como uma quantidade de engenhos e de plantas de processamento de laticínios geridos publicamente. Desde 2011 a nova administração tem tomado as terras que antes eram detidas pelos quadros do governo sírio e distribuído muitas delas a cooperativas rurais auto-organizadas.rojava4

3. Dinheiro e comércio

O objetivo final é construir a economia inteira de Rojava sobre a base de cooperativas ou outras pequenas unidades econômicas, juntando-as em uma rede na qual o uso do dinheiro seja minimizado ou eliminado. O que é produzido atualmente é vendido às várias entidades administrativas ou nos mercados locais onde o controle de preços é imposto aos produtos que são considerados ‘essenciais’.

A moeda síria ainda é usada, mas embora empréstimos possam ser feitos, juros não podem ser cobrados. Não há bancos no momento, embora haja um plano de criação de bancos para guardar economias, e o capital privado não será impedido de investir na região uma vez que ele adira aos princípios econômicos mais amplos da região. Muitos dos produtos nos mercados locais são contrabandeados para a região, um comércio que ainda está para ser coletivizado…

4. Educação

Central ao programa econômico é o desenvolvimento do setor educacional, incluindo um sistema acadêmico que oferece uma gama de cursos intensivos. Sob o regime Assad, competências e conhecimentos profissionais eram restritos aos membros do regime. No sistema acadêmico há uma estratégia consciente de desprofissionalização de modo a quebrar a divisão entre profissionais e não-profissionais e prevenir o aparecimento de uma nova classe tecnocrática.

As próprias lições na academia enfatizam fortemente a partilha de experiência entre os alunos de modo a quebrar a hierarquia professor-aluno, e focam a resolução de problemas em vez da aprendizagem por memorização. Fundamentalmente, a participação é uma das principais competências adquiridas nas academias, abrindo os vários conselhos e comunas a um engajamento social mais amplo, que pode não acontecer de outra forma (a participação é uma competência desigualmente distribuída em Rojava da mesma forma como é no Reino Unido).

5. Sindicatos e associações

rojava3Uma vez que grande parte da economia está nas mãos das cooperativas ou nas mãos privadas de indivíduos, os sindicatos e associações são limitados em número. Há, contudo, um número de sindicatos e associações, incluindo vários de agricultores, engenheiros e agrônomos, assim como uma associação de mulheres que se organiza pelos direitos das trabalhadoras, remuneradas e não remuneradas, que cuidam de pessoas.

6. A polícia

Uma associação que não será formada é a de policiais. O plano em Rojava é, ao fim, abolir a polícia, embora como a Asayis (segurança civil) responde aos conselhos locais e não ao Estado (não existente), o termo ‘polícia’ não seja usado. A função da Asayis é garantir a segurança da população e levar as disputas aos conselhos locais onde elas são na maioria das vezes dirimidas através de diálogo. O plano final é garantir que a maioria da população tenha treinamento em autodefesa e resolução de litígios de modo a difundir esses meios e capacidades a todos. O quadro geral é o de uma economia cooperativa onde as necessidades básicas são fornecidas pelas administrações locais ainda que estruturas de mercado ainda existam, embora em formas limitadas. Competências e educação, incluindo aquelas que envolvem autodefesa, estão sendo coletivizadas – com o objetivo de erradicação de hierarquias de conhecimento e de capacidades para violência. O programa econômico de Rojava, junto com os outros elementos da revolução, torna-a um experimento em ‘democracia sem estado’ o qual vale a pena apoiar e aprender.

 

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[Curdistão] Entrevista com Mehmet Dogan, sobre a Luta do Povo Curdo

09 segunda-feira fev 2015

Posted by litatah in Curdistão/Kobane, Municipalismo Libertário, Revolução

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co-presidencia, confederalismo democrático, Curdistão, curdos, feminismo, iraque, irã, Kobane, kurdistan, liberdade, oriente médio, Rojava, Síria, turquia

Postado em LibreRed em 30 de Janeiro de 2015
Tradução do Coletivo Anarquia ou Barbárie

Entrevistamos Mehmet Dogan, jornalista, documentarista e antropólogo curdo, que nos explicou a história da luta do povo curdo, a atualidade e a relevância que tem este povo nos conflitos que existem no Oriente Médio; um povo com 40 milhões de pessoas às quais os países imperialistas nunca permitiram escolher seu próprio destino. Por isso, os curdos vivem divididos entre Turquia, Síria, Irã e Iraque, em uma área similar em tamanho à da Espanha, mas situada em uma posição geoestratégica crucial na qual há importantes reservas de petróleo, gás e outros recursos minerais.

Qual é a sua análise sobre a situação atual do Oriente Médio?

Há dois conflitos centrais no Oriente Médio: o da Palestina e o do Curdistão. O conflito palestino é bastante conhecido, suas causas e as forças envolvidas. No entanto, recentemente, tendo o Hamas na liderança do processo de resistência, e tendo ganhado a disputa política com a OLP, atrevo-me a dizer que não há um processo revolucionário na Palestina. Há uma luta por independência, mas independência não é sinônimo de revolução. Obviamente, os palestinos têm direito de lutar por sua independência e sua autodeterminação.

Conheço muitos companheiros curdos que morreram ao lado dos palestinos nos anos 1980, mas não devemos misturar as coisas ou entramos em confusão. O conflito entre Israel e os palestinos não tem como pano de fundo um processo revolucionário que possa mudar por completo a realidade do Oriente Médio. Por isso, o centro da revolução não está na Palestina. O centro da revolução no Oriente Médio está na Síria, está no Iraque e antes de tudo, na Turquia.

Nos anos 1960 e 70, em todo o mundo havia uma juventude combativa, quando haviam lutas de libertação em todos cantos do mundo. Nessa época houve uma luta muito interessante na Turquia. A esquerda turca e o povo curdo em geral, em muito pouco tempo, conquistaram muito terreno e ainda estiveram perto de liberar o país. Durante os anos 1970 e 80, nas mesmas décadas que na Argentina, houveram regimes ditatoriais.

Na Turquia, o imperialismo controlava o estado através do exército turco, que vale a pena dizer, é a segunda maior força da OTAN, obviamente depois do exército ianque. O movimento revolucionário, a esquerda revolucionária turca e o povo curdo foram vítimas de uma repressão brutal. Em 1980, fez-se um golpe de Estado e em apenas 3 meses houve pouco menos de 600 mil prisões. Todavia, há 20.000 desaparecidos. Desde então, até a atualidade, 5 milhões de camponeses foram removidos à força, e hoje em dia, temos 12 mil presos políticos.

Este movimento que nasceu na Turquia tem uma programa a favor dos povos, a favor das classes populares, contra o sistema neoliberal e, inclusive, um programa ecológico também. Podemos dizer que é uma ideologia socialista comunitária. No início da década de 2000, a direção do PKK, que significa Partido dos Trabalhadores do Curdistão, criou uma grande frente chamada de União de Comunidades do Curdistão (KCK). Esta união de comunidades está unindo outros partidos curdos do Iraque e da Síria. Há mais de 400 movimentos sociais que estão participando desta grande frente.

Esta frente desenvolveu uma nova ideologia que chamam de confederalismo democrático. As bases dessa ideologia apareceram em 1998, momento em que o PKK se transformou de um partido clássico marxista-leninista, em um partido mais socialista comunitário, de um partido independentista em um partido confederado.

Esta transformação implicou uma crítica profunda do Estado nacional capitalista. Para nós, criar um estado nacional, independente, curdo, hoje em dia, não serve ao benefício do povo curdo e de outros povos oprimidos, mas aos interesses do Imperialismo que quer dividir esta região em pequenos Estados. De fato, seria continuar com a política que o Imperialismo sempre teve nesta região. Os franceses, britânicos e gringos dividiram toda esta região com o critério de “uma família, um Estado”, como se pode ver, por exemplo, nos casos de Catar e Iêmen. O objetivo, obviamente, consistia em dividir o Oriente Médio para controlá-lo mais facilmente.

Não há nenhum argumento antropológico, sociológico ou político que possa legitimar a divisão geopolítica que existe atualmente no Oriente Médio. Por isso é que a União de Comunidades do Curdistão tem uma postura muito crítica com respeito a criar uma nova divisão, um novo Estado curdo. O Estado-nação capitalista é um Estado que legitima a dominação em três sentidos: primeiro, permite que uma classe explore as classes populares; segundo, através do machismo; e, por último, temos a dominação sobre a natureza. A mãe terra é vítima deste sistema de superprodução e consumismo.

Então, analisando estes três pontos, os companheiros da União de Comunidades do Curdistão chegaram a algumas conclusões muito interessantes. O confederalismo democrático prevê não apenas a autodeterminação dos povos curdos, turcos, armênios, árabes e persas, como também aposta em construir uma maneira de organização comunal de base, onde todos possam viver em harmonia com a natureza.

Com o confederalismo democrático, a luta ganhou rapidamente a simpatia de todo o povo curdo, mas também de outros povos. Antes, obviamente, as organizações tinham também muita relevância, mas chegou-se a outro nível de massividade através desta nova ideologia.

Em 1984, não havia outra maneira de lutar a não ser através da luta armada, porque havia uma ditadura na Turquia e, no Iraque, Saddam Hussein. A luta armada ganhava rapidamente simpatia e, em 1988, a guerrilha do PKK tinha cerca de 8000 guerrilheiros. E, paralelamente, os companheiros começaram a participar e incentivar as lutas democráticas, a princípio, graças à luta das mães dos desaparecidos e dos presos políticos.

Como se deram conta, é muito similar ao que se passou na Argentina. Logo surgiram movimentos políticos e sociais que nasceram, a principio, na Turquia, mas não se limitaram a este país, justamente porque os curdos também vivem na Síria, Iraque e Irã, dentro das fronteiras arbitrárias que nos impuseram. Pouco a pouco, as organizações nacionalistas curdas destes diferentes países foram levantando a bandeira do confederalismo democrático. Produziu-se uma transformação ideológica muito importante. Esta transformação foi por si uma revolução. Essas mudanças são muito visíveis.

Na Turquia, após algumas semanas houveram eleições. Os companheiros participaram das eleições e alcançaram quase 10% dos votos, obtendo 36 deputados na assembleia nacional e mais de 100 prefeitos. Se vocês viajam para lá, irão ver o que é uma prefeitura socialista comunitária. Vê-se em questões bem concretas: por exemplo, todas as organizações que pertencem a esta União de Comunidades do Curdistão, regem-se sob do princípio da co-presidência. O que quer dizer co-presidência? Uma co-presidência é uma presidência compartilhada por uma mulher e um homem. Suponhamos que em um pequeno povo onde há cinquenta habitantes e existe uma associação de cinema, onde participam 10 pessoas. Para que esta associação possa ser membro das União de Comunidades do Curdistão, ela tem que aceitar o princípio da co-presidência e designar a uma mulher e um homem como co-presidentes. Desta maneira, a mulher começa a ganhar um poder extraordinário.

Desde os anos 1980, a mulher já começou a se organizar em brigadas especiais de mulheres, as quais não somente para a luta armada, como também para atuação na sociedade em geral, mas agora a participação das mulheres tornou-se primordial. Agora, as presidências na Turquia não tem um presidente, mas sim co-presidentes, um presidente e uma presidenta. Isso muda dramaticamente a cabeça feudal e escravista do Oriente Médio. Foi uma revolução o poder imaginar e implementar organizações, presidências, comunas e assembleias populares onde a mulher seja dirigente.

Por outro lado, em cada município ou comuna ou bairro, controlados por este movimento, organizam-se em assembleias populares comunais. Não esperamos transformação do Estado. Esta ideologia, este programa não diz “vamos fazer a revolução proletária, vamos tomar o controle do Estado”. Não vamos esperar que isso ocorra, mas, de onde estamos, organizamo-nos e transformamos a vida. Nesse sentido, tudo que se passou depois de 2001 na Argentina, para nós, foi muito interessante: assembleias populares, piquetes, empresas recuperadas pelos trabalhadores, tudo isso para nós foram experiências muito importantes. Aprendemos com isso e estamos aplicando onde temos controle do território.

Por tudo isso, creio que este conflito é mais interessante porque pode transformar-se em uma revolução e pode modificar a sociedade em todos os sentidos. Vou tentar ilustrar com outro exemplo: os curdos que controlam a parte norte da Síria e Curdistão ocidental, com mais de 70.000 guerrilheiros (a maioria, mulheres), estão aplicando este modelo de confederalismo democrático de forma muito concreta. Há uma cidade na Síria que tem 100.000 habitantes, onde vivem 10.000 árabes, 10.000 armênios, 5.000 assírios, não recordo quantos cristãos e muitos membros de outras etnias. Nesta cidade-comuna, as quais são agora chamadas de cantões, desde 2010, a assembleia popular se forma não pela porcentagem de população étnica, mas pelos dois representantes armênios, dois representantes árabes, dois representantes curdos. Os curdos são maioria na população da cidade, mas não na prefeitura.

Então, com dois representantes – um homem e uma mulher – de cada etnia, a população decide, através de uma forma organizativa e muito direta, a política social, econômica e ecológica da cidade. Esta é uma experiência muito importante. As decisões não se tomam por maioria, devem dar-se por unanimidade. A maioria só quer dizer que 51% decide por 49%, mas isso nem sempre implica que seja correta a decisão.

Assim, esse processo de unanimidade na tomada de decisões permite que se produza uma discussão muito forte entre o povo, entre homens e mulheres, entre organizações, e gera uma dinâmica de formação política extraordinária. Obviamente, isso obriga que haja discussões muito profundas. O processo em si tem sido uma vitória. Levando em conta todos os aspectos, creio que neste conflito há uma luta muito interessante que pode transformar o Oriente Médio. Portanto, no mundo atual não se pode esperar transformações em apenas 5 ou 10 anos, mas insisto que continua sendo muito importante o que se tem conquistado.

Você acha que o governo dos Estados Unidos pode tirar o PKK da lista de organizações terroristas agora que a guerrilha se tornou central na luta contra o Estado Islâmico?

Agora há uma campanha dos amigos do PKK na Europa e Estados Unidos para demonstrar que a lista de organizações terroristas é ridícula. Nos Estados Unidos chegamos a várias dezenas de milhares de assinaturas. Com a campanha temos dois objetivos. Se nos tiram agora da lista porque lutamos contra a Al Qaeda, a CNN não poderá dizer o contrário. O PKK nunca fez ataques em organizações civis nem econômicas, só contra guarnições ou estruturas militares. Na Europa, setores relevantes do povo sabem que o PKK defende o povo, que não é uma estrutura terrorista. Agora estamos propagandeando nossas ideias para que o povo dos Estados Unidos as conheçam e saibam que não somos terroristas. Seu governo só vai tirar o PKK da lista por pressão de parte de seu povo.

Sabem como o PPK entrou na lista de organizações terroristas? Em 2004, o PKK decidiu fazer um cessar fogo unilateral. Pouco depois, Felipe González (primeiro-ministro social democrata da Espanha) em uma reunião da União Europeia propôs incluir o PKK na lista porque o confederalismo democrático que propunha o PKK geraria medo, assim como o cessar fogo, já que facilitaria o crescimento político da organização, em razão da massividade que poderia alcançar com essas medidas. E com a pressão dos Estados Unidos, o PKK entrou na lista.

O Estado Islâmico cresceu e passou a controlar um vasto território em muito pouco tempo. O que pode dizer sobre essa organização?

A organização Estado Islâmico no Iraque e na Síria é um desdobramento da Al Qaeda, e não tem apoio da população destas regiões, nem sequer os sunitas os apoiam. São mercenários que gerando medo, ocupando lugares e matando a todo mundo controlam o território. As pessoas, obviamente e com razão, têm medo e não podem fazer nada. A única força que poderia liderar a iniciativa contra essa perigosa ameaça é o PKK. O PKK resiste e liberta as cidades, não somente do imperialismo, mas, antes de tudo, do Estado Islâmico. Através desta luta podemos mostrar ao mundo inteiro que os islamitas da Al Qaeda e o imperialismo estão juntos.

O imperialismo apoiou e apoia de maneira direta a Al Qaeda/Estado Islâmico, porque querem desestabilizar a região. Querem dizer: “olhem, fizemos uma intervenção em 2003 contra Saddam Hussein para libertar, para exportar uma democracia estadunidense para aí, mas não funcionou”. Eles provocaram o conflito entre sunitas e xiitas, dois ramos do Islã, e agora dizem “olhem, os bárbaros não entendem a democracia, se matam entre si, necessitam de nós”. Tudo para legitimar uma intervenção e uma presença permanente na região, jogam com a Al Qaeda/Estado Islâmico.

Quase 85% dos mercenários da Al Qaeda são jovens que tem nacionalidade francesa, alemã ou britânica. Não vêm de países árabes, não vêm do Norte da África. São estrangeiros, são jovens dos bairros árabes de Paris, de Marselha, de Londres e de Berlim. Eles trouxeram essa força reacionária contra nós, contra todos os povos da região. Claro que agora estão vendendo armas aos Estados que têm que matar essa organização islâmica. Acabaram de vender armas ao Estado autônomo curdo do Iraque por 4 milhões de euros para que lutem contra o Estado Islâmico.

Acabam de vender uma centena de mísseis para Bagdá. Mas, ao mesmo tempo, o imperialismo permitiu diretamente aos islamitas roubar armas no Iraque. Inclusive, os deixaram com mais de 100 tanques com tecnologia de ponta. Os gringos, algumas semanas atrás, saíram desta cidade e deixaram absolutamente todo o equipamento militar. Qualquer comandante militar, quando retraído, se você deixar uma arma ou estrutura militar, as destrói para que mais tarde o inimigo não as possa usar. Bom, os gringos as deixaram aqui de bandeja. Estes equipamentos agora estão sendo operados pelos fanáticos do Estado Islâmico.

O império tem um plano para esta região. Os Estados imperialistas creem poder sair da crise econômica em que estão afogados não com uma guerra mundial como dizia Lênin, mas com conflitos regionais: Norte da África, Oriente Médio, e _ porque não?_ amanhã pode ser o Paquistão ou a Índia. E, claro, após a destruição quem reconstrói tudo? Suas empresas multinacionais. O que aconteceu na Iugoslávia acontece agora nessas regiões, por isso falo que querem balcanizar a região. A única força que pode apresentar um obstáculo contra este plano é o PKK, uma verdadeira força revolucionária e democrática.

Em 2013, o PKK se retirou da Turquia. Ultimamente voltaram a ter presença em território turco?

Em 2009 havia um processo de negociação entre o PKK e o governo turco. Em 2010, rompeu-se essa negociação depois de mais um milhão de idas e vindas. O governo turco oficialmente queria obter a paz, assim como o governo da Colômbia busca fazer com as FARC. Em 2012 começa um novo processo de negociação. Em 21 de Março de 2013, Abdullah Öcalan, que era o presidente do PKK, aceita iniciar novas negociações. A ideia do PKK era a de não continuar com a luta armada e garantir um mínimo de democracia. Durante as negociações, o estado turco aceita que, se o PKK se retira da Turquia, iria se iniciar um processo de paz. Mas, assim como na Colômbia, o governo sai, afrouxa, dá voltas. Na realidade, 30% das forças do PKK se retiraram da Turquia. O PKK está na Turquia mas não continuam suas atividades, atividades estas que consistiam em realizar ataques armados contra centros militares. A Turquia queria jogar com o PKK dizendo “bom, vamos acalmar o PKK” e atacar mais a Síria.

Graças a este processo, o PKK mostrou sua vontade de paz e ganhou inclusive uns 10% de votos. Mas de concreto não há nada, e já acontecem novos pequenos enfrentamentos. A Turquia mandou militares à região do Curdistão porque pensava que podia fazer uma intervenção na Síria, mas não podia porque ali também está o PKK. Não fazem ações militares esperando o processo de paz: é como na Colômbia, é como um cessar fogo. Não é o abandono da luta armada, é uma estratégia para mostrar a vontade de fazer a paz.

Há alguma novidade sobre as investigações das 3 companheiras do PKK que foram assassinadas no início de 2013 em Paris?

Há todas as evidências de que o assassinato só poderia ter sido feito pelo serviço secreto turco com o serviço francês, belga e alemão. Agora sabemos através de grampos telefônicos que comprovam isso. A França está investindo vinte milhões de euros em centros nucleares na Turquia. Para a França, a Turquia é uma potência econômica com a qual se deve ter um bom relacionamento. Por isso negociam assuntos como esses assassinatos. Mataram as 3 companheiras do Centro de Informação do Curdistão de Paris. Eu trabalhei nesse Centro e o conheço muito bem. Há câmeras do serviço secreto francês para observar tudo e é impossível que não tenham gravações dos assassinos. Houve uma mobilização muito importante para denunciar a colaboração entre os serviços secretos e a relação franco-turca. Que isto tudo tenha acontecido em pleno processo de negociação de paz foi uma clara provocação frente ao PKK para que este voltasse a combater, para iniciar uma guerra.

Você mencionou o resultado das eleições turcas onde vocês participaram. Como avalia o desempenho do Partido Democrático do povo?

É uma vitória muito importante, que pode crescer ainda mais rápido. O Partido Democrático do Povo é uma aliança progressiva dos curdos, turcos, armênios e todas as nacionalidades presentes na Turquia. Há mais de 600 movimentos sociais que participam deste partido. Sua construção permitiu excluir obstáculos de comunicação. Ele foi construído ao lado dos irmãos turcos e isso nos ajudou a alcançar jovens turcos, na região central da Turquia, algo que antes era impensável. O partido é muito próximo da luta dos curdos porque a maioria de seus membros são curdos, mas também é um partido para a democracia de todos os povos turcos. Do partido participam intelectuais, dirigentes sindicais e movimentos estudantis. Todas as organizações que o compõem participaram da ocupação da Praça de Taksim. Está claro que nos próximos anos vamos a ter um desenvolvimento interessante neste sentido.

Facundo Guillén / Resumen Latinoamericano

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Curdistão: DAF fala sobre Solidariedade e Rojava

05 quinta-feira fev 2015

Posted by litatah in Anti Capitalismo, Anti Fascismo, Curdistão/Kobane

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Curdistão, DAF, revolução, revolução social, Rojava

“Uma entrevista com um militante do DAF sobre a solidariedade pelo processo social em Rojava”

Captura de tela de 2015-02-05 19:52:10

FONTE: Resistência Curda

A versão original em inglês foi concluída em 09 de janeiro de 2015. 

Entrevista realizada por Bruno Lima Rocha, originalmente publicada em inglês no site Estratégia e Análise.

Introdução: Desde que começou o cerco à Kobanê tenho dedicado várias horas por semana a entender e divulgar o máximo possível sobre essa revolução social iniciada numa combinação de Confederalismo Democrático e a Guerra Civil Síria. Enquanto militante, eu sempre estive envolvido com solidariedade internacional. Enquanto descendente árabe, eu sempre tentei procurar uma força de esquerda que combinasse ação direta e democracia interna. Enquanto acadêmico e professor de Geopolítica estudando a região por mais de 25 anos, Rojava é um sonho que se tornou realidade. Aqui eu começo a primeira de algumas entrevistas com organizações com real experiência nesse processo e na região. Nesta estou conversando com o Devrimci Anarşist Faaliyet (DAF, ou Ação Revolucionária Anarquista). Eles têm sido bem ativos nessa ação e entendem em detalhes todo o processo Curdo, tanto em Rojava quanto no interior das fronteiras do Estado Turco.

E&A- É possível entender o PKK (Partiya Karkerên Kurdistani, Partido Popular do Curdistão) como uma força político-militar remodelada pelo pensamento de seu líder histórico (e sentenciado a prisão perpétua) sendo transferida organicamente para toda a organização? Ainda, temos duas perguntas em sequência: Você pode imaginar a reprodução dessas ideias além de um culto à personalidade ao redor da imagem de Abdullah Ocalan (Apo)? E, seria possível universalizar as propostas do PKK-KCK (Koma Civakên Kurdistan, Grupo de Comunidades do Curdistão) além dos assuntos nacionais dos Curdos que ainda não foram resolvidos?

DAF- Nós temos de ver o assunto enquanto Movimento de Liberdade Curda. O PKK é uma organização do povo Curdo que vem lutando não apenas por 30 anos, mas centenas de anos. Especialmente após os anos 2000 o partido mudou sua ideologia, estratégia e característica. Assim, os críticos do movimento tem mesmo o mesmo vício de tomar o PKK como sendo o mesmo partido das décadas de 80 e 90. Apenas para lembrar, o PKK clamou pela liberdade não apenas para o povo Curdo, mas pela liberdade para todos os povos oprimidos no Oriente Médio. Pense sobre Rojava, PYD (Democratic Union Party, in Kurdish: Partiya Yekîtiya Demokrat), tem lutado não apenas pelos Curdos, mas pelos Ezidis, Turcomanos, Xiitas, Alauítas os quais o Daesh (ISIS, ISIL, EI, Estado Islâmico) quer destruir.

E&A- É observável um problema estratégico para a revolução de Rojava. Eu explico: a fronteira viva e aquela que é possível ser usada como santuário está com o KRG (Governo Regional Curdo no Iraque), mesmo o epicentro da guerra estando em Kobanê. É observável que se não houver reforços dos peshmerges (forças profissionais do KRG), provavelmente a coalizão anti-ISIS liderada pelos EUA não bombardeará a posição dos jihadistas. Logo, a aliança entre PKK-PYD e o KDP (Partido Democrático do Curdistão, Partîya Demokrata Kurdistanê, ou PDK) e sua coalizão com Massoud Barzani a frente do gabinete do KRG poderia implicar numa inevitável aproximação com o Ocidente? É possível sobreviver enquanto processo revolucionário dependendo militarmente e fisicamente do KRG e do Ocidente?

DAF- Temos que ver o papel dos peshmerges. Faz quase um mês e meio que eles não fazem nada por Rojava. Quando o YPG (Unidades de Proteção Popular, em Curdo: Yekîeyên Parastina Gel) e YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres, em curdo: Yekîeyên Parastina Jinê), as organizações de auto-defesa do povo de Rojava tomou o controle de 60% de Kobanê, as forças de Barzani decidiram vir ajudar. É óbvio que essa foi uma ação estratégica de Barzani. Barzani declarou que como se não houvesse a Revolução de Rojava dois anos antes e temos que ver isso, EUA e outros países ocidentais não apoiam a resistência de Kobanê. Após a Revolução de Rojava não aceitaram a existência política do PYD ou dos cantões de Rojava. Assim, a melhor solução para eles é Barzani que não tem problemas com política capitalistas ou estatistas. Ainda, o KDP de Barzani é o partido irmão do AKP de Recep Erdogan (Partido do Desenvolvimento e Justiça, em turco: Adalet ve Kalkinma Partisi). Nestas circunstâncias, o povo em Rojava precisa de qualquer tipo de apoio. Isto não significa que ele pode receber ajuda de qualquer poder capitalista e estatista. Mas é como o YPG-YPJ lutando contra o EI, a Frente Al-Nusrat (uma afiliada do grupo Al-Qaeda)…, mas também lutando estrategicamente contra a Turquia, a Síria de Esad (Bashir Al Assad), o Curdistão de Barzani e todos os poderes capitalistas.

E&A- Ainda, em termos de estratégia, ao que tudo indica, o governo da Turquia tem favorecido as linhas de suprimentos deixando o EI se fortalecer dentro do território sob controle do exército turco. Aparentemente, isto é causado pelo cálculo realista de Ankara e o governo do AKP, considerando ser menos perigosa uma proposta de “califado” – ou o retorno do Ummah – comparado à ideia do separatismo Curdo, ou mesmo autonomia política de Rojava dentro do fracassado Estado da Síria? Pela posição turca, como avaliar a disputa entre os outros Estados operando através de sunitas jihadista, como Arábia Saudita e Qatar?

DAF- Na mídia hegemônica, é difícil achar notícias sobre o apoio Turco ao Estado islâmico. Não é apenas apoio por armamentos, ou sua posição neutra. Como você declarou, existe uma óbvia logística de apoio de países sunitas ao EI, mas o aquilo que nunca podemos esquecer são as relações escondidas entre o EI e poderes capitalistas ocidentais. A cena é clara de que um grupo terrorista islâmico tem fortalecido a mão dos EUA, especialmente no Oriente Médio.

E&A- Entrando no assunto da guerra civil Síria, o que pode ser visto hoje é uma guerra crescente entre Sunitas e Xiitas, e junto disto, entre o EI (e antes a Frente Al-Nusra) e a tentiva de conquista de Kobanê. Considerando essa realidade, qual seria o papel do Exército Livre da Síria hoje (FSA)? Esta força ainda possui algum poder de proteção – como o Qatar – ou caiu para uma condição de aliado secundário do YPG? Nós podemos considerar o Qatar o maior patrocinador do FSA? E, talvez esta seja a razão, ao passo que ambos o FSA e o YPG são contrários ao regime de Assad, Damascus e seus aliados (financiadores) preferiram liberar a área de Aleppo e Raqqa para operações do EI, permitindo que os sunitas jihadistas avançassem sobre Rojava?

DAF- Como declaramos antes, algumas das ações estratégicas contra o EI com o FSA não representam a real visão política do PYD. Então, este tipo de cooperação é o resultado das circunstâncias na Síria e em Rojava. A cooperação entre as organizações e grupos não deveria ser tomada como resultados das reais políticas das organizações e grupos. A guerra em Rojava, ainda mais continua na Síria, então é difícil para nós determinar os aliados. Esta longe da solidariedade dos revolucionários pela Resistência de Kobanê e pela Revolução de Rojava.

E&A- Eu entendo, mesmo de um relance à distância, que para os Estados da Turquia, Síria (o que restou dela) e do Irã, um Curdistão a oeste com autonomia política e uma sociedade trabalhando sobre bases igualitária e secular implica num problema insolúvel. Não seria a proposta do PYD não separar-se formalmente da Síria, mas obter o status de uma Federação política autônoma na Síria, assim como um futuro reajuste com o Iraque e com o governo de Irbil (Capital do KRG)? A Turquia toleraria tal estatuto, mesmo possuindo o segundo maior exército da OTAN e o de maior contingente num Estado de grande população islâmica? Se o Curdistão Turco recebe tal status, o que preveniria uma Confederação com o Curdistão Sírio? E, dessa forma, qual seria a reação do KRG e da coalizão de direita e partidos Curdos pró-Ocidente, como o KDP? 

DAF- Estes cenários estão sendo discutindo ao passo que a guerra na Síria acabou. É difícil estimar como essas guerras irão modelar o Oriente Médio. Rojava declarou a liberdade de seus três cantões há 2 anos e meio atrás sem se importar com qual seriam as reações de Esad (Bashir al Assad), Erdogan ou Barzani. Todos os três declararam que não reconheciam o auto-governo dos cantões de Rojava. Ainda, eles insistem em não falar sobre a existência política de Rojava. Camarada, nós precisamos ver que durante estes dois anos os Estados em torno de Rojava mudaram suas políticas em suas regiões com a decisiva luta do povo livre de Rojava. Eles tentam encontrar meios de controlar a liberdade de Rojava. O cenário principal é de que Rojava será uma federação parte da Síria de Esad. Mas de qual Síria estamos falando, qual será o poder de Esad na Síria ou se haverá um Esad para liderar a Síria? O segundo cenário é de que Rojava fará parte do Curdistão de Barzani. O que seria o objetivo de Barzani, mas os princípios que sustentam Kobanê contra o EI não só assustam o EI como também Barzani. Porque a Revolução de Rojava se autodeclarou uma revolução centrada no anticapitalismo, no antiestatismo, nas mulheres e no meio ambiente.

E&A- Seria interessante para o KRG que Washington deixasse de considerar o PKK-HPG (Força de Defesa Popular, em curdo: Hezen Parastina Gel) como uma força terrorista? Isto permitiria uma requisição da liberdade de Ocalan, reforçando a liderança dessa força política? 

DAF- Este é um assunto político constante na Turquia. A Resistência de Kobanê e a Revolução de Rojava não fortaleceu apenas a posição dos Curdos que vivem em Rojava, mas também na Turquia, Irã e Iraque. Então, esta ocasião tem alguns resultados políticos, sociais e econômicos. Mas temos de ter em mente o poder do AKP de Erdogan que não hesita em expressar suas ideias sobre a política internacional.

E&A- Como vocês projetam a existência de uma soberania e status de autonomia política legais para Rojava considerando alguns temas fundamentais como: moeda corrente (como seria? Existiria um banco central?); relações comerciais com outros territórios (por exemplo, na comercialização do petróleo); pertencer a uma federação territorial (como numa Síria reorganizada ou federada à KRG); e quais medidas concretas seriam instituídas através da Confederalismo Democrático com total unidade territorial e existência dos três cantões? 

DAF- 2 anos e meio atrás, após a declaração de liberdade dos cantões de Rojava, o povo de Rojava começou a organizar a economia instituindo as terras coletivas do povo; abriu o Mala Gel (Casa do Povo) e Mala Jins (Casa das Mulheres) para organizar a sociedade numa forma de democracia direta. Estas casas são os reais centros políticos onde pessoas de dessas regiões discutem questões sociais e políticas e decidem o que fazer. Elas organizam o processo jurídico entre si sem nenhuma corte, advogado ou juiz. Justiça social não é providenciada sem qualquer tipo de poder central como um Estado. Sem escolas, mas com compartilhamento de conhecimento gratuito aos moldes das Universidades Zapatistas.

Nós temos que aceitar que a Revolução de Rojava não é uma revolução anarquista. Mas não há dúvidas sobre seu caráter de revolução social. A existência política de Rojava não faz parte da Síria de Esadou parte do Curdistão Iraquiano. Nós estamos falando de uma federação que se autodeclarou anticapitalista. Agora é inútil se preocupar com o futuro de Rojava se esta comercializa com capitalistas ou coopera com Estados… Façamos aumentar a solidariedade revolucionária e façamos parte dessa revolução social, para que não tenhamos tanta coisa para nos preocupar. Enquanto DAF, nós também mencionamos nossa posição num texto sobre a Resistência de Kobanê; nós não somos cartomantes que, então não adivinhamos a posição política de Rojava daqui 10 ou 50 anos. Mas somos anarquistas revolucionários, nós temos que tomar parte nos movimentos sociais e moldar esses movimentos.

E&A- O que seria um resultado concreto das políticas de massa através dos organizadores do KCK e das propostas de democratização da política municipal de autonomia do Curdistão Turco?

DAF- O verdadeiro mal-entendido da oposição social internacional é diferenciar as políticas do Movimento Curdo (HDP – Partido Popular Democrático, em turco: Halklarin Demokratik Partisi) ou outras instituições que são aceitas pelo Estado Turco; e o PKK (que é mencionado como organização terrorista pelo Estado). As chances de realização de instituições políticas democráticas dependem da luta do povo Curdo que é referida como terrorismo. Então, temos que entender a questão da “luta contra a política assimilacionista do Estado Turco”como um todo. Não há movimento, política ou instituição que se expresse por si como distante da luta do PKK e se declarou parte desta luta.(?) Então, o resultado de quaisquer políticas depende do sucesso da luta do povo Curdo organizado, o PKK. Esta situação pode ser parte de outro tipo de cultura política situado no Oriente Médio, distante das Europeias.

E&A- O DAF, enquanto uma força anarquista toma parte de alguma coordenação de alianças com o KCK ou com o DTK (Congresso da Sociedade Democrática, em turco: Demokratik Toplum Kongresi)? Enquanto anarquistas, como avaliar essas atividades com outras forças sociais? E, neste sentido, como avaliar a participação eleitoral da Aliança BDP (Partido da Paz e Democracia, em turco: Baris ve Demokrasi Partisi, em curdo: Partiya Astî û Demokrasiyê), BDP/HDP?

DAF- Relacionado com a resposta da questão acima, o DAF toma o PKK como o verdadeiro assunto da questão. Especialmente depois da mudança do paradigma dos anos 2000, após Ocalan não declarar mais o PKK como um movimento marxista-leninista e referenciá-lo a Bookchin, Bakunin e Kropotkin, é impossível para o DAF não se interessar por essa mudança teórica. Nós tivemos experiência com as mudanças dia após dia. A democracia direta tomou um importante lugar para essa realização política. Mesmo assim, existem críticas de anarquistas europeus já que são parte da ideologia marxista, nós estamos testemunhando a mudança não apenas na partilha da mesma cena política (a luta contra o Estado), mas estamos testemunhando a harmonia da teoria e da prática na Revolução de Rojava. As instituições como KCK, DTK, DBP/HDP poderiam estar numa manobra de estratégia no parlamento, sistema jurídico… Nós podemos criticar estas estratégias, mas não tomamos estas instituições como se fossem organizações as quais objetivam outras políticas. Assim como não votamos pelo HDP do BDP, pois não temos outro tipo de estratégia na democracia parlamentar, isto não nos faz repudiar estas instituições com o PKK.

E&A- Ao passo que o Confederalismo Democrático é inspirado no anarquismo, nós assumimos que existe uma aproximação e simpatia entre as ideias anarquistas e o atual pensamento da esquerda Curda. Esta avaliação é correta? Poderia especificar em qual sentido?

DAF- Como foi dito acima, especialmente após a aparição do novo paradigma dos anos 2000 no movimento Curdo refereciando principalmente Bookchin, Kropotkin e Bakunin (talvez Michael Albert em economia). Então, este é um bom passo para um movimento popular. O povo Curdo não está lutando há apenas 30 anos, ele está lutando há décadas. Para anarquistas revolucionários, é um bom momento para nós, esta organização desta luta de libertação chamada anarquista. É um bom momento para nós socializarmos o anarquismo nas terras onde pessoas vivem se Estado há décadas. Uma revolução social pode ser preparada como se fosse socializada. Nós, enquanto DAF, não somos anarquistas apenas para escrever alguns textos e viver o anarquismo em grupos fechados como os camaradas da Europa fazem. Nós objetivamos a revolução social, nós estamos lutando em todos os sentidos, então este é um bom momento para socializar o anarquismo.

E&A- Baseado no que lemos, o DAF opera lado a lado com o fronte dos movimentos pró-Rojava e como apoiadores da revolução social na região. Isto tem gerado uma aproximação da esquerda Turca como um todo, pode estar marcando um fortalecimento de posição entre o guarda-chuva político e social pró-Curdos (DTK-KCK e forças políticas legais DBP/HDP), levando a população a ter uma opção à rivalidade entre o AKP e o Kemalistas-Nacionalistas?

DAF- O DAF é solidário à Revolução de Rojava e a Resistência de Kobanê desde o princípio. Pois, em 19 de julho, os cantões de Rojava declararam independência contra a Síria de Esad, contra o EI, contra Barzani e contra os poderes econômicos e políticos internacionais que têm interesses na região. A solidariedade do DAF com o povo de Rojava que são Curdos, Ezidis, Xiitas ou Alauítas… pois Rojava é a esperança para o povo oprimido que vive no Oriente Médio e outras partes do mundo. Rojava mostra o que pretendemos ganhar contra os Estados, contra os capitalistas.

Na verdade, a Revolução de Rojava tem um papel decisivo para a esquerda Turca. Pois, algumas organizações e partidos não solidarizam com a revolução por conta de suas visões nacionalistas. A questão Curda para oposição social na esquerda Turca é uma importante questão para se observar os efeitos da política estatal no socialismo. Ainda, depois da mudança de paradigma do PKK, esta situação faz com que alguns partidos socialistas distanciarem-se do movimento Curdo. A posição dos anarquistas neste assunto também é importante. Nós, como revolucionários anarquistas vindos de uma tradição, onde socialistas nem davam importância para movimentos de libertação popular em países do terceiro mundo, mas camaradas anarquistas constituíram os primeiros movimentos na Bulgária, Grécia, Macedônia, Armênia, em 1850, nós estamos vindo de uma tradição onde os camaradas anarquistas empreenderam as primeiras lutas libertárias na América do Sul, na Indonésia, nas Filipinas… Isto não é para criar um novo fronte contra Nacionalistas e AKP. O DAF não se considera na agenda política parlamentar Turca. Este é um novo front que está contra soluções parlamentares para problemas sociais, econômicos e políticos.

E&A- Pelo que vocês podem observar em Rojava de acordo com a grande proximidade, quais seriam as maiores virtudes do sistema social em desenvolvimento na região? E, no mesmo sentido, qual seria a maior fraqueza em termos do PYD-TEV DEM (Movimento pela Sociedade Democrática, em Curdo: Tevgera Civaka Demokratîk) estar estabelecendo um novo Estado na região? O que eles poderiam estar reproduzindo que poderia culminar em outro Estado?

DAF- Camaradas, nós precisamos fortalecer a posição da Revolução de Rojava em todos os sentidos. As pessoas que estão lutando aqui, pessoas que estão lutando aqui para não construir outro Estado opressor. Esta é a luta por revolução social sem Estado, sem capitalismo, sem patriarcado… Nós conhecemos os cenários sobre estarmos unidos ao Curdistão de Barzani ou numa confederação com a Síria de Esad. Nosso papel tem de ser em participar e manter a revolução social longe destes cenários. Se a solidariedade das pessoas revolucionárias for o suficiente para criar esta solução sem Estado, é inútil sentir medo destes cenários. Esta não é apenas nossa posição em Rojava, esta é a posição do Movimento de Libertação Curda.

E&A- Nós entendemos que o tema da emancipação e empoderamento das mulheres é tão importante, que implicaria numa entrevista inteira, mas podemos perceber que isto é uma característica e um resultado acordado pelo processo social da maioria Curda (e não algo sectário, isto está claro). Em quais aspectos a presença das mulheres combatentes no YPJ está transformando as relações sociais no Curdistão como um todo? Isto tem uma relação direta com o PKK e o pensamento orgânico sobre a participação das mulheres no HPG?

DAF- Surgiram os Mala Jins (algo como Conselho das Mulheres) desde o princípio da revolução em Rojava. Nos Mala Jins, se socializa a consciência no papel das mulheres na sociedade, socializa luta contra a cultura patriarcal, socializa a importância da mulher na sociedade. Este esforço é muito importante, pois o EI e outros islamitas radicais tentam moldar toda a região de acordo com os valores de suas culturas. A revolução social não é apenas mudança política. Nós temos que ver outras mudanças como nas questões das mulheres para entender a importância da Revolução de Rojava.

E&A- Para concluir, existe uma preocupação, pois os fatos provam que as sociedades ocidentais observam o processo social de Rojava com simpatia e, em termos e comportamento e regras de coexistência, o Curdistão parece ser o mais próximo que existe de uma forma de sociedade democrática, secular e liberal. Na visão do DAF, existe um verdadeiro risco da esquerda Curda acabar se aproximando do Ocidente de uma maneira inevitável (dependendo do apoio do Ocidente) que ela acabe como uma sociedade secular protoestatal com igualdade de gênero (com é uma conquista para região) ao invés de uma revolução social com chances de realmente construir outra sociedade? 

DAF- Como escrevemos “Não somos videntes, nós não podemos prever o que acontecerá em Rojava daqui um mês ou daqui um ano. Nós não podemos saber se esta transformação social, que não só nos traz esperança enquanto revolucionários que lutam numa região geograficamente próxima, mas também alimenta nossa luta nas regiões nas quais lutamos, seguirá num futuro positivo ou negativo. Mas nós somos anarquistas revolucionários. Nós não podemos apenas sentar de fora, ver o que está acontecendo e comentar; nós tomamos parte em lutas sociais e tomamos ações para uma revolução anarquista.”

Vida longa à Revolução de Rojava! Vida longa à Resistência de Kobanê! Vida longa ao Anarquismo Revolucionário!

Original em inglês por Bruno Lima Rocha: possui PhD em Ciência Política e é Professor de Estudos Internacionais e Geopolítica lecionando em três faculdades regionais e universidade no Sul do Brasil.

Tradução: Mariana Miotto

Fonte: http://www.anarkismo.net/article/27779?author_name=BrunoL

 

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O Processo Revolucionário em Rojava

27 terça-feira jan 2015

Posted by litatah in Anarquia, Anti Capitalismo, Anti Fascismo, Anti Machismo, Curdistão/Kobane, Revolução

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Tags

Öcalan, confederalismo democrático, Curdistão, Estado Islâmico, Kobane, Kobani, kurdistan, PKK, Rojava, ypg, YPJ

Ativista curdo pede solidariedade e apoio para o processo revolucionário de Rojava

Por Roberta Fofonka/Sul21

POSTADO EM Sul21, 27 de Janeiro de 2015

Samir Oliveira

Os curdos são a mais numerosa etnia do mundo sem Estado: são mais de 26 milhões de pessoas que vivem em regiões da Turquia, da Síria, do Iraque e do Irã. Desde 2012, com a intensificação da guerra civil na Síria, os curdos da região têm se organizado para defender seus territórios das forças do governo de Bashar al-Assad e dos terroristas do Estado Islâmico (também conhecido como ISIS).

Em 2013, os curdos da Síria anunciaram a organização de três regiões administrativas no norte do país, chamadas de “cantões”: Afrin, Jazira e Kobani. Separados geograficamente em meio a um território conflagrada pela guerra, os cantões formam a região de Rojava – palavra que, em curdo, significa “oeste”.

 Rojava possui uma população de cerca de 3 milhões de pessoas, espalhadas por doze cidades. Enquanto se organizam para lutar contra o Estado Islâmico e unificar os cantões, os curdos estão criando uma própria forma de organização social, política e econômica na região, baseada no confederalismo democrático, com premissas anti-Estado e anticapitalistas inspiradas no programa político do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) – organização criada na década de 1970 e considerada “terrorista” pelos Estados Unidos, pela União Europeia e pela Turquia, país onde seu principal líder, Abdullah Öcalan, encontra-se em prisão perpétua desde a década de 1990.

Nesta entrevista ao Sul21, o ativista curdo Giran Ozcan fala sobre o processo revolucionário em Rojava e dá mais detalhes sobre a situação na região. Giran edita o site Kurdish Question e esteve em Porto Alegre nesta semana para falar sobre o assunto com organizações de esquerda.

Na entrevista, ele fala ainda sobre o funcionamento das forças de combate de Rojava, que estão divididas basicamente em das brigadas: as Unidades de Proteção do Povo (YPG) e as Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ) – esta última, composta e comandada por mulheres curdas.

“O desafio é tornar Rojava, os cantões e o povo curdo reconhecidos pela comunidade internacional”

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Como está a situação agora em Rojava?
Giran Ozcan –
A luta na Síria começou há quatro anos e há quase três anos os curdos anunciaram que vão se autogovernar em três cantões. Depois deste anúncio, o Estado Islâmico (ISIS) começou a atacar os curdos. Embora isto só esteja sendo divulgado pela mídia desde Kobani região de Rojava na Síria, que está cercada pelo Estado Islâmico], ISIS e os curdos estão lutando há quase três anos na Síria. Atualmente, depois de capturar armamento pesado dos exércitos iraquiano e sírio, eles novamente atacaram os curdos, há cerca de quatro meses, em Kobani. Enquanto os exércitos da Síria e do Iraque estão fugindo do Estado Islâmico em várias regiões, os curdos estão resistindo, lutando e fazendo eles recuarem. É isso que vem ocorrendo em Rojava nos últimos meses. Hoje, mesmo após o ISIS atacar Kobani com todas as suas forças, a cidade não caiu. Os curdos estão mostrando ao mundo que são capazes de se autogovernar e de se defender. Estão oferecendo uma alternativa à região. A luta ainda está ocorrendo em Kobani, o ISIS ainda não foi completamente derrotado, mas já foi expulso da cidade. Nos outros dois cantões o autogoverno continua sendo implementado e desenvolvido. O desafio é tornar Rojava, os cantões e o povo curdo reconhecidos pela comunidade internacional.

Sul21 – Quem está controlando Kobani hoje?
Ozcan –
Hoje Kobani é controlada pelos combatentes curdos do YPG. Cerca de 98% da cidade está sob controle do YPG. Há dois dias, eles conquistaram a colina de Minstenur. Atualmente, o ISIS está apenas na periferia da cidade.

Sul21 – O Estado Islâmico é a principal ameaça para Rojava e a causa curda atualmente?
Ozcan – ISIS é ameaça que está batendo diretamente na porta. Mas Rojava está enfrentando um embargo de todos os lados, porque é um sistema alternativo aos imperialistas e às forças regionais. Por isso, o povo em Rojava está tentando se autossustentar, porque não recebendo ajuda de ninguém. Economicamente, estão tentando criar um novo sistema. Então existem duas ameaças: obviamente o Estado Islâmico e o embargo internacional.

“Os cantões são governados pelo povo através das assembleias populares”

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Como foi possível que o Estado Islâmico crescesse tanto na região?
Ozcan –
O ISIS está lá há pelo menos seis anos. Antes de o ISIS crescer, o governo central do Iraque se aproximava do Irã e se distanciava dos Estados Unidos. Barzani (presidente do Governo Regional Curdo no Iraque) falava em declarar independência e o regime de Assad (presidente da Síria) estava fortalecido. Todos se encaminhavam contra o Ocidente na região. De repente, do nada, o Estado Islâmico começa a ganhar tanta força que o governo iraquiano precisou se aproximar dos Estados Unidos novamente. Barzani parou de falar em independência e a guerra se intensificou na Síria. Se analisarmos objetivamente, quem se beneficiou do crescimento do Estado Islâmico foram os Estados Unidos. Não podemos provar que os Estados Unidos fortaleceram o ISIS, mas o empoderamento deles definitivamente beneficiou os planos dos Estados Unidos para a região.

Sul21 – Como é a relação entre a luta que ocorre entre os curdos e o Estado Islâmico e o regime de Assad, que governa a Síria?
Ozcan –
Os curdos querem que o regime sírio reconheça sua autonomia. Eles querem que o regime respeite a vontade do povo. Até então, Assad nunca havia concedido cidadania aos curdos. Centenas de milhares de curdos não podiam ir à escola, comprar terras ou ter empregos formais. Atualmente a situação está equilibrada: os curdos querem seus direitos reconhecidos e não vão atacar o regime sírio, mas não vão hesitar em defender o que já foi conquistado.

Sul21 – O governo sírio não está combatendo o Estado Islâmico também?
Ozcan –
Está, em certas regiões. Mas os principais opositores do ISIS são os curdos. Embora eles digam a todos que estão lutando contra o governo e tentando estabelecer um Estado islâmico, os principais antagonistas que eles enfrentam são os curdos.

“As mulheres participam da vida política e possuem seu próprio exército, que está lutando contra o Estado Islâmico”

Sul21 – E os revolucionários sírios que lutam contra o regime não estão do lado de vocês, combatendo também o Estado Islâmico?
Ozcan –
Não podemos mais falar em apenas uma FSA (Exército Livre da Síria), porque se trata de uma coalizão muito ampla — o ISIS inclusive fazia parte do grupo anteriormente. É uma plataforma da luta contra Assad, mas é uma coalizão revolucionária? Isso está aberto ao debate. Há muitos extremistas islâmicos na FSA, mas também há revolucionários. Eles não se identificam mais como FSA, porque a coalizão ficou tão ampla que não pode mais ser chamada de coalizão. Em Kobani há grupos da FSA lutando junto com os curdos, mas em outros cantões há grupos da FSA lutando contra nós.

Foto: Reprodução

Sul21 – Quais são as forças políticas que comandam Rojava?
Ozcan –
O PYD é um partido político curdo que já existia junto ao sistema sírio e está se aliando à ideologia do PKK e de Öcalan. Essa é a organização com mais apoio popular em Rojava. Mas as pessoas têm seu próprio sistema, suas assembleias populares, onde o partido político não está presente. O chamado Movimento Democrático do Povo realiza as assembleias locais e comanda os cantões, que não são governados pelo PYD. Os cantões são governados pelo povo através das assembleias populares. Há uma co-presidência para cada cantão, composta por um homem e uma mulher. Rojava é um grande processo revolucionário porque, na cultura daquela região, a mulher não possuía participação política. A ideologia do PKK foi gradualmente mudando isso. Agora, as mulheres participam da vida política e possuem seu próprio exército, que está lutando contra o Estado Islâmico. Trata-se de uma das maiores revoluções sociais da região.

Sul21 – Como os governos dos cantões são escolhidos?
Ozcan –
Através de eleições. As primeiras ocorreram há seis meses. Não é um sistema representativo, é uma democracia direta. A qualquer momento o povo pode retirar do poder quem eles elegeram. O Poder Executivo é mais um coordenador do processo, porque existem assembleias populares em cada comunidade. As decisões locais são tomadas pelas pessoas que moram nas comunidades. Em cada comunidade existem três assembleias: a local, a de jovens e a de mulheres. É um outro modelo, não haverá eleições a cada quatro anos. Sempre e quando o povo precisar, o governo permanecerá ou será mudado.

“Não existe nenhum outro lugar no Oriente Médio onde cristãos e muçulmanos estejam governando juntos”

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Não existe um governo central dos três cantões?
Ozcan –
Atualmente, cada cantão é separado. Não existe coordenação entre eles. Quando falamos sobre Rojava, estamos falando sobre os três cantões, mas não existe um representante de Rojava. Isso se deve a problemas práticos, já que os três cantões estão fisicamente distantes e separados, e também porque o projeto político ainda está sendo discutido. Ainda está aberto ao debate a forma como essa coordenação central será construída.

Sul21 – Como os três cantões se comunicam e realizam trocas entre si?
Ozcan –
A região inteira é uma zona de guerra, então há limitações práticas para isso. Estão sendo criadas academias econômicas para se discutir o tipo de economia que será criada quando os cantões se unificarem. Uma das nossas funções na América Latina é entender melhor as experiências econômicas da região, com cooperativas e economias comunitárias criadas ao longo da história de processos revolucionários no continente.

Sul21 – Quando falamos sobre Rojava, sobre quantas pessoas e cidades estamos falando?
Ozcan –
Estamos falando sobre algo entre 2,5 milhões e 3 milhões de pessoas e cerca de 12 cidades. Não são cidades muito grandes, porque as administrações dos cantões são diferentes do mapa político da Síria. Por exemplo, de acordo com a Síria, a cidade de Kobani pertence a Aleppo, mas para os curdos, é uma cidade livre. A maior cidade é Qamislo.

“O sucesso de um projeto anticapitalista, especialmente no Oriente Médio, é uma grande ameaça ao sistema”

Sul21 – Qamislo é a capital de Rojava?
Ozcan –
A ideologia do confederalismo democrático não prevê a existência de uma capital. Eles não precisam de uma capital, que é um instrumento de um Estado – e eles querem evitar isso.

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Como está sendo a implantação do confederalismo democrático em Rojava?
Ozcan –
É tudo muito novo, então não posso dizer que não estejam ocorrendo problemas. Mas pela primeira vez estamos implantando o confederalismo democrático como um sistema prático. O povo está muito animado, porque estamos resolvendo os problemas da causa curda, mas também estão resolvendo o problema da exploração, do governo, do socialismo e da vida social. É uma revolução em muitas dimensões e aspectos. Muitos olhos pairam sobre Rojava agora, porque não existe nenhum outro lugar no Oriente Médio onde cristãos e muçulmanos estejam governando juntos. Os cristãos podem governar a si próprios se eles quiserem, esse direito está garantido na Constituição de Rojava. Os cristãos têm seu próprio mecanismo de auto-defesa. É um sistema secular, por isso está atraindo tanta atenção.

Sul21 – Como o processo revolucionário está resolvendo as necessidades imediatas do povo, principalmente no que diz respeito a saúde e educação?
Ozcan –
As assembleias populares estão criando academias. É um sistema muito novo, então tudo está tendo que ser autogestionado. As pessoas precisam fazer tudo e construir seu próprio sistema de forma coletiva. Escolas primárias, secundárias e até mesmo universidades estão sendo criadas pelo povo. O problema principal em relação a Rojava é que, por ser uma alternativa ao sistema, o sistema não a apoia. É por isso que tudo precisa ser feito de dentro para fora.

Sul21 – É um modelo anticapitalista também.
Ozcan –
A economia está sendo organizada através de cooperativas. Em Rojava, o princípio básico é: “o que pertence ao povo sempre pertencerá ao povo e será compartilhado pelo povo”. Há muita oliva e petróleo na região, por isso que muitas companhias internacionais querem saber qual é a política econômica do PKK. O PKK diz que nenhuma companhia pode se aproximar da região com a ambição de lucrar, porque o partido é contra monopólios e privatizações. Os recursos da região serão compartilhados pelo povo. Se obtivermos sucesso, será um modelo para o mundo inteiro. O sucesso de um projeto anticapitalista, especialmente no Oriente Médio, é uma grande ameaça ao sistema.

“Devido à censura da mídia, ninguém sabia que o PKK tem mulheres combatendo e liderando suas fileiras há mais de 35 anos”

Sul21 – E o que acontece com a iniciativa privada que existe na região, com os comércios e empresas das cidades?
Ozcan –
Por causa do preconceito de Assad contra o povo curdo, não havia muito comércio e capital privado sendo investido na região. Agora isso é uma coisa boa, porque, caso contrário, ocorreria uma oposição interna na região ao processo revolucionário. Isso não está ocorrendo porque o povo de Rojava mora em vilas, são trabalhadores, não é uma região dividia em classes. Essa era a natureza da região, mesmo antes da revolução, então a transição não está sendo difícil.

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Para uma revolução ser bem sucedida, o povo precisa apoiá-la. A região de Rojava não possuía uma classe média ou uma burguesia capazes de opor resistência?
Ozcan –
Para o confederalismo democrático, as academias são muito importantes. O povo precisa estar a par do que está acontecendo, do tipo de revolução que está ocorrendo e das ameaças do sistema. O PKK foi criado em 1978. Depois que Öcalan teve que deixar a Turquia, ele foi para Rojava, em 1979. Ele viveu no Curdistão sírio por 20 anos, então o povo curdo da Síria conhece muito bem suas ideias. Milhares de jovens de Rojava se juntaram ao PKK nos anos 1980 e 1990. Milhares morreram na luta contra a Turquia. O povo de Rojava conhece muito bem a ideologia do PKK.

Sul21 – Como é a relação entre Rojava e o Governo Regional Curdo do Iraque?
Ozcan –
Não muito boa, porque Barzani e o Governo Regional Curdo são um satélite completamente dependente do Ocidente. Rojava é uma revolução contra o sistema e Barzani é parte do sistema. Ao fim e ao cabo, talvez a maior revolução de Rojava seja contra Barzani, porque ele é a parte do sistema que mais se aproxima de Rojava, é o principal representante do sistema na região. Muita gente compreendeu que a Turquia estava conduzindo um embargo contra Rojava, mas ninguém entendeu porque Barzani estava reforçando esse embargo contra o povo curdo. Ele queria sufocar a revolução também, por isso que reforçou o embargo nas fronteiras que o Governo Regional Curdo possui com Rojava.

“A resistência em Kobani contra o Estado Islâmico foi liderada por uma mulher”

Sul21 – Isso pode estar enfraquecendo a popularidade de Barzani junto aos curdos?
Ozcan –
Definitivamente, porque o Ocidente quer que Barzani seja uma alternativa a Öcalan e ao PKK. Após atacarem Kobani, o Estado Islâmico atacou Sinjar, onde os curdos Yazidi vivem. Eles não são muçulmanos, são curdos que pertencem a uma religião muito típica e antiga. Quando eles foram atacados, as forças de Barzani, os Peshmergas, fugiram, deixando os Yazidi sozinhos e desarmados. Por isso cerca de 3 mil mulheres Yazidi foram capturadas pelo ISIS e estão sendo vendidas como escravas sexuais. É por isso que o povo curdo está muito crítico em relação a Barzani. Se o PKK não tivesse descido das montanhas e defendido os Yazidis em Sinjar, teria havido um massacre massivo. Em todas as cidades governadas por Barzani que estão sob sítio do ISIS, quem está combatendo não são os Peshmergas, mas a guerrilha do PKK. O mundo inteiro está vendo as guerrilhas assumirem a luta e os Peshmergas recuarem, isso está abalando muito a popularidade de Barzani.

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – É possível haver uma mudança política no comando do Governo Regional do Curdistão e um aliado do PKK assumir o poder?
Giran – O partido-irmão do PKK no Governo Regional do Curdistão foi banido das eleições. Nas últimas eleições, Barzani fez 38% dos votos. Agora existe o movimento Gorran, que é uma nova força política de oposição e está com 29% das intenções de voto. Então há espaço para mudança no Governo Regional do Curdistão.

Sul21 – O que isso iria significar para Rojava?
Giran –
Significaria que pelo menos uma certa parte do Curdistão estaria livre. Embora o Governo Regional do Curdistão possua uma autonomia “de facto” desde a década de 1990, ninguém enxerga a região como uma parte livre do Curdistão, porque ela está completamente dependente do Ocidente. Os curdos estão dizendo agora que Rojava é o primeiro território livre do Curdistão. A próxima eleição no Governo Regional do Curdistão será somente em três anos, mas acredito que muita coisa vá mudar até lá. No momento os curdos estão numa posição defensiva, lutando contra o Estado Islâmico, então não estão falando muito sobre mudanças políticas. Mas as guerrilhas do PKK estão nas cidades do Governo Regional do Curdistão. Antes, para ir lá, eles teriam que lutar com os Peshmergas, e ninguém quer ver os curdos lutando uns contra os outros. Agora o povo está vendo as guerrilhas todos os dias. As coisas irão mudar nas próximas eleições, o governo já não pode mais banir o PKK de participar no processo.

“A luta não está sendo conduzida dentro de uma lógica militarista, mas, sim, de autodefesa”

Sul21 – Como se deu o surgimento das brigadas comandadas e compostas por mulheres em Rojava?
Giran –
O movimento de libertação das mulheres está contemplado na ideologia do PKK. Devido à censura da mídia, ninguém sabia que o PKK tem mulheres combatendo e liderando suas fileiras há mais de 35 anos. Desde a criação do PKK, no primeiro congresso do partido, as mulheres estavam presentes. Nos anos 1980, nas primeiras guerrilhas do PKK, havia brigadas femininas. Öcalan sempre dizia que nenhuma sociedade pode ser livre enquanto as mulheres não forem livres. Para ele, o nível de liberdade de uma sociedade pode ser medido pelo nível de liberdade das mulheres. Por isso que a revolução em Rojava é uma revolução de mulheres. Embora as YPJ tenham sido criadas há apenas três anos, elas vêm de uma história de 35 anos. A principal comandante de Kobani era uma mulher, Narin Afrin. A resistência em Kobani contra o Estado Islâmico foi liderada por uma mulher. As pessoas costumam dizer que o Oriente Médio é uma região muito conservadora, mas, no centro do Oriente Médio, mulheres estão na linha de frente da vanguarda por libertação. E a maioria delas são muçulmanas, que é a religião predominante entre os curdos.

Por Roberta Fofonka/Sul21

Sul21 – Isso contraria o estereótipo que se costuma ter no Ocidente quanto às mulheres muçulmanas, como se a opressão de gênero e o islamismo fossem duas coisas intrinsecamente ligadas.
Giran –
Há muitas leituras diferentes do Islã, a do ISIS é apenas uma delas e tem suas raízes no wahhabismo. Através do PKK, o povo curdo passou a ter um entendimento completamente diferente a respeito das mulheres. Não é uma característica curda, mas uma característica do socialismo defendido pelo PKK, que foi rompendo com as opressões em relação às mulheres naquela região.

Sul21 – O militarismo costuma ser um fenômeno bastante machista. Como as mulheres estão desconstruindo isso em Rojava?
Giran –
Nos anos 1980, acredito que qualquer mulher militante do PKK teria muitos relatos para fazer a respeito das dificuldades em enfrentar o machismo em uma organização predominantemente masculina. Öcalan escreveu um livro sobre a necessidade de se romper com o machismo, porque viu que mesmo na sua organização isso era um problema. Atualmente, em grande medida isso já foi superado. A luta não está sendo conduzida dentro de uma lógica militarista, mas, sim, de autodefesa. E as mulheres são uma parte desta autodefesa.

“O governo turco deixa suas fronteiras abertas para o Estado Islâmico e fecha as portas para a solidariedade revolucionária em relação a Rojava”

Sul21 – Como está a solidariedade internacional em relação a Rojava?
Giran –
Há dois períodos: antes e depois da conquista de Kobani. Antes de Kobani a mídia ocidental não falava sobre Rojava, porque a resistência foi inacreditável. O Estado Islâmico tomou Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, em 24 horas. Mas não conseguiram conquistar Kobani, uma cidade com 200 mil habitantes e não mais do que 5 mil combatentes. Depois disso, houve um despertar internacional em relação ao que ocorre em Rojava, as pessoas estão debatendo o sistema político que está sendo criado lá. Esperamos que as pessoas se solidarizem e acompanhem esse experimento socialista e revolucionário que está ocorrendo em Rojava. Ainda é um experimento. Somente com a ajuda e a solidariedade das pessoas ao redor do mundo, especialmente na América Latina, esse experimento poderá ser bem sucedido.



Sul21 – O que esse processo revolucionário significa para a esquerda, de uma forma geral?
Giran –
Embora o capitalismo esteja afundando em uma grande crise, a esquerda ainda não foi capaz de mostrar um modelo concreto ao mundo. Agora temos um experimento em Rojava ao qual podemos nos espelhar e dizer ao mundo: “É assim que queremos que as pessoas vivam”. Cabe a nós, pessoas de esquerda e revolucionárias, mostrar ao mundo que o modelo desenvolvido em Rojava pode ser bem sucedido e que o socialismo pode ser tão bom na prática quanto é na teoria. Acredito que a esquerda não irá perder essa oportunidade.

Sul21 – Como Rojava está se abrindo para o mundo neste momento? Organizações e pessoas estrangeiras podem ir para lá?
Giran –
O governo turco deixa suas fronteiras abertas para o Estado Islâmico e fecha as portas para a solidariedade revolucionária em relação a Rojava. Muitos europeus já se juntaram ao YPG, vários latino-americanos também já se juntaram a Rojava. Há maneiras de garantir contatos, o PYD tem escritórios na Europa. Rojava espera pela visita das pessoas, porque tem algo a mostrar ao mundo.

“A mídia ocidental não demonstra a realidade da revolução, não fala sobre seu caráter anticapitalista”

Sul21 – Qual o papel das potências ocidentais em relação ao que ocorre em Rojava?
Giran –
O Ocidente está dizendo que aceitará Rojava se for igual ao Governo Regional do Curdistão. Se Rojava for mais aberta ao Ocidente e às grandes corporações, receberá apoio das potências ocidentais. É por isso que o povo não está esperando que esse apoio venha.

Sul21 – Como tu vês a cobertura da mídia sobre Rojava?
Giran – Há diferentes abordagens. É claro que a revolução quer ser conhecida e vista pelo mundo, mas ela quer ser mostrada pelo que realmente é. A gente vê fotos de mulheres combatendo em Rojava, mas não sabemos por que elas estão lutando. Não vemos na mídia tradicional a informação de que o PKK é uma organização socialista, de que a economia em Rojava é baseada em cooperativas.

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“Não. Isto é uma verdadeira revolução” Entrevista com David Graeber sobre Rojava

04 domingo jan 2015

Posted by litatah in Anarquia, Curdistão/Kobane, David Graeber, Experiências anarquistas, História, Internacional anarquista, Prática, Revolução Espanhola

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Curdistão, Curdistão livre, David Graeber, Kobane, Rojava

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Fonte: Jornal MAPA

traduzido a partir de ZNET (entrevista originalmente publicada pelo diário Evrensel na Turkia)


O anarquista e professor de Antropologia (London School of economics), David Graeber, escreveu em Outubro passado um artigo para o Guardian, durante a primeira semana dos ataques do ISIS (Estado Islâmico do Iraque e do Levante) a Kobane (norte da Síria), onde perguntava porque é que o mundo estava a ignorar os Kurdos Sírios revolucionários.

Mencionando o seu pai, que se voluntariou para lutar nas Brigadas Internacionais na república espanhola em 1937, perguntou:

“ Se existe hoje um paralelo com os assassinos falangistas, superficialmente devotos de Franco, quem será senão o ISIS? Se existe hoje um paralelo com as Mujeres Libres de Espanha, quem será senão as corajosas mulheres que defendem as barricadas de Kobane? Vai o mundo – e desta vez mais escandalosamente, a esquerda internacional- ser condescendente em deixar que a história se repita?

De acordo com Graeber, a região autónoma de Rojava declarada com um “contracto social” em 2011, como três cantões anti-estado, anti-capitalistas, foi também uma notável experiência democrática desta área.

No início de Dezembro, com um grupo de 8 pessoas, estudantes, activistas e académicos de diferentes partes da Europa e dos EUA, passou 10 dias em Cizire – um dos cantões de Rojava. Tiveram a hipótese de observar a prática da “democracia autónoma” no local e colocar várias questões.

Graeber descreve agora a sua impressão desta viagem com questões maiores e explica por que é que esta “experiência” dos curdos sírios está a ser ignorada pelo mundo inteiro.

No artigo para o Guardian perguntaste por que é que o mundo ignora a “experiencia democrática” dos curdos sírios. Depois da experiência de 10 dias, tens uma nova questão ou talvez uma resposta para isso?

Bem, se alguém tinha dúvidas se isto era uma verdadeira revolução, ou só alguma “sombra”, diria que esta visita tira todas as dúvidas. Ainda existem pessoas a dizer: “Isto é só uma frente do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), na verdade são só uma organização autoritária estalinista, que apenas finge ter adoptado uma democracia radical”. Não. Isto é mesmo a sério. É uma revolução genuína. Mas de certa maneira, é exactamente esse o problema. Os grandes poderes têm-se entregado a uma ideologia que diz que as verdadeiras revoluções já não podem acontecer. Entretanto, muita da esquerda, mesmo a radical, parece tacticamente ter adoptado a política que assume o mesmo, apesar de parecerem superficialmente revolucionários. Assumem um tipo de “anti-imperialismo” puritano que assume que os únicos jogadores importantes são os governos e capitalistas, e que esse é o único jogo que vale a pena discutir. O jogo onde se batalha, se criam vilões míticos, se agarra petróleo e outros recursos, montam-se redes de patrocínios; é o único jogo da cidade. O povo de Rojava diz: “Nós não queremos jogar esse jogo. Queremos criar um novo”. Muita gente acha isto confuso e perturbador, então escolhem acreditar que não está a acontecer, ou que essas pessoas estão iludidas, são desonestas ou ingénuas.

Desde Outubro que vemos uma crescente solidariedade vinda de vários movimentos políticos de todo o mundo. Houve uma grande e deveras entusiástica cobertura da resistência em Kobane pelos média mainstream internacionais. A posição política perante Rojava mudou no Ocidente, de certa forma. Existem sinais significativos mas estar-se-á a discutir suficientemente a autonomia democrática e as experiências nos cantões de Rojava? Que parte de “algumas pessoas corajosas a lutar contra o grande mal desta era, o ISIS” não estará a dominar esta aprovação e este fascínio? Acho que é notável que tanta gente no Ocidente olhe para estes quadros de feministas armadas, por exemplo, e nem sequer pense nas ideias por trás delas. Apenas se apercebem que assim aconteceu, por algum motivo. “Penso que é uma tradição curda”. De certo modo, claro que se trata de orientalismo, ou simplesmente racismo. Nunca lhe ocorreu que as pessoas no Curdistão possam estar também a ler Judith Butler. Na melhor das hipóteses pensam: “Oh, estão a tentar alcançar os padrões ocidentais da democracia e dos direitos das mulheres. Será que é a sério ou será só para os estrangeiros verem”. Não lhes ocorre que eles podem estar a levar as coisas bem mais longe que os “padrões ocidentais” alguma vez levaram; que acreditam genuinamente nos princípios que os Estados ocidentais apenas professam.

Mencionaste a aproximação da esquerda sobre Rojava. Como é isso recebido nas comunidades anarquistas internacionais?

A reacção da comunidade anarquista internacional tem sido decididamente diversa. De certa maneira, acho difícil de entender. Existe um grupo substancial de anarquistas – normalmente os elementos mais sectários – que insiste que o PKK ainda é um grupo nacionalista autoritário estalinista, que adoptou Bookchin, e outros partidários da esquerda libertária, para cortejar a esquerda anti autoritária na Europa e América. Parece-me uma das ideias mais parvas e narcisistas que já ouvi. Mesmo que a premissa estivesse correcta, e que um grupo Marxista-Leninista decidisse fingir uma ideologia para obter apoio estrangeiro, por que raio é que iriam escolher ideias anarquistas desenvolvidas por Murray Bookchin? Isso seria a jogada mais estúpida de sempre. Obviamente fingiriam ser islamitas ou liberais, já que são esses que conseguem armas e apoio material. De qualquer maneira, penso que muita gente na esquerda internacional, incluindo a esquerda anarquista, não quer basicamente ganhar. Não conseguem imaginar que uma revolução realmente acontecesse, e, secretamente, nem sequer a querem, uma vez que isso significaria partilhar o seu clube “fixe” com pessoas comuns; já não seriam especiais. Assim, até é útil para separar os verdadeiros revolucionários dos “poseurs”. Mas os verdadeiros revolucionários têm-se mantido firmes.

Qual foi a coisa mais impressionante que testemunhaste em Rojava nos termos práticos desta autonomia democrática?

Existem tantas coisas impressionantes. Acho que nunca ouvi falar de nenhum outro lado do mundo onde tenha existido uma situação de dualidade de poder, onde as mesmas forças políticas criaram ambos os lados. Existe a “auto-administração democrática”, onde existem todas as formas e armadilhas de um Estado – Parlamento, ministros, e por aí – mas foi criada para ser cuidadosamente separada dos meios do poder coercivo. Depois há o TEV-DEM (o Movimento da Sociedade Democrática) dirigido de raiz instituições de democracia directa. No final – e isto é fulcral – as forças de segurança respondem perante as estruturas que seguem uma abordagem de cima para baixo, e não de baixo para cima. Um dos primeiros locais que visitámos foi a academia de polícia (Asayis). Todos tiveram que frequentar cursos de resolução de conflitos não violenta e de teoria feminista antes de serem autorizados a pegar numa arma. Os co-directores explicaram-nos que o seu objectivo final é dar seis semanas de treino policial a toda a gente no país, para que em última análise se possa eliminar a polícia.

O que responderias às várias críticas em torno de Rojava? Por exemplo: “Eles nunca fariam isto em tempos de paz. É por causa do estado de guerra”…

Bem, penso que a maioria dos movimentos, perante as condições horrendas da guerra, não iria no entanto abolir imediatamente a pena capital, dissolver a polícia secreta e democratizar o exército. As unidades militares, por exemplo, elegem os seus oficiais.

E existe outra crítica, bastante popular nos círculos pro-governo aqui na Turquia: “O modelo que os Curdos – na linha do PKK e PYD (o Partido Curto de União Democrática) – estão a tentar promover não é na verdade seguido por todas as pessoas que lá vivem. Essa multi-… estrutura existe apenas à superfície, nos símbolos”…

Bem, o presidente do cantão de Cizire é árabe, é de facto o chefe da maior tribo local. Suponho que se possa dizer que ele é só uma figura. No sentido que todo o governo o é. Mas ao olhando para as estruturas organizadas de baixo para cima, é certo que não são só os curdos que estão a participar. Disseram-me que o único problema a sério é com algumas aldeias do “cinto árabe”, pessoas trazidas de outras partes da Síria pelos Baathistas nos anos 50 e 60, como parte de uma política de marginalização e assimilação dos curdos. Algumas dessas comunidades afirmaram-se bastante hostis à revolução. Mas os árabes cujas famílias já lá estão há várias gerações, ou os assírios, quirguizes, arménios, chechenos, mostram-se entusiasmados. Os assírios com quem falámos disseram que, após uma longa e difícil relação com o regime, sentiram que finalmente lhes era permitida autonomia cultural e religiosa. Provavelmente, o maior problema pode ser o da libertação das mulheres. O PYD e o TEV-DEM vêem-no como absolutamente central na sua ideia de revolução, mas também enfrentam o problema de lidar com alianças maiores com comunidades árabes que sentem que isto viola princípios religiosos básicos. Por exemplo, enquanto aqueles que falam siríaco têm a sua própria união de mulheres, os árabes não, e as raparigas árabes interessadas em organizar-se em torno de questões de género ou até assistir a seminários feministas têm de se juntar com os assírios ou mesmo com os curdos.

Não é necessário estar preso no “quadro anti-imperialista puritano” que mencionaste antes, mas o que dirias em relação ao comentário que o Ocidente/imperialismo irá um dia exigir aos curdos sírios um pagamento pelo seu apoio? O que é que o Ocidente pensa exactamente sobre este modelo anti-estado e anti-capitalista? É apenas uma experiência que pode ser ignorada durante um estado de guerra, enquanto os curdos se aceitam voluntariamente combater um inimigo criado pelo Ocidente?

É absolutamente verdade que os EUA e a Europa irão fazer o que poderem para subverter a revolução. Nem é preciso dizer nada. As pessoas com quem falei estão bem cientes disso. Mas não fazem grande diferenciação entre a liderança de poderes regionais como na Turquia, Irão ou Arábia Saudita, e poderes Euro-americanos como por exemplo França ou EUA. Assumem que são todos capitalistas e estadistas e portanto anti-revolucionários, que podem no melhor dos casos ser convencidos a apoiarem-nos mas que, em última análise, não estão do seu lado. Depois existem questões ainda mais complicadas da estrutura da chamada comunidade internacional, o sistema global de instituições como a ONU ou FMI, corporações, ONG’s, organizações humanitárias, em que todas presumem uma organização estadista, um governo que pode passar leis e detém o monopólio da aplicação coerciva dessas leis. Só existe um aeroporto em Cizire e está sobre o controlo do governo Sírio. Podem tomá-lo a qualquer altura, dizem. E há uma razão para não o fazerem: como iria um não-Estado dirigir um aeroporto? Tudo o que se faz num aeroporto é sujeito a regulamentos internacionais, o que presume um Estado.

Tens uma resposta para o porquê da obsessão do ISIS com Kobane?

Bem, eles não podem ser vistos a perder. Toda a sua estratégia de recrutamento é baseada na ideia que eles são imparáveis, e que a sua contínua vitória é a prova que representam a vontade de Deus. Serem derrotados por um monte de feministas seria a humilhação final. Enquanto estiverem a lutar em Kobane, podem dizer que os média mentem e que estão a avançar verdadeiramente. Quem pode provar o contrário? Se recuassem seria admitir a derrota.

Tens resposta para o que Tayyip Erdogan e o seu partido estão a tentar a fazer na Síria e o Médio Oriente em geral?

Posso apenas imaginar. Parece que Erdogan passou de uma política anti-Assad e anti-curda para uma estratégia quase puramente anti-curda. Repetidamente tem mostrado vontade de se aliar com fascistas pseudo-religiosos para atacar qualquer experiência de democracia radical inspirada no PKK. Ele vê claramente, como o próprio Daesh (ISIS), que o que está a ser feito é uma ameaça ideológica, talvez a única alternativa ideológica viável face ao islamismo de direita que se avizinha, e tudo fará para a eliminar.

De um lado existem os curdos iraquianos com uma ideologia bem diferente em termos de capitalismo e noção de independência. Por outro lado, existe este exemplo alternativo em Rojava. E existem os curdos da Turquia que tentam manter um processo de paz com o governo… Pessoalmente, como vês o futuro do Curdistão a curto e a longo prazo?

Quem pode dizer? Neste momento as coisas parecem surpreendentemente boas para as forças revolucionárias. O KDG até desistiu da enorme vala que estava a construir através da fronteira de Rojava, após o PKK intervir e salvar Erbil e outras cidades dos avanços ISIS, em Agosto. Um elemento do KNK disse-me que isso teve um grande impacto na consciência popular; que um mês criou tanta consciência como 20 anos. Os jovens estavam particularmente impressionados pelo facto de os seus próprios Peshmerga abandonarem o campo de batalha mas as mulheres do PKK não. Mas é difícil de imaginar como é que o território de KRG será contudo revolucionado num futuro próximo. Nem o poder internacional o permitiria.

Apesar de a autonomia democrática não parecer estar em cima da mesa de negociações na Turquia, o Movimento Político Cudo tem estado a trabalhar nisso, especialmente ao nível social. Tentam encontrar soluções em termos legais e económicos para possíveis modelos. Quando comparamos, digamos, a estrutura de classes e o nível de capitalismo no Curdistão Ocidental (Rojava) e no Norte (Turquia), o que pensas sobre as diferenças destas duas lutas para uma sociedade anti-capitalista – ou para um capitalismo minimizado, como o descrevem?

Penso que a luta curda é explicitamente anti-capitalista em ambos os países. É o seu ponto de partida. Conseguiram uma espécie de fórmula: não eliminar o capitalismo sem eliminar o Estado, e não podemos eliminar o Estado sem eliminar o patriarcado. No entanto, o povo de Rojava tem a questão simplificada em termos de classes porque a verdadeira burguesia, tal como existia numa região maioritariamente agrícola, desapareceu com o colapso do regime de Baath. Enfrentarão um problema a longo prazo se não trabalharem no sistema educativo, para assegurar que um estrato tecnocrata de desenvolvimento não tente eventualmente tomar poder, mas entretanto, é compreensível que se foquem de imediato nas questões de género. Na Turquia não sei tanto, mas tenho a sensação que as coisas são muito mais complicadas.

Durante os dias em que as pessoas do mundo não podiam respirar por razões óbvias, a tua viagem a Rojava inspirou-te sobre o futuro? Qual achas que é o “remédio” para as pessoas respirarem?

Foi extraordinário. Passei a minha vida a pensar em como poderíamos fazer coisas como estas num futuro remoto e a maioria das pessoas pensa que sou louco por imaginar que isto alguma vez vai acontecer. Estas pessoas estão a fazê-lo agora. Se eles provarem que pode ser feito, que uma sociedade genuinamente igualitária e democrática é possível, isto irá transformar completamente a noção de possibilidades humanas. Pessoalmente, sinto-me dez anos mais novo só de ter lá passado dez dias.

Com que cena te irás recordar da tua viajem a Cizire?

Existem tantas imagens impressionantes, tantas ideias. Gostei da disparidade entre o aspecto das pessoas e as coisas que diziam. Conhece-se alguém, um médico, que parece um militar sírio, vagamente assustador, de casaco de cabedal e expressão austera. Depois fala-se com ele e ele explica: “Bem, sentimos que a melhor abordagem à saúde pública é a prevenção, a maioria das doenças ocorre devido ao stress. Sentimos que se reduzirmos o stress, os níveis de doenças de coração, diabetes, e mesmo o cancro irão diminuir. Assim, o nosso plano final é reorganizar as cidades para terem 70% de espaços verdes…” Existem todos estes planos loucos e brilhantes. Mas depois vai-se ao médico ao lado e explica-nos que, graças ao embargo turco, não conseguem sequer obter equipamento ou medicamentos básicos, que todos os pacientes para diálise que não foram levados dali morreram… Esta disjunção entre as ambições e as incríveis e difíceis circunstâncias. E… A mulher que era efectivamente a nossa guia era uma vice-chanceler chamada Amina. A certa altura, pedimos desculpa por não termos trazido presentes melhores e ajudado a população de Rojava, a sofrer sob o embargo. E ela disse: “No final, isso pouco importa. Temos a única coisa que ninguém nos pode dar. Temos a nossa liberdade. Vocês não. Quem me dera que houvesse uma maneira de vos poder dá-la”.

És por vezes criticado por seres demasiado optimista e entusiasta sobre o que está a acontecer em Rojava. Achas que és? Ou há alguma coisa que não entendem?

Sou optimista de temperamento, procuro situações que carreguem alguma promessa. Não acho que existam garantias que isto resultará no final, que não será esmagado, mas certamente que não será se toda a gente decidir que nenhuma revolução é possível e se recusar a dar-lhe apoio activamente, ou até dedicar esforços a atacá-la ou aumentar o seu isolamento, como muitos fazem. Se existem alguma coisa da qual tenho consciência e os outros não, talvez seja o facto de a história não estar terminada. Os capitalistas têm feito um esforço enorme nos últimos 30 ou 40 anos em convencer as pessoas que os actuais acordos económicos – nem sequer o capitalismo, mas a forma de capitalismo semi-feudal, financializada, peculiar que temos hoje em dia – são o único sistema económico possível. Puserem mais esforços nisto do que em criar um sistema capitalista global viável. Como resultado, o sistema está a despedaçar-se à nossa volta no preciso momento em que toda a gente perdeu a capacidade de imaginar outra coisa. Bem, é bastante óbvio que em 50 anos, o capitalismo sob qualquer forma que conheçamos, e provavelmente sob qualquer outra forma, já não existirá. Terá sido substituído por outra coisa. Essa coisa pode não ser melhor. Pode até ser pior. Por esse mesmo motivo, parece-me que é nossa responsabilidade, enquanto intelectuais, ou simplesmente seres humanos pensantes, de pelo menos pensar como será uma coisa melhor. E se existem pessoas que estão verdadeiramente a tentar criar essa coisa melhor, é nossa responsabilidade ajudá-las.

 

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Erdoğán e Barzani buscam enganar a imprensa

10 segunda-feira nov 2014

Posted by litatah in Curdistão/Kobane, Experiências anarquistas

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Barzani, Curdistão, Erdogan, Estado Islâmico, EUA, ISIS, Kobane, Pershmerga, PKK, Rojava

Turkey Kurds

Os Estados Unidos têm pressionado a Turquia, país membro da OTAN, durante semanas para que faça mais por Kobane

Por Michael Rubin 
6 de novembro de 2014

Fonte: Diário Siglo XXI 

Tradução: Coletivo Anarquia ou Barbárie

Os peshmerga curdos iraquianos atravessaram a Turquia a caminho de Kobane, o cantão curdo-sírio atualmente sitiado pelo Estado Islâmico. O The New York Times informa que os “Líderes curdos sírios de Kobane afirmam que pequenos grupos de guerrilheiros não são suficientes para reverter a situação atual”, mas a Turquia tem o benefício da dúvida, e continua:

“Os Estados Unidos têm pressionado a Turquia, país membro da OTAN, durante semanas para que faça mais. Mas a Turquia tem se esforçado em solicitar que a intervenção americana busque depor o presidente sírio Bashar al-Assad, manifestando grandes reservas quanto à ajuda às minorias curdas da Síria e Iraque, alinhadas com as suas próprias populações curdas descontentes. Os grupos que combatem pelo município de Kobane entendem a política por trás da recente decisão turca de lhes ajudar a repelir o Estado Islâmico. Os analistas apontam que a minimização desse descontentamento na Turquia seja importante.”

Tais matérias interpretam mal a dinâmica curda ou os reais interesses do presidente turco, Erdoğán. Quando Erdoğán pensa a Síria, o inimigo número um a bater é Assad, o número dois são os curdos sírios e, apenas num distante terceiro lugar, o Estado Islâmico. Durante os últimos meses, Erdoğán esperava que o Estado Islâmico fizesse o trabalho sujo por ele, derrotando os curdos sírios. Entretanto, duas coisas aconteceram: as Unidades Populares da resistência em Kobane (YPG e YPJ) não apenas não se renderam como também poderiam até ter revertido a situação; e os Estados Unidos decidiram ignorar a proibição de cooperar com tais Unidades e as abasteceu, na prática, armando pela primeira vez o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Erdoğán jogou suas cartas, e os EUA, por fim, viu a luz no fim do túnel. Ao permitir que os curdos cruzem sua fronteira – mesmo como um gesto simbólico – a intenção de Erdoğán não é exatamente ver uma vitória dos curdos, mas sim impedir que os EUA voltem a colaborar com o PKK.

Erdoğán não é o único a se mostrar hostil aos curdos sírios. O presidente do Curdistão iraquiano, Massoud Barzani, também. Barzani desfaz-se em elogios ao nacionalismo curdo, porém os antecedentes pesam. Barzani almeja, antes de tudo, aumentar seu poder pessoal. É totalmente a favor do nacionalismo curdo desde que seja ele quem mande. Contudo, preferiria ver o fracasso da empreitada curda ao se ver substituído por um rival. Em 1996, por exemplo, ele arriscou tudo o que os curdos haviam conquistado até então, ao chamar a Erbil ( capital do Curdistão iraquiano) a Guarda Republicana do então Presidente Saddam Hussein para que este o apoiasse em seu enfrentamento ao líder curdo rival, Jalal Talabani. Atenção: apenas oito anos após o regime de Saddam ter utilizado seu arsenal de armas químicas contra os curdos.

Barzani considera os curdos sírios como rivais políticos, tendo em vista que estes pendem mais para o lado do líder do PKK, Abdullah Öcalan, do que ao seu. Em visita ao Curdistão sírio no início deste ano, Barzani bloqueou ativamente a ajuda humanitária requerida pelos curdos sírios. Toneladas de medicamentos doadas em solidariedade aos curdos de país vizinho foram “esquecidas” em seus armazéns. Todavia, a salvação dos yazidis de Shingal por parte das Unidades Populares – depois que os próprios peshmerga de Barzani tinham fugido – não fez senão destacar ainda mais a relevância das Unidades Populares aos olhos dos curdos. Em outras palavras, se o Estado Islâmico cortasse as asas das Unidades Populares, Barzani não derramaria sequer uma lágrima.

O envio de um contingente simbólico de peshmergas curdos a Kobane é simplesmente o plano de contingencia de Erdoğán e de Barzani. Para as Unidades não faz nenhuma diferença, e a sua defesa de Kobane apenas tem aumentado sua fama. Adicionar os peshmerga iraquianos à mistura não vai mudar os rumos do combate, mas permitirá que Erdoğán e Barzani reivindiquem a vitória dos curdos sírios caso as Unidades consigam realizar tal façanha. Basicamente, Erdoğán e Barzani esperam se beneficiar da ação das Unidades Populares e compartilhar sua glória.

Os EUA podem querer derrotar o Estado Islâmico, mas não devemos ter dúvidas: o Estado Islâmico não teria chegado até aqui se não fosse pela cumplicidade da Turquia e, mais especificamente, do próprio Erdoğán. Seria um erro fatal dos legisladores estadunidenses, ao tratar de Kobane, supor que o resto da região compartilha do nosso programa. Isso não significa que não podemos ter aliados de conveniência, mas não devemos vê-los como algo que não são.

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Ideias e movimentos de organização anarquista hoje – Um papo sobre municipalismo libertário.

05 quarta-feira nov 2014

Posted by litatah in Antirracismo, Curdistão/Kobane, Militarização das periferias, Municipalismo Libertário, Murray Bookchin, Prática, Propostas, Teoria

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Alemão, anarquia ou barbarie, anarquistas, autonomistas OATL, Favelas, GEP, ISIS, Kobane, Maré, militarização, Municipalismo Libertário, Murray Bookchin, Periferias, PKK, PYD, repressão, Rojava, UPP

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Por Gilson Moura Henrique Junior

Para discutir teoricamente sobre organização e prática anarquista, é de bom tom ter em mente que, em relação aos movimentos e organizações de cunho socialista, o movimento anarquista parte de pontos organizativos, digamos assim, menos sólidos. Esta ausência de solidez não parte de diferenças qualitativas entre métodos de organização e sim da capilaridade relacionada ao socialismo e ao anarquismo. Esta diferença na penetração das ideias anarquistas em relação às socialistas não tem outra raiz senão a história de cada movimento: a perseguição a anarquistas, desde o fim do século XIX até os primeiros vinte anos do século XX; a cooptação que o movimento socialista levou a cabo junto aos movimentos anarquistas após a revolução russa de 1917; as duas severas ditaduras que reprimiram todo o espectro de esquerda, mas atingiram em cheio o movimento anarquista, que também era combatido pela esquerda, a partir de grupos alinhados ao partido comunista, que perseguia com ferocidade tudo o que fugisse da órbita soviética, como se viu na guerra civil espanhola.

Levando tudo isso em conta, temos diante de nós, nos últimos vinte anos, uma retomada do processo de organização anarquista e uma busca de protagonismo dessa vertente ideológica, que tem encontrado vasto sucesso e campo de atuação na juventude brasileira. Esse sucesso, no entanto, esbarra nas fragilidades organizativas do anarquismo, o que é típico nas organizações mais horizontais e cuja ausência de centralidade e centralismo exige menos unidade que a imposição das organizações socialistas de linha marxista-leninista. Uma dessas fragilidades é a dificuldade de formação, especialmente uma formação unitária, que leve em conta o maior grupo possível de pensadores anarquistas – e são muitos – de modo a ampliar a percepção da anarquia para além da ideia romântica de rebeldia momentânea, que acaba não refletindo sobre o que é preciso transformar, no presente, em cada indivíduo, para além da aparência externa e da simbologia anarquista utilizada.

Essa dificuldade de formação é combatida com muita competência por portais como o Protopia, que fornece um amplo número de textos dos mais diversos pensadores e que auxilia assim aos neófitos a entenderem mais da anarquia. Outros espaços são a Anarcopedia e o Instituto de Teoria e História Anarquista, que atuam divulgando ideias, base teórica e a história do movimento.

Essa fragilidade, embora seja um ônus, é parte dos riscos da horizontalidade e que precisa ser visto dessa forma. Assim como na ecologia a diversidade é mãe dileta da manutenção das espécies, na anarquia a diversidade, pluralidade e ausência de centralismo é mãe dileta da liberdade e da manutenção da ideologia em curso.

Diante desas colocações, a ideia de organização anarquista que perpassa pra quem observa de fora é extremamente diversificada e propõe uma gama de soluções para os dilemas da luta de classes que lidam com os mais diversos autores e propostas, na maior parte atuam como ferramenta de organização periférica, onde os partidos não atuam e formando focos de rebelião nas localidades onde os partidos passeiam apenas com o discurso de fomento eleitoral e com menos participação concreta na organização da população para um enfrentamento organizado ao estado. Essa fórmula de organização propõe o fortalecimento da organização de base, que consolide uma alternativa ao viés eleitoralista que acaba por, na hora H, trair o discurso de construção da revolução em nome da construção de aparatos.

Essa ideia de ação anarquista propõe uma solução viável e em curso de alternativa concreta à lógica partidária e que fomenta a organização popular, a questão é o passo adiante da tomada de poder e de empoderamento pelos coletivos organizados nas periferias. Que passo se dá para a ocupação dos espaços que o estado não ocupa?

Óbvio que seria muita arrogância propor de fora soluções às uma gama de coletivos organizados e com problemas práticos in loco, porém sugerir não dói. E a sugestão é que se integre as ações locais com a formação de conselhos coletivos de empoderamento local para a transformação de bairros em focos de comunas. A partir disso a constituição de um lastro de poder local criando uma rede coletiva horizontal que confronte o estado em nome da revolução no modo de vida dos bairros e ruas dentro do município.

Claro que isso tem em mente uma objetificação ideal da ação de coletivos inteiros e que não tem como medir os dramas diários de cada coletivo organizado nas periferias do país afora para compreender as dinâmicas internas que se se fazem presentes, os problemas e os enfrentamentos ao estado, especialmente em favelas, onde ele se mostra em uma face mais dura do que os intelectuais de classe média, entre os quais e me incluo pela casse e não pelo intelecto, cogitam compreender para além da formulação empática.

Só que é fundamental perceber o avanço da ocupação de espaço por coletivos anarcos ou autonomistas onde não se vê o discurso partidário, ocupadíssimo em conquistar CAS, DCEs, Grêmios, e não muito em organizar meios de enfrentamento político onde o estado não vai, e nem quem o busca ocupar para “fazer a revolução”, e tentar a partir disso auxiliar à construção de redes de transformação social que construam ferramentas revolucionárias de combate ao racismo ambiental, à criminalização da pobreza, ao racismo etnocida de estado, a partir do empoderamento simbólico e concreto dos moradores de periferia que a partir de suas associações (Não necessariamente associações formais) podem formar conselhos locais de percepção e resolução de problemas, que utilizem menos o aparato do estado e mais o cotidiano das ruas e vielas para tensionar o estado rumo à construção de alternativas de desenvolvimento local não paroquiais.

Essa ideia não se prende apenas nas periferias, as usa pela percepção de ocupação destes espaços pro coletivos autonomistas e anarquistas, e parte da ideia de Municipalismo Libertário criada por Murray Bookchin. E a proposta é incitar o debate sobre as táticas propostas por este pensador no cotidiano das cidades, atuando de forma a construir meios de reduzir o poder central do estado e combatê-lo rua a rua, bairro a bairro, cidade a cidade.

É fundamental entendermos também que essa proposta foi posta em prática no cotidiano do autor Murray Bookchin e hoje é praticada na Turquia pelos partidários do PKK e atual Curdistão Sírio pelo PYD (com o apoio do PKK), o que nos fornece meios práticos de percepção de suas implicações práticas, tão caras aos críticos.

A cidade independente de Kobane, membro do cantão de Rojava, que equivale ao Curdistão Sírio, é alvo tanto dos fundamentalistas islâmicos do Estado Islâmico (ISIS em Inglês) e das potências da OTAN, quanto dos islamistas moderados turcos do AKP, partido do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, que ao negar a entrada de combatentes curdos ligados ao PKK pelas fronteiras turcas, permitindo apenas a entrada dos pershmerga do Curdistão Iraquiano, que não praticam o confederalismo democrático, buscam enfraquecer o crescimento da atuação do PKK em território turco, abatendo o bastião da prática libertária me Rojava.

foto-2-eduardinhoEsse exemplo dá uma ideia de quão perigosa é a ideia de uma confederação de cantões ou cidades livres, o quão é perigosa a ideia de bairros, ruas, favelas, livres e organizadas em conselho se pondo a enfrentar o estado a partir de conselhos de jovens, mulheres, velhos, de artesãos, de donas de casa, que se propõem a construir soluções práticas para enfrentar a ditadura do estado, que promete a paz, mas fornece uma paz sem voz, garantida no medo das unidades de polícia pacificadora (UPP) e na garantia de lei e ordem (GLO) com as digitais das forças armadas, as mesmas forças armadas que prenderem, mataram, torturaram marxistas na década de 1970, e mataram indígenas, camponeses e quilombolas, que jamais receberam tanto holofote quanto os membros das organizações comunistas e socialistas (muitos hoje no poder mantendo as ocupações militares e as unidades de “pacificação”).

É por isso que entendemos que uma boa sugestão é a percepção dos meios pelos quais se organizaram os curdos e propõe Murray Bookchin como meio de agir de forma revolucionária na construção cotidiana adaptando as experiências propostas pelo anarquista estadunidense e postas em práticas pelos curdos à realidade brasileira, atuando de um jeito onde se construam ferramentas concretas de superação do estado e das formas de organização hierárquicas, fornecendo alternativas concretas pra resolução de problemas cotidianos sem a intermediação de líderes paroquiais e de vereadores, desta forma fortalecendo a percepção do poder popular e empoderando os envolvidos na sua construção.

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