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Anarquia ou Barbarie

~ A anarquia é a percepção ecológica da sociedade, é o entender a participação livre de cada membro da coletividade como fundamental para a existência, para o exercício da verdadeira cidadania que é viver na coletividade respeitando a diversidade. Anarquia é coletivamente sermos o poder, é todos nós decidirmos em conjunto, de forma horizontal o que fazermos em nossas vidas e em nossos bairros, cidades….

Anarquia ou Barbarie

Arquivos da Tag: arte de luta

Encontrei um Amarildo

04 sexta-feira mar 2016

Posted by litatah in Amarildo, Cadê o Amarildo?, Cinema, Militarização das periferias, Periferias e Favelas, Perseguição política, Polícia, UPP, Repressão, Sem categoria, Violência, Violência Racial

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Entre interpretação e realidade, filme apresenta caso do desaparecimento de homem simples da Rocinha para colocar outras questões em pauta

Por Angélica Fontella

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional

O Estopim

Dir. Rodrigo Mac Niven, Brasil, 2014

“A polícia informou…”, “o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro divulgou…”, “o secretário de segurança pública da capital fluminense declarou…” Frases como essas são usadas diariamente pela imprensa e, para o bem ou para o mal, muitas vezes representando uma ideia de verdade. Nas manifestações de 2013, múltiplas vozes tentaram se fazer ouvir e uma das 368 pessoas desaparecidas no estado do Rio de Janeiro em julho do mesmo ano (dados do ISP) se tornou símbolo: Amarildo de Souza. O morador da Rocinha – comunidade da zona sul carioca – desapareceu no dia 14 de julho de 2013, após ser abordado por policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) e conduzido “para averiguação” à sede da UPP. Nunca mais apareceu. Com intuito de abrir o debate sobre violência e projetos de militarização, foi produzido o documentário O Estopim, que estreou no Festival do Rio 2014, mas que ainda está sem previsão de lançamento.

Cena do cotidiano de Amarildo (Brunno Rodrigues) /DivulgaçãoCena do cotidiano de Amarildo (Brunno Rodrigues) /Divulgação

Escutas que reproduzem diálogos da rádio da Polícia Militar do Rio, no dia do desaparecimento de Amarildo (14 de julho), abrem o longa-metragem do cineasta Rodrigo Mac Niven, que já dirigiu Cortina de Fumaça (2010) e Armados(2012). O filme mescla ficção e documentário, contendo depoimentos de conhecidos de Amarildo e pessoas envolvidas no caso; além de cenas que reconstroem situações que teriam sido vividas por Amarildo, interpretado pelo ator Brunno Rodrigues, no filme, como cenas de trabalho e pesca. Segundo a esposa do pedreiro, pescar era seu único vício.

Quem guia o espectador durante os 82 minutos de exibição é o líder comunitário da Rocinha, Carlos Eduardo Barbosa, o Duda, quem motivou o diretor Rodrigo Mac Niven a realizar a produção. “Fui contagiado pela coragem de pessoas como Duda, amigo da família e um dos primeiros a fazer denúncias sobre o caso, além de instigar que outros também denunciassem abusos cometidos [pela polícia]”, declarou o diretor na sessão de lançamento, no último dia 29.

Duda, com toda simplicidade, um pouco atordoado com a atenção dedicada a ele no festival, assume nas telas a postura de narrador-personagem. Ele conta como Amarildo prestava pequenos serviços à sua lanchonete na Rocinha e como era prestativo com os demais moradores da comunidade. Duda conta que a ideia do filme é “abrir esse debate e conscientizar o poder público. E se for preciso, visitaremos todas as comunidades, para reunir lideranças e fazer com que as pessoas se sintam à vontade para buscarem os seus direitos, cortando o medo. Nosso maior inimigo dentro das comunidades é o medo da polícia”.

O lançamento do longa contou com a presença de políticos, atores e ativistas. André Ramiro, que interpretou o policial militar André Matias em Tropa de Elite (2007), comentou sobre a oportunidade de unir denúncia à profissão de ator: “acredito que teatro, cinema, dramaturgia também servem para informar, desenvolver intelecto, reivindicar e contestar, caso contrário, não seria arte”.

Brunno Rodrigues se sentiu honrado em participar da produção, “não somente por se tratar de um estopim para que a sociedade desperte para a politica pública equivocada que está sendo aplicada nas comunidades cariocas, mas também por ter sido trabalho profissional entre amigos”.

O filme aborda temas como segurança pública, desmilitarização da polícia e instalação de UPP’s de forma indireta, a partir de um mosaico de depoimentos. Entre as falas, são reconstruídas cenas que teriam feito parte do cotidiano de Amarildo, além de uma sequência marcante de tortura. “Foi angustiante, mas tudo foi feito com total segurança, e enquanto artista foi um prazer dar vida a uma situação como aquela que fomentará ainda mais a pergunta ‘o que aconteceu com Amarildo?’”, conta Brunno.

Embora dê margem para a elevação do personagem ao status de homem perfeito, a produção revela lado pouco falado nos grandes meios de comunicação, ao ouvir vozes dissonantes do discurso institucional sobre o caso. O Estopim foi realizado de forma independente e colaborativa, Mac Niven conversou individualmente com profissionais que conhecia e conseguiu recrutar equipe para produzir o trabalho. Mariana Genescá, produtora executiva do filme pela TVa2 Produções, lembra que o “caso Amarildo” foi, na verdade, pano de fundo para ilustrar uma realidade muito mais ampla, que vivemos todos os dias, o que explica a urgência do projeto. “Nem sequer buscamos patrocínio, até por acharmos que não conseguiríamos e queríamos ter liberdade pra falar e mostrar o outro lado. Cadê os moradores contando o que está acontecendo com eles mesmos?” explica. O longa ainda não tem contrato de distribuição.

Assista ao trailler:

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Quem acredita na humanidade?

03 quinta-feira mar 2016

Posted by litatah in Arte e Entretenimento, Cinema, Comédia, Entretenimento, Sem categoria

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arte, Arte é Diversão, arte de luta, arte e luta, cinem, cinema e arte, Comédia

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Comédia mostra personagem que vive em descompasso com os valores capitalistas, tem problemas com a família e é passado para trás pelas pessoas que o enxergam como um “idiota”

Por Carolina Ferro

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional

Our idiot brother

Dir. Jesse Peretz, 2011, EUA 

Ned , vivido por Paul Rudd, é um cara bacana. Ele vivia numa fazenda com a namorada, produzindo alimentos orgânicos que vendia na feira. O dinheiro era necessário para a sobrevivência, não uma obrigação ou um fim. Talvez por isso, Ned não via ganância nem maldade nas pessoas. Certo dia, um policial pediu-lhe um pouco de maconha, dizendo ter tido um dia difícil. Na inocência de ajudar uma pessoa, Ned deu um pacote da erva e foi preso no mesmo instante. Isso mudaria as vidas dele e da sua família.

DivulgaçãoDivulgação

Devido ao seu bom comportamento, Ned teve direito à liberdade condicional. Mas ao sair da prisão, a namorada já estava com outro. O que mais doía em Ned era a ausência de seu cachorro, um golden retriever chamado Willie Nelson (homenagem a um cantor de música country), que ficou de posse de sua ex-companheira.

Ned teve que ir morar com sua família, mas todos o achavam um perdedor. Afinal, ele não tinha emprego, havia sido preso, não tinha perspectivas, nem dinheiro. Sua mãe aproveitava para pedir favores e suas três irmãs – Miranda (Elizabeth Banks), Natalie (Zooey Deschanel) e Liz (Emily Mortimer) – disputavam quem não ficaria com o único homem da família.

Primeiro, Ned viveu com Liz, a irmã cujo sonho era ser uma mãe exemplar, numa família perfeita. O marido trabalhava com documentários e dizia fazer ações humanitárias. O casal tinha dois filhos, um bebê recém-nascido e um menino de cerca de oito anos.  Apesar de Ned ser um tio incrível, presente e atento aos sobrinhos, o marido de Liz se incomodava com ele. Tudo piorou quando Ned o viu fazendo sexo com uma das bailarinas do documentário, o que fez com que o esposo de Liz a pressionasse para despejá-lo. Ned jamais contou o que havia visto. Na realidade, para ele tudo não passava de uma cena do filme.

DivulgaçãoDivulgação

Ned só descobriu a traição quando se mudou para a casa de Miranda, a irmã jornalista que deu a notícia à Liz. Miranda notou que Ned sabia de muitas histórias, pois as pessoas confiavam nele e lhe contavam seus problemas e angústias. Certo dia, ele contou uma história mirabolante de uma pessoa conhecida, que Miranda logo transformou em artigo. Sua carreira daria uma guinada com o texto, mas seu irmão teria que assinar um termo frente aos advogados do jornal, confirmando a história. Ned optou por não assinar e preservar a intimidade da famosa. Miranda ficou furiosa com o irmão e o expulsou de casa.

Mais uma vez, Ned precisou se mudar, agora para o apartamento de Natalie, uma comediante lésbica que morava com a namorada. Sua companheira adorava Ned e até chegou a ajuda-lo a tentar sequestrar seu cachorro. Tudo seria perfeito se sua irmã não tivesse traído a namorada com um rapaz e não tivesse engravidado. Ned aconselhou a irmã a falar a verdade, pois, segundo ele, “o amor sempre vence”. Natalie mentiu ao irmão que havia conversado com sua companheira e Ned foi dar parabéns à namorada da irmã por ter compreendido e aceito a criança que estava por vir. Ao descobrir a traição, as duas brigaram, Natalie ficou sozinha e culpou Ned por ter se metido em sua vida.

Num mundo cada vez mais individualista, onde os seres humanos pensam apenas em si mesmos, Ned é apenas um “bode expiatório”. É comum que as pessoas, ao invés de realizarem uma autocrítica, culpem outras, o governo, a política, “a sociedade”. Não que essas críticas não sejam necessárias, mas, afinal, nós estamos separados do mundo? Somos apáticos e não temos responsabilidade por nada que acontece?

Essa comédia – meio drama – leve e descontraída favorece reflexões importantes. Será que vale a pena manter uma família desestruturada apenas pela aparência? Pela necessidade de mostrar à sociedade que não falhou? Falhar não faz parte da natureza humana? – Para conseguirmos uma promoção, um emprego melhor, mais dinheiro, prestígio, pode-se fazer qualquer coisa? Passar por cima de pessoas, acabar com a reputação ou a carreira de alguém faz você ser melhor? – Devemos ser sinceros com as pessoas que amamos ou é possível começar uma vida com alguém escondendo fatos primordiais para nós?

Como é uma comédia, tudo acaba bem para Ned. Suas irmãs percebem a injustiça que fizeram com ele e a família acaba mais unida do que nunca, com cada uma refazendo suas vidas, dessa vez, com os conselhos do irmão antes considerado “idiota”.

A obra faz – de forma sutil e leve – uma crítica à sociedade capitalista vigente. Em especial nos Estados Unidos, onde o ideal americano é prosperar financeiramente, quem se opõe a isso é visto de forma pejorativa, como “idiota”. Ned é o oposto do “american way of life”. Isto assustou suas irmãs durante a maior parte do tempo até que elas perceberam a “utopia da felicidade estadunidense”. O dinheiro não traz felicidade. A felicidade plena não existe, mas nada melhor que viver com tranquilidade, algo que Ned tinha de sobra e suas irmãs desconheciam.

Ser “idiota” na sociedade em que se passa o filme é ser honesto, verdadeiro, gentil, carinhoso, acreditar no ser-humano acima de tudo, não ser guiado por sentimentos como ganância ou ódio. Talvez não haja mais, naquele sentido, “idiotas completos”. Mas cada um de nós podemos ser pouco “idiota” – e é bom que sejamos, para que não percamos totalmente a nossa humanidade.

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Todos ao palco!

29 segunda-feira fev 2016

Posted by litatah in Arte e Entretenimento, Arthur Azevedo, História, Sem categoria, teatro

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anarquia e arte, arte, Arte é Diversão, arte de luta, História, luta e arte, teatro é arte, teatro é luta

117-52-01

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional

Grupos de teatro amador movimentaram o Rio de Janeiro na virada do século, divertindo, instruindo e politizando a sociedade

Por Luciana Penna Franca

No Rio de Janeiro o teatro foi sempre considerado “gênero de primeira necessidade, figurando no orçamento do rico e do pobre”, assegurava, em 1906, o escritor e crítico teatral Arthur Azevedo, em sua coluna “O Theatro”, que era publicada toda semana no jornal A Notícia. De fato, era enorme o número de apresentações teatrais na capital federal nas décadas da virada do século. Em apenas um ano, 1890, foram encenadas cerca de 2 mil peças, pelas contas do mesmo Arthur Azevedo. Considerando que ele assistia principalmente aos espetáculos das grandes companhias, com atores profissionais, pode-se imaginar um número ainda maior de encenações produzidas no circuito amador de teatro.
O gênero musicado, mais especificamente o teatro de revista, era o grande sucesso de público e de crítica, dominando o circuito comercial em número de apresentações e bilheteria. Mas a cena teatral carioca era plural e, para além do teatro considerado ligeiro, de variedades ou comercial, existiam outras formas de fazer e apreciar teatro que quase não apareciam nas críticas da época. Dramas, alta comédia, peças mais politizadas e também as revistas eram encenados por uma grande variedade de amadores. Subiam ao palco trabalhadores nacionais e imigrantes, dedicados a diferentes ofícios e com variadas orientações políticas, e também homens e mulheres abastados da capital. Espalhado por toda a cidade, o teatro amador organizava-se em grêmios, clubes, “palcos”, “teatrinhos” e sociedades dramáticas, numa forma de expressão e diversão que envolvia muito mais gente do que apenas seus sócios.
A partir de informações reunidas em memórias sobre o teatro, estatutos dos clubes dramáticos, pedidos de licença para funcionamento e inúmeros periódicos teatrais editados no Rio de Janeiro, foi possível identificar mais de 160 associações dramáticas de amadores entre 1865 e 1920. Além da diversidade social e dos tipos de peças que apresentavam, também surpreende sua abrangência geográfica. O teatro amador estava presente nos subúrbios distantes do centro – como Santa Cruz, Jacarepaguá, Realengo e Cascadura – e em alguns bairros mais nobres e com concentração de teatros – como São Cristóvão e Botafogo (com sete cada um) e Riachuelo (com cinco). Era significativa a concentração de grupos amadores na região do centro: mais de vinte deles disputavam plateias com variadas formas de teatro comercial. A julgar pelos comentários de intelectuais e críticos da época, a diversidade se estendia aos públicos, (des)qualificados como “negrada”, “almas simples”, “portugueses”, “elementos da classe média”, “pequena burguesia”, “elite social”.
O “teatrinho”, segundo vários jornalistas e críticos teatrais, reunia artistas de forma “espontânea” e “esporádica”, sem depender de salários ou da bilheteria. No entanto, não era o que acontecia: para se constituírem como grupos dramáticos, definiam em estatuto a composição social de seus sócios e as regras para seu funcionamento, ensaios e apresentações dos espetáculos. Alguns grupos regulamentavam inclusive as funções cênicas e os responsáveis por elas. Nos estatutos percebem-se diferentes motivações que levavam aqueles amadores a fazer teatro: havia os que visavam exclusivamente ao lazer dos sócios e outros que pretendiam “ensinar” ou difundir ideias, valores ou comportamentos.
Nos espaços teatrais frequentados pelos grupos abastados da cidade, como o Elite Club e o Cassino Fluminense, além de artistas profissionais, apresentavam-se principalmente os próprios amadores associados, em espetáculos de gêneros diversos que atraíam “damas e cavalheiros da nossa mais fina sociedade”. A Sociedade do Teatrinho da Rua dos Arcos, situada “no quintal de uma casa ao lado direito de quem vai da rua do Lavradio, próximo ao aqueduto, hoje viaduto da Carioca”, também oferecia espetáculos “concorridos pela melhor sociedade fluminense”, nas palavras de Arthur Azevedo, em 1901.
Outros grupos dramáticos eram constituídos exclusivamente por trabalhadores, e expressavam nos nomes suas filiações políticas e ideológicas: Os Libertários, Pensamento e Ação, Germinal, 1º de Maio, Cultura Social. Para eles, o teatro era um veículo de conscientização social, de propaganda de uma ideologia ou de formação da identidade operária. O regulamento do grupo dramático Teatro Social (1906), por exemplo, determinava que sua composição seria de “operários e operárias que pertençam às suas associações de classe e estejam quites com as mesmas”. Entre seus fins estava a propaganda “das modernas doutrinas sociais” por meio dos espetáculos teatrais. No Centro Galego, situado na rua da Constituição n. 38, encenavam-se várias peças anarquistas, tanto por seu próprio corpo cênico como por grupos independentes. O teatro procurava mobilizar a comunidade trabalhadora para incrementar sua participação nas entidades associativas de socorro mútuo, recreativas, desportivas e dramáticas. Havia comédias, mas eram principalmente dramas, tratando de temas diversos: das lutas proletárias e condições de trabalho a preceitos morais e valores familiares. Entre os títulos mais conhecidos apresentados no Centro Galego estão 1º de Maio, de Pietro Gori; Antônio, drama social de Guedes Coutinho; Avatar, de Marcelo Gama; e o Pecado da Simonia, de Neno Vasco. A opção pelo teatro era uma forma de educar o intelecto, a postura e a linguagem, capazes de propiciar o progresso e a ascensão individual.
Alguns grupos teatrais amadores só admitiam sócios do sexo masculino – como o Clube Dramático Souza Bastos e a Sociedade Estudantina Dramática Luso Brasileira – enquanto outros eram compostos somente por “senhoras” – caso do Grêmio das Amadoras Flor de São João. Em geral, o corpo cênico era formado pelos sócios dos clubes, que mantinham suas atividades por meio de uma mensalidade sempre em torno de 3 mil a 5 mil réis. Era um preço acessível, que possibilitava a participação em todos os grupos sociais. E, de fato, diversos profissionais dedicavam suas horas vagas ao teatro amador: do funcionário público Castro Vianna ao médico da polícia Dr. Bandeira de Gouveia, do professor da Escola de Medicina dr. Chagas Leite ao cônsul Ricardo de Albuquerque, do promotor público Silveira Serpa ao oficial da Marinha Paiva Junior, dos advogados Cunha Junior e Lupércio Garcia ao farmacêutico Ernesto de Sousa. Este último foi autor de peças, cançonetas, músicas e monólogos, fundou o Grêmio Dramático do Andaraí, na rua Barão de Mesquita, e chegou a erguer um palco em sua casa, ficando famoso por ser o inventor das afamadas “gotas virtuosas” – provavelmente um remédio “milagroso” criado no seu laboratório.
As encenações teatrais amadoras, ao contrário do que se imagina, não eram gratuitas. Os valores dos ingressos, na verdade, pouco se diferenciavam dos cobrados pelos teatros do circuito comercial, como o Carlos Gomes ou o São Pedro. Enquanto no Teatro São José o lugar mais barato podia ser encontrado por 1.000 réis ou até 500 réis, o ingresso para uma festa operária em 1909 podia custar 1.200 réis, incluindo mais de um espetáculo teatral. Encenações realizadas por trabalhadores imigrantes no Centro Galego cobravam até 2 mil réis pelas entradas. Considerando que um operário carioca recebia, em 1920, uma remuneração média de 5.500 réis diários se fosse homem, ou 3.500 mil réis diários se fosse mulher, um ingresso de teatro equivalia a cerca da metade de um dia de trabalho. Era possível, sim, “fosse rico ou pobre”, divertir-se ou se instruir com os artistas e os palcos espalhados pela cidade. Restava a cada um escolher o espetáculo que mais lhe agradava ou com o qual mais se identificava.
No Rio de Janeiro de fins do século XIX e início do XX, o teatro amador foi uma prática social disseminada por toda a capital, e suas diferentes formas de atuação faziam desses teatros agentes polemizadores e polissêmicos. Ao fim dos espetáculos, suas plateias heterogêneas levavam os debates dos repertórios teatrais para cafés, locais de trabalho, jornais e domicílios. Identidades de grupo e tensões sociais circulavam do palco à sociedade e de volta ao palco, abrindo horizontes de possibilidades de reflexão e transformação do cotidiano, em um momento especialmente fértil e democrático das artes cênicas no país.
Luciana Penna Franca é autora da dissertação “Teatro Amador: a cena carioca muito além dos arrabaldes” (UFF, 2011).
Saiba mais
AZEVEDO, Arthur. O Mambembe. In: Teatro de Artur Azevedo. Rio de Janeiro: Funarte, 2002.
MARZANO, Andrea. Cidade em Cena – o ator Vasques, o teatro e o Rio de Janeiro (1839-1892). Rio de Janeiro: Folha Seca/ Faperj, 2008.
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. “E o Rio dançou. Identidades e tensões nos clubes recreativos cariocas (1912-1922)”. In: CUNHA, Maria Clementina Pereira (org.). Carnavais e outras f(r)estas. Campinas, SP: Editora Unicamp/ Cecult, 2002.
HIPÓLIDE, Eduardo Gramani. O teatro anarquista como prática social do movimento libertário (São Paulo e Rio de Janeiro – de 1901 a 1922). Dissertação de Mestrado em História, PUC-SP, 2012. Parte 1, p. 35-85. Disponível em: http://www.sapientia. pucsp.br/tde_arquivos/17/TDE-2012-08-07T09:17:29Z-12756/Publico/Eduardo% 20Gramani%20Hipolide.pdf.

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Balas agridoces

24 quarta-feira fev 2016

Posted by litatah in Arte e Entretenimento, Literatura, Machado de Assis, Sem categoria

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anarquia, anarquia e arte, arte, Arte é Diversão, arte de luta, arte e luta, Literatura, Machado de Assis

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Fonte: Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Numa série de crônicas assinadas com pseudônimo, Machado de Assis fazia crítica social sem perder o humor.

Por Ana Flavia Cernic Ramos

“Há pessoas que não sabem, ou não se lembram de raspar a casca do riso para ver o que há dentro”. Foi com esta frase que Lélio, pseudônimo de Machado de Assis (1839-1908) na série “Balas de estalo”, começou sua crônica do dia 26 de janeiro de 1885. Acusado por um amigo de rir de tudo, ele se defendia dizendo que, assim como o “barbeiro da comédia”, personagem da peça “O barbeiro de Sevilha” (1773), preferia rir por temer ser obrigado a chorar. Entretanto, como já alertava o divertido narrador, as balas de estalo, aparentemente doces, depois de desembrulhadas podiam guardar outras surpresas.

As “Balas de estalo” foram publicadas entre 1883 e 1886 num dos jornais de maior circulação no Rio de Janeiro, a Gazeta de Notícias. Foi uma das séries mais duradouras de Machado de Assis, formando um conjunto de 125 crônicas que misturavam humor e crítica social em uma linguagem leve e acessível aos muitos leitores da Gazeta. Receita de sucesso, os textos de nomes como Lulu Sênior, Zig-Zag, Décio, Publicola, José do Egito e Mercutio eram muito queridos pelos leitores do jornal.  Além de Machado, célebres intelectuais estavam por trás desses pseudônimos, como Capistrano de Abreu (1853-1907), Ferreira de Araújo (1846-1900), dono do jornal, e Valentim Magalhães (1859-1903). Somados todos os colaboradores, a série teve 940 crônicas no total.

Curtos e engraçados, como flashes, os textos surgiam a partir de comentários rápidos sobre acontecimentos do cotidiano, fatos inusitados que eram transformados em crítica às tradicionais práticas políticas do Império. Essas crônicas representavam angústias e incertezas de um momento histórico repleto de ambiguidades ideológicas, quando a sociedade escravocrata convivia com instituições liberais. Discussões parlamentares, reuniões abolicionistas e revoltas urbanas fizeram dos anos 1880 um período de grande agitação social. A escravidão e o sistema monárquico eram questionados e ameaçados, e a Lei dos Sexagenários – promulgada em setembro de 1885 e que libertava os escravos com mais de 60 anos – acirrava o debate acerca da “questão servil” e assustava os proprietários. Os republicanos avançavam cada vez mais, assim como as discussões sobre o poder pessoal do imperador se intensificavam nos jornais. Os narradores da série tentavam dar sentido a todas essas mudanças. “Anteontem, no Senado, trocaram-se algumas palavras, incidentemente, sobre qual das formas de governo é mais barata ou mais cara, se a monarquia, se a república. (…) Considero-me obrigado a vir dizer perante o meu país e o meu século que a mais barata de todas as formas de governo seria a que Proudhon preconizava, a saber, a anarquia. Pode-se gastar mais ou menos com o galo ou o peru que está no quintal, não se gasta nada com o cisne, que se não possui”, refletia Lélio.

A marca registrada das balas era justamente a ambivalência de sentidos em cada texto. José do Egito, pseudônimo de Valentim Magalhães, afirmou que a série unia “a força e a graça, a artilharia e os confeiteiros” para descobrir um “projétil” que participasse “do amargo da guerra e da guerra aos amargos”. Era preciso criticar, interferir nos acontecimentos, mas também manter a leveza, o humor, a brevidade, o tom acessível. Essas eram características não só da Gazeta, que se dizia um jornal moderno, barato e popular, mas do próprio gênero cronístico.

Ao ler as “Balas de estalo”, nota-se que muitas vezes os cronistas ofereciam “pólvora” disfarçada de “açúcar”, ou seja, embora cobertas de humor e ironia, as crônicas estavam sempre recheadas de críticas contundentes à monarquia, à Igreja católica e à escravidão. Lulu Sênior atacava, por exemplo, a lei que obrigava o sepultamento em cemitérios católicos: “Que fique essa para os católicos, e os que não são possam ser enterrados ou cremados em qualquer parte, sem licença de uma autoridade com a qual eles nunca tiveram nem quiseram ter relações. (…) O que reclamamos é justamente o direito, que até aqui é privilégio dos católicos, de morrer como vivemos”.

Numa referência também aos estalinhos de meninos – bombinhas utilizadas em festas populares, que batiam no chão, faziam barulho, mas não machucavam –, a série foi bem mais que uma brincadeira jocosa. A própria opção de Machado de Assis pelo pseudônimo Lélio incorporava esse sentido. Ao entrar para o grupo, o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) estava diante de um projeto já estruturado: seis narradores, unidos pelo humor e pelo tema da política. Após anos sem participar de um projeto coletivo, Machado de Assis teve que inventar um narrador que se adequasse à coluna. Assim como Pantaleão, Colombina e Arlequim, Lélio – que inspirou o escritor – era originalmente um dos personagens fixos da Commedia dell’Arte, gênero teatral que surgiu no século XVI na Itália. Espetáculos populares com cantos, danças e acrobacias, a Commedia dell’Arte fez grande sucesso na Europa. Com histórias repletas de bufonarias, intrigas amorosas e sátiras sociais, trupes de dez ou 12 artistas mascarados faziam apresentações nas ruas e nos teatros das cidades, criando histórias que convertiam situações dramáticas em conteúdo humorístico. Críticas sociais viravam piadas e irônicas brincadeiras.

Dentre todos os personagens, Lélio era o único que não usava máscara. O ator que o representava deveria ser jovem e elegante, atributos que lhe davam destaque no espetáculo. A introdução do elemento “real” em meio às máscaras teve grande repercussão, garantindo o sucesso imediato desses personagens junto ao público. Esse sucesso foi ressuscitado posteriormente por autores como Marivaux (França, 1688-1763) e Carlo Goldoni (Itália, 1707-1793), que fizeram de Lélio o personagem principal de várias de suas peças. Mas foi com o francês Molière (1622-1673) que a Commedia dell’Arte foi consagrada. Considerado o mestre da sátira, suas obras passaram a criticar profundamente os costumes da época com peças que resgatavam antigos personagens e modelos da comédia italiana. Em 1660, como um tributo ao gênero, ele estreou a peça “Sganarelle ou O corno imaginário”, que tinha Lélio como um de seus personagens centrais.

Molière já era parceiro antigo de Machado de Assis. Nas crônicas publicadas no Diário do Rio de Janeiro, na década de 1860, encontramos o dramaturgo auxiliando o escritor em muitas de suas ironias em relação aos políticos. Para o caso de “Balas de estalo”, a citação parecia ainda mais apropriada, já que resgatar Molière e a Commedia dell’Arte sintetizava, entre outras coisas, o papel de contundente crítico social. Tal como nos espetáculos de bufonaria no século XVI, ou como as mordazes peças teatrais de Molière, a série “Balas de estalo” fazia muito mais que humor e graça.

Durante todo o tempo em que colaborou na série, Machado participou intensamente dos debates criados pelo grupo de escritores. Seu narrador não poupou comentários ácidos a respeito da retórica vazia dos parlamentares, do aspecto de farsa da política imperial e da ineficiência do modelo eleitoral do país.  Foram muitos os temas que passaram pelas suas crônicas, todas escritas com a “pena da galhofa”, mas sempre com o alvo muito bem delimitado.

Ana Flavia Cernic Ramos é autora da tese “As máscaras de Lélio: ficção e realidade nas ‘Balas de Estalo’ de Machado de Assis” (Unicamp, 2010).

Saiba Mais – Bibliografia

CANDIDO, Antonio (org.). A crônica: o gênero, sua fixação, e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.

CHALHOUB, S; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, L. A. de M. (orgs.). Histórias em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.

DE LUCA, Heloisa H. P. (org.). ‘Balas de estalo’ de Machado de Assis. Crônicas Brasileiras I. São Paulo : Annablume, 1998.

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Cartier-Bresson, fotógrafo e anarquista

10 quinta-feira set 2015

Posted by litatah in Arte e Entretenimento, Cartier-Bresson, Fotografia

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Fonte: Antropologia do Cinema

“O anarquismo é, acima de tudo, uma ética e, como tal, mantêm-se intacta. O mundo mudou, mas não o conceito libertário, o desafio frente todos os poderes. Com isso, conseguiu se liberar do falso problema da celebridade. Ser um fotógrafo conhecido é uma forma de poder e eu não o desejo” (Henri Cartier-Bresson, 1998).

Alguém disse algo parecido como onde tivermos que lutar por dignidade, haveria um anarquista. Esta reflexão do grande fotógrafo francês, libertário até o fim de sua longa e lúcida vida, é um exemplo. Cartier-Bresson esteve na Espanha durante a República, e voltaria várias vezes, identificando-se com os anarquistas espanhóis e reivindicando a anarquia como um sentido ético para a vida. Nunca abandonou seu compromisso social em sua turnê pela Europa, Ásia, África e América Latina, deixando para a posteridade numerosos momentos históricos e retratos de personagens, graças à sua Leica e sua objetiva de 50 mm. Não é tão conhecido por seu trabalho para o cinema, durante a década de 30, com Paul Strand nos Estados Unidos e com Jean Renoir na França. Sua primeira vocação, no entanto, seria a pintura e o desenho, considerando o surrealismo como uma forma subversiva que casava bem com suas ideias libertárias. É início dos anos 30 quando se fascina pela fotografia, mas nunca abandonaria sua “paixão privada” pelo surrealismo e seu amor pelo desenho, dedicando seus últimos anos para este lado e deixando muitos nus femininos feitos em carvão (curiosamente, este interesse artístico é muito diferente de sua fotografia). De fato, tinha um grande interesse em fotografia a pintores como Matisse – com quem teve uma grande amizade – Braque, Giacometti, Bonnard, Bacon e muitos outros.

Cartier-Bresson se tornou anarquista muito jovem, ao descobrir mundos diferentes ao das civilizações judaico-cristãs e muçulmanas. Diante da inanidade presente em um mundo onde a tecnologia permite uma corrida contínua de imagens, reivindicou sempre a sensibilidade do olho do artista. Curiosamente, e apesar de considerado um dos pais do fotojornalismo e de possuir um inegável compromisso com o social, se distância da obra de outro grande fotógrafo como Sebastião Salgado. Cartier-Bresson acreditava que o trabalho de Salgado não foi concebido pelo olho de um pintor, mas pelo de um sociólogo, economista e ativista; apesar de respeitar muito o seu trabalho, acreditava que o brasileiro colocava um “aspecto messiânico” que a ele mesmo era estranho. Em uma ocasião, rejeitou o trabalho documental e jornalístico, pois considerava “extremamente chato”, algo que o próprio Robert Capa o repreendeu, aconselhando-o a se afastar de suas origens surrealistas, coisa que Cartier-Bresson parece ter feito apenas publicamente. Em qualquer caso, parece que o fotógrafo francês nunca se considerou um repórter e reivindicou sempre sua subjetividade artística: “Quando vou a algum lugar, tento fazer uma foto que resuma uma situação que encante, que atraia o olhar e tenha um bom relacionamento de formas, que para mim é essencial. Um prazer visual”. Pode se dizer que o fotojornalismo, considerado como mera acumulação e registros de fatos, é para Cartier-Bresson o caminho para lugar nenhum;  a coisa verdadeiramente interessante é o ponto de vista a ser tomado sobre esses fatos, e a fotografia deve ser considerada como um re-evocação desses eventos. Além disso, não mais trabalhava para agências de publicidade, já que se manteve firme em sua crítica à sociedade de consumo desenvolvida desde a década de 60 do século XX. Sempre manteve até o fim sua rebeldia e encontrou mais motivos para alimentá-la com o surgimento da tecno-ciência, que ele considerava um verdadeiro monstro, e com a falácia do “conflito de gerações”; Cartier-Bresson reivindicava uma humanidade unida pela solidariedade, valor fundamental com o qual se encontrou uma e outra vez durante toda a sua turbulenta e longa vida, independentemente da sua idade ou condição.

Vejamos as palavras do próprio Cartier-Bresson sobre a atividade fotográfica: “Para mim, a fotografia é o reconhecimento simultâneo em uma fração de segundo do significado de um evento e a organização das formas que lhe dão seu próprio caráter”. O ser humano deve encontrar um equilíbrio entre sua vida interior e o mundo ao seu redor, buscando a influência recíproca e até mesmo considerar, finalmente, o resultado de um único mundo que reúne subjetividade e objetividade. Como visto, o fotógrafo francês rejeitava o sucesso e até mesmo o reconhecimento, mas queria transmitir algo às pessoas e saber, ao mesmo tempo, que era bem recebido.

Capi Vidal

Fonte: Tierra y Libertad – março de 2012, Espanha

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No colo da mãe,

Sem soltar o cata-vento,

Dorme a menina.

Sérgio Francisco Pichorim

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Quem foi Erich Mühsam,poeta anarquista, morto por nazistas em 10 de julho de 1934?

10 sexta-feira jul 2015

Posted by litatah in Anti Fascismo, Bandeiras de Luta, Erich Mühsam, Fascismo, História, Mártires da Luta, Perseguição política, Perseguição política a anarquistas, Repressão, Repressão nazista

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Fonte: Erich Mühsam – BIOGRAFIA

Erich Mühsam, um dos vultos do expressionismo alemão, mas sobretudo, da poesia anarquista do século XX, nasceu em 1878 em Berlim. O seu pai era farmacêutico, da pequeno burguesia judaica e deu lhe uma educação muito autoritária.
Aos dez anos, o pai pô lo a estudar no Liceu de Lübeck, onde se submeteu ao mesmo autoritarismo que tinha em casa. A sua natureza rebelde valeu lhe numerosas punições.

Um dia, ainda no Liceu Lübeck, enviou um artigo anónimo ao “Lübecker Volksboten”, um Jornal social democrata local, denunciando as práticas ditatoriais dos professores, (que provocou um escândalo) e, assim queErich Mühsam foi identificado como autor desse artigo, foi expulso por “actividades socialistas”. Finalmente, Erich Mühsam obteve o diploma noutro estabelecimento de ensino. Os talentos literários deErich Mühsam são extremamente precoces. Aos 11 anos escrevia fábulas e aos 16, já ganhava dinheiro com os seus versos satíricos.


O pai, sempre austero, contra o qual o jovem Erich não tardou a revoltar se, apesar de tentar fervorosamente que o filho seguisse os estudos de farmácia, teve de aceitar com horror que o filho se transformasse num poeta…
Em 1901, Erich Mühsam  foi para Berlim e começou a movimentar se nos meios literários boémios e anarquistas de Berlim, enquanto trabalhava numa fábrica de produtos químicos. Nesta altura, Heinrich Hart convidou o para fazer parte do grupo “Neue gemeinschaft” (Nova Comunidade) que reagrupava jovens autores vindos de meios burgueses, mas politizados e a favor de uma vida comunitária. Entre estes jovens, encontravam se Peter Hille, Wilhelm Bölsche, Martin Buber e Gustav Landauer.

Este último e Erich Mühsam abandonaram entretanto o grupo por se aperceberem que o “espírito colectivo” não passava de palavras em vez de acções. E foi através de Landauer que Mühsam descobriu o anarquismo, sobretudo depois de ler Bakounine.
Mühsam  viajou pela Europa entre 1904 e 1908 (na Suíça conheceu Fritz Brupbacher, o biógrafo de Bakounone), fixando se depois em Munique.
Em 1911 fundou e dirigiu a revista “Kain. Zeitschrift für Menschlichkeit” (revista de Solidariedade Humana). Organizou em 1914 uma frente de esquerda contra a guerra e em 1918 fazia parte dos activistas da revolução de Novembro. A polícia considerava o um perigoso agitador e vigiava o constantemente.

 Erich Mühsam apelava à luta anti militarista, sugerindo mesmo a desobediência civil e a recusa ao pagamento de impostos para financiar a guerra.


Esteve preso até 1924, tendo sido recebido, aquando da sua libertação, por milhares de operários na gare de Berlim.


Depois, passou a ser o porta voz da “Associação Anarquista” em Berlim e escreveu contra a justiça de classe e o fascismo, fundando, em 1926, uma nova revista anarquista, a “Fanal”, que, em 1931, completava 58 edições. Publicou também numerosas obras sobre o Sistema, o Estado e a cultura alemã. Observador atento do nazismo, tentou criar uma larga frente anti fascista, passando a ser designado pelos nazis como “inimigo prioritário”. Goebbels apelidava o de “o porco judeu vermelho”.

O jornal nazi publicou na primeira página três fotos: de Rosa Luxembourg, de Karl Liebknecht e de Erich Mühsam, com a legenda “o único traidor do grupo que ainda não foi executado”.


Foi novamente preso em 1933 e depois de ter estado em vários campos, foi assassinado no campo de concentração de Oranienburg em 1934.


Tal como a sua vida, a sua poesia era temperamental e, ora escrevia sobre a luta e a revolução, ora escrevia poesia irónica e lúdica.


Erich Mühsam, foi um dos poetas anarquistas menos conhecidos e, ao mesmo tempo, um dos mais controversos, mesmo no meio literário alemão, que apenas evoca as suas ligações com o expressionismo.


Depois da prisão de Mühsam, a sua mulher, Zensl Mühsam foi presa em Moscovo e deportada para a Sibéria. Depois de 5 anos de trabalhos forçados, foi enviada para Novosibirsk. Depois da queda de Estaline, foi autorizada a instalar se em Berlim Este.

“De declarações verbais não surge um mundo novo. Os anarquistas que querem criar um mundo novo de liberdade, igualdade, reciprocidade, justiça, verdade e de associação de todos com todos, têm de revestir suas declarações de factos. Quer dizer, devem levar a sua vida como desejam que a vivam todos numa sociedade sem estado.”
Erich Mühsam

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Ex Machina – Eu, você e ovelhas elétricas

19 sexta-feira jun 2015

Posted by litatah in Arte e Entretenimento, Asimov, Cinema, Ex-Machina

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Alan Turing, Alex Garland, Alicia Vikander, anarquia e arte, arte de luta, arte e luta, Asimov, Ava, Caleb, cinema, cinema é luta, cinema e anarquia, cinema e arte, Elvex, Ex Machina, ex-machina, isaac asimov, Jogo da Imitação, Oscar Isaac, philip k. dick, resenha

ex-machina

Fonte: Contraversão

Por Bruno R Garcia (Formado em comunicação, já fez um pouco de tudo: editor de vídeo, animação, produção, mas é atrás do teclado que realmente faz as horas valerem a pena).

Você conhece o Jogo da Imitação? É uma teoria ainda, pois não temos inteligências artificiais tão avançadas a esse ponto (que eu saiba), mas é um jogo proposto por Alan Turing no qual uma pessoa deve fazer um desafio de perguntas e respostas e descobrir se do outro lado está uma máquina ou um ser humano.

Infelizmente o título já foi usado em outra película, porque seria uma descrição perfeita para a premissa de Ex Machina.

O filme todo se passa com Caleb (Domhnall Gleeson) tentando descobrir até onde vai a IA de Ava (Alicia Vikander) e o quão perto passar por uma humana ela está. O problema é que quando se olha para o abismo…

Centrado em diálogos, em personagens críveis e sem ser extremamente óbvio em seu desenvolvimento, esse é um dos melhores filmes de ficção científica que vi nos últimos tempos.

Claro que o roteiro não consegue evitar alguns clichês, mas ao menos um deles eu achei que seria completamente inevitável no mundo real, apesar de muito significativo para o personagem, então dei o braço a torcer.

A grande sacada do filme, que foi escrito e dirigido por Alex Garland, a mente que concebeu A Praia (o romance), Extermínio (roteiro), No limite da realidade (roteiro) e Dredd (roteiro), é trabalhar com o conceito de descoberta e exploração em tons de cinza.

Se você inventasse uma máquina capaz de pensar, o que faria? Aliás, o que é pensar? O que é ter consciência? Reconhecer sua existência é consciência? O roteiro levanta pergunta atrás de pergunta, em diálogos entrecortados entre um programador esforçado; talvez a mente mais brilhante da humanidade, Nathan (Oscar Isaac); e o que pode ser o próximo passo. O filme se esforça muito em não responder tudo de uma vez, sequer se propõe a responder todas as perguntas, deixando muitas para o espectador decidir – o que, em uma Hollywood de diretores pedagógicos alçados ao patamar de gênio, não deixa de ser uma ousadia.

A relação que Caleb e Ava constroem, os pequenos jogos e as dúvidas são colocados de maneira absolutamente natural, com explicações na medida, sem precisar de cada cena ser seguida de um diálogo expositivo, o que inclusive é ridicularizado dentro do próprio filme. Tudo isso aponta para um roteiro muito bem amarrado, com certeza Garland só quis dirigir para não fazerem com esse filme o mesmo que fizeram com A Praia.

spoilers

Conforme o jogo progride uma pergunta fica cada vez mais pertinente: se uma máquina pode pensar, se tem consciência de si e dos outros, ela é capaz de sentir? Não emular emoções, mas efetivamente sentir? Sentir tesão, afeto, ódio, vergonha, o que for?

E se uma máquina pode pensar, se tem consciência de si e dos outros, mas não é capaz de sentir, ela não seria o que chamamos de psicopata? Sem as emoções, sem a bússola moral que elas implicam, o que nos tornamos? Qual é a diferença disso para ser uma máquina?

O romance entre o programador isolado e o robô quase asimoviano é meio óbvio, mas como condenar? Acredito que nesse aspecto Ela foi melhor desenvolvido, mas os dois ressoam a mesma frequência nesse aspecto em relação a afeto, amor e cumplicidade; indo além do óbvio apelo carnal de uma relação. Onde traçamos alinha do aceitável, do normal? Ava é, em muitos aspectos, a mulher perfeita para Caleb, a questão parece ser que ela é perfeita até demais.

A cada nova pergunta respondida o roteiro nos apresenta um nova, e quando Ava pergunta o que acontecerá se ela não passar no teste, apesar da resposta ser óbvia para nós, o que vem a mente é: mas será que temos esse direito? Se a discussão sobre aborto sempre gira em torno de dor e consciência, o que falar sobre uma IA? Ela tem consciência, tem uma personalidade (de certa forma) e é capaz de entender completamente o que é existir e o que é não existir.

Asimov, que eu me lembre, não tinha dúvidas sobre o poder do ser humano sobre os robôs, mas eles não possuíam o mesmo tipo de consciência que estamos falando. E quando, em Sonhos de robô, Elvex demonstra estar desenvolvendo justamente uma das características mais humanas (metaforicamente, eu sei que todo mamífero sonha) a robopsicóloga não hesita em eliminá-lo.

Robôs podem sonhar? Não no sentido de ter a capacidade, mas de ter efetivamente a permissão para isso. O desejar algo, o anseio por algo, não seria uma característica humana? Ou o desejo, o sonho, é uma característica da inteligência? Robôs sonhariam o com quê? Ovelhas elétricas?

Sonhamos porque somos capazes de imaginar, ou imaginamos porque somos capazes de sonhar? Qual é a grande diferença entre nós, a nossa percepção de ser, e a dos nossos cães, por exemplo? Meu cachorro dorme aos meus pés e só posso projetar sobre o que ele sonha, não sei o que ele verdadeiramente pensa das coisas ou se ele, em última análise, me odeia e entende o que eu chamo de casa como uma prisão? Eu não tenho essas respostas, talvez um dia a gente invente aquela coleira de UP, até lá me sobram apenas conjecturas.

Mas para Caleb, não.

Ava pode falar com ele, pode explicar como se sente (sente?), pode demonstrar afeto, talvez até amor, mostra estar com medo e é capaz de despertar as mesmas emoções nele. Ela passa no teste, ela vai além do jogo da imitação, mesmo com os circuitos propositalmente aparentes no seu corpo robótico. Para ele, Ava se tornou humana, ou suficientemente próxima disso para que ele não se importe com as pequenas diferenças.

O filme segue para seu desfecho sem insultar o espectador, com uma conclusão tão simples quanto lógica, ainda que fria, deixando muitas perguntas em aberto, como deve ser.

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Near Myths #5 – The Checkmate Man (ou a morte de Marx e mais algumas pirações temporais)

18 quinta-feira jun 2015

Posted by litatah in Arte e Entretenimento, Grant Morrison, Quadrinhos

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Fonte: NerdDevils

E após superar a preguiça e falta de criatividade pra escrever pro blog, vou finalmente chegar à ultima edição da Near Myths, com a última participação do Morrison através de “The Checkmate man”. E calma galera, esse post não vai discutir teoria, marxismo x pós-modernismo, blabla, ao menos não diretamente.

No editorial da Near Myths #5 escrito pro Bryan Talbot podemos mapear o que o Morrison andava fazendo entre uma edição da NM e outra: ele planejava a construção de uma HQ de 100 páginas coloridas chamada “Abraxas”, em parceria com Tony O’Donnell, Morrison seria o roteirista e O’Donnell o desenhista – até onde sei, o projeto fracassou e só foi parcialmente publicado 7 anos depois (1987); escrevia novelas; tocava numa banda de rock; escrevia e desenhava em STARBLAZER da DC; e ainda produzia “Captain Clyde” pra Govan Press. Pelo visto o careca tava aceitando qualquer coisa pra sobreviver, e dando seus pulos, arriscando tudo que podia como no caso do “projeto Abraxas” no intuito de atrair atenção do público e sedimentar seu nome enquanto roteirista.

The Checkmate Man

É um dia claro e frio. Um barbudo que nos parece familiar, com chapéu longo e casaco, sai do hotel carregando uma caixa. Ele ouve um zumbido e olha na direção do som. Uma bala é cravada na sua cabeça e ele tomba, derrubando a caixa, fazendo papéis voarem. Foi assim que Marx foi assassinado por “The Checkmate Man”.

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O nome do cara é Lyall Conrad, ele era um técnico em eletrônica trabalhando na construção da Viking V (uma sonda espacial que seria usada para explorar Marte), quando acidentalmente caiu da plataforma de construção e ficou entre a vida e a morte. O cientista Marcos, da NASA, reconstrói o corpo de Conrad, o transformando em um cyborgue e o colocando a serviço da CIA num programa de viagem temporal. É assim que Lyall Conrad se torna um assassino temporal.

Sua função? Reconstruir a história, eliminando figuras centrais que ameaçam o governo americano. Se ele se recusar a cumprir a ordens, Marcos, o cientista que o reconstruiu, pode desativá-lo apertando um botão.

Marx, Lincoln, Mao-Tse-Tung, Bobby Kennedy, Marylin Monroe, todos assassinados. A II Guerra Mundial foi encerrada em 1945, aumentando o poder americano sobre o mundo. O caso Watergate foi mantido oculto, o que aumentou o poder da CIA sob a presidência. Tornando o governo mais poderoso do mundo numa marionete da CIA.

O interessante em “The Checkmate Man” é uma vontade que o Morrison tem de matar principalmente os comunistas, o que deixa latente o período de guerra fria da época, em que o que o governo americano mais temia era o terror vermelho, no entanto talvez também esteja apontando que o projeto de Morrison para um futuro melhor, não era exatamente o caminho das tradições de esquerda.

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Para além disso temos também um personagem que é obrigado a trabalhar modificando a história ou será morto. Cada viagem que ele faz ao passado, quando retorna ao “presente”, o mundo está diferente, então, afinal de contas, quem é ele? Não existe mais marxismo (nunca existiu), mas ele sabe do marxismo; não existem mais os Kennedys, mas ele lembra deles. Isso vai fazendo o personagem começar a pirar, porque ele se torna uma espécie de fantasma do tempo. Ele tem os resíduos do que não existe mais dentro de sua cabeça.

Ele perde a identidade, não tem um lar, já que cada viagem feita o mundo se modifica. Então porque ele continua viajando no tempo? Se ele não tem um lugar pra voltar, uma identidade, se nada do que ele gostou um dia existe mais, qual o sentido de manter sua vida a qualquer custo?

A idéia do plot na verdade não é lá muito genial, acho que uma criança de 12 anos pensa sobre esse tipo de coisas às vezes. No entanto é o desenho tem o melhor traço do Morrison na Near Myths, e ele usa um plot bem simples pra se fazer perguntas que vão ser sempre interessantes: se pudermos editar a história como se fosse um filme em que cortamos as partes que não gostamos, o que nós seriamos? Como seria o mundo? Qual seria a graça da vida? A imutabilidade do passado e a imprevisibilidade do futuro é o que parece mais interessante, e não o seu oposto, como a CIA deseja fazer em “The Checkmate men”.

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Anarquia nos Quadrinhos #2: O Caos Invisível

18 quinta-feira jun 2015

Posted by litatah in Anarquia, Anti Capitalismo, Anti Consumismo, Anti Fascismo, Anti Homofobia, Anti Machismo, Anti Misoginia, Anti Transfobia, Antirracismo, Arte e Entretenimento, Grant Morrison, Hakim Bey, Quadrinhos

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[Versão Sem Cortes do texto originalmente publicado no Farrazine #18]

Fonte: Nerdevils

King Mob coloca seu capacete/chapéu absurdamente estranho e estiloso – de origem desconhecida e mística – e parte para invadir uma instituição educacional que nada mais é do que um centro de doutrinações e lavagens cerebrais. Lá dentro está um adolescente problemático e desbocado que pode ser o integrante que faltava para o grupo secreto de KM cumprir seu objetivo de livrar o mundo de vilões transdimensionais que desejam o poder absoluto. Antes disso, King Mob invoca John Lennon para pedir uns conselhos, num dos momentos mais psicodélicos dos quadrinhos. No caminho, ele combate um ser que transfere sua consciência para insetos e abandona o Jovem Escolhido para ser iniciado pela sabedoria urbana… tudo fluindo numa velocidade insana.

Quando perguntado, em 1994, qual seria o tema de Os Invisíveis, Grant Morrison respondeu com um simples Tudo! Não é uma definição exagerada ou por demais pretensiosa, mas é unicamente o autor dizendo que não estava preso a amarras estéticas ou narrativas, que permitiu-se viajar sem medo da liberdade. E ele fez questão de realmente incluir tudo que passava na cabeça dele dentro da obra, um exemplo de pós-modernismo balanceado e acelerado, algo como um livro de Thomas Pynchon com quadrinhos. De forma bastante consciente, Os Invisíveis é uma espécie de tratado de Morrison sobre como ele imagina o mundo, recheado de metáforas e elementos metafísicos, além de ser carregado de religiões pouco convencionais. No intercurso de sua luta contra os Arcontes – os vilões da série -, a célula londrina dos Invisíveis viaja no tempo, convoca deuses aztecas, tem seus membros presos e torturados, troca idéia com loas do vodu… enfim, se furtam de todos os elementos a sua disposição para continuarem sua cruzada. Se não fosse o experimento da dúvida que Morrison suscitou ao dizer que a obra é uma mistura de experiências auto-biográficas com textos que ele recebeu de ETs quando foi abduzido em Katmandu, pode-se imaginar que se trata apenas de uma vasta maluquice caconarrativa intensa. Mas existe ali um método, uma forma de combate que muito aproxima a célula dos Invisíveis de teorias (anti)políticas modernas. Os Invisíveis são anti-heróis, da mesma forma que os anarquistas modernos são anti-políticos.

Por cerca de sete décadas o mundo político viu-se dividido entre duas correntes políticas que almejavam o poder total. De um lado o Capitalismo neoliberal e consumista e do outro a ditadura estratificada do Comunismo. Tal tipo de dicotomia naturalmente reduziu qualquer outra força política a quase nada, se valendo dessa briga dualista para suprimir qualquer tipo de pensamento político anti-tudo, uma forma natural de oposição, de um terceiro elemento de escolha anti-maniqueista. Se os EUA e a URSS tivessem dado as mãos, poderiam dominar o mundo por mais um século, provavelmente, mas a ânsia deles pela dominação total acabou numa guerra sem precedentes, sanguinária e multitrilionária – ainda que tenha entrado pra história com o rótulo de Fria. Após a explosão da União Soviética e do fim do Comunismo como experiência político-social válida, formas experimentais de organização puderam ser apreciadas. Essa realidade geopolítica do século XXI é um ambiente macrocaótico similar ao universo dos anarquistas de Os Invisíveis. Dentre os inúmeros ideólogos que desenvolveram qualquer sorte de teoria ou metodologia anarquista, um particularmente se alinha perfeitamente ao Tudo expresso por Morrison: Peter Lamborn Wilson, mais conhecido como Hakim Bey.

Hakim teve seus primeiros contatos com a filosofia anarquista por volta da década de 80, quando teve de sair às pressas do Irã após a explosão revolucionária islâmica. Hakim chegou ao Irã no início da década de 70, após conseguir um financiamento para estudar o Sufismo, a corrente mais mística e metafísica do Islã, que propõe um contato com Deus através de uma série de rituais extáticos e simbológicos – mais ou menos como a Kabbalah está para o Judaísmo. Nessa época, Bey tem contato com o desenvolvimento de René Guénon da teoria da Unidade Transcendente das Religiões, que defende que existe uma Verdade Metafísica Única, sendo as religiões apenas formas de linguagem para descrevê-la. Deus (um ser superior, exterior ou interior), o Homem (ser inferior ou em estado inferior), a Oração (método para se elevar o estado inferior do ser humano) e a Moralidade (código de conduta maleável) seriam pilares em comum de todas as religiões, embora Guénon encontre similaridades muito mais profundas até mesmo no antagonismo das religiões monoteístas do Ocidente e as mais livres do Oriente. Os estudos de Guénon e Frithjof Schuon, outro autor do que ficou conhecido como Filosofia Perene, apontam todas as religiões como possuidoras de correntes esotéricas, mais profundas, reflexivas e práticas; ao mesmo tempo que possui correntes mais dogmáticas, latentes e excessivamente formais. É possível encontrar muitas similaridades entre as três principais religiões abraâmicas – Judaísmo, Cristianismo e Islamismo -, ao mesmo tempo que é perfeitamente plausível liga-las com as primeiras tradições esotéricas gregas, formadas por Pitágoras, Platão e outros. Nos preceitos da corrente Sufista de Naqshbandiyyah, por exemplo, é possível encontrar diversas correlações com as técnicas do Yoga… Ter consciência da respiração, Viajar interiormente, O controle dos pensamentos, etc, que são compartilhadas inclusive pelas ordens mágicas mais conhecidas. Da mesma forma, encontram-se similaridades bastante marcantes entre as mais diversas mitologias do mundo, mesmo as desenvolvidas em paralelo; Deuses, trajetórias e formas de culto similares. Então, o Caos religioso, possuiria uma tênue linha de Ordem expressa e harmônica em suas instâncias mais superioras.

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Hakim Bey

Hakim Bey faz estudos similares na política, traçando paralelos entre os diferentes movimentos de levante e de dissidência social, o que muito contribuiu para o desenvolvimento das bases do Anarquismo Ontológico, que provavelmente fez Grant Morrison esboçar um sorriso quando o leu pela primeira vez. “O capitalismo, que afirma produzir a Ordem mediante a reprodução do desejo, de fato se origina na produção da escassez, e só pode reproduzir-se na insatisfação, na negação e na alienação. Enquanto o Espetáculo se desintegra (como um programa de Realidade Virtual que funciona mal) revela os ossos descarnados da Mercadoria. Como esses viajantes em transe dos contos da fada Irlandeses que visitam o Outro Mundo e parecem comer delícias sobrenaturais, nos despertamos em um remelento amanhecer com cinzas em nossas bocas“, escreveu ele em um dos seus vários panfletos anarquistas. Bey ficou especialmente famoso com seu ensaio inovador intitulado TAZ – Zonas Autônomas Temporárias, onde discorre sobre modos de organização e separação das sociedades constituídas, focando principalmente enclaves piratas caribenhos. Hakim argumenta que esses lugares, que funcionavam em separado dos grandes impérios do século XVIII eram experiências anarquistas válidas e livres, simplesmente optando pelo recuo e a fuga ante a chegada das autoridades. Para ele, não existe uma necessidade urgente de uma luta aberta e direta contra o Estado, mas sim investir em micro-territórios anarquistas, que teriam mobilidade e usariam técnicas alternativas de combate aos grandes vilões do mundo – ele amplificaria e mudaria esse pensamento em sua obra posterior, Millennium, dessa vez apostando numa guerra aberta e revolucionária que ele chamou de Jihad (deve-se anotar que esse livro foi escrito em 1996, antes do 11/9, além de observar as fortes ligações islâmicas dos estudos de Hakim Bey).

E é precisamente nesse método anarco-caótico que se encontram as principais similaridades de Os Invisíveis com a vasta teoria imediatista da Anarquia de Hakim Bey. Os integrantes da sociedade secreta da série se encontram inseridos numa realidade potencialmente paranóica, cheia de camadas e elementos distintos. Na luta contra um poderoso inimigo físico, metafísico e psíquico, os Invisíveis criaram fragmentações teóricas, religiosas e práticas como ferramentas de combate. Juntaram guerrilha com magia, armas com sigilização, e o resultado é potencialmente destrutivo. Bey propõe um modo de ação similar; não-global e carregado mais de instinto e ludismo, e menos de repressão e doutrinas revolucionárias. Seus métodos de ação contra os inimigos da Terra também são de caráter essencialmente alternativo e marginal, se apoiando num submundo de idéias que somente na cabeça de seres realmente malucos (como os Invisíveis) pode funcionar. Então, quando você ver King Mob se utilizando de vodu para destruir Sir Miles mentalmente, saiba que gente do lado de cá da realidade ensina magia negra islâmica como pesada Ação Revolucionária Espiritual. E do mesmo modo, os dois poderiam utilizar xamanismo, proclamar deuses hindus ou simplesmente meditar profundamente como os monges tibetanos… todas as religiões são ligadas em sua essência, e se conectam ao mesmo centro de poder.

Um exemplo de uso do que Hakim Bey denominou de Batalha Psicoespiritual ocorreu em 2002, quando a escritora Starhawk (que se denomina anarquista e bruxa) conclamou que todos wiccans para uma espécie “ação mágica conjunta” para sabotar os planos da reunião do G8, que aconteceria no Canadá naquele ano. Da mesma forma, todos os grupos anti-Estado, acham-se coletivamente conectados pelos mesmos princípios libertários, mesmo que em sua superfície pareçam estar em guerra. E esse pensamento não é só coisa de gente ligada ao Misticismo ou a Batalhas Políticas.  Niels Bohr e Werner Heisenberg são os físicos que bolaram a chamada Interpretação de Copenhague da Mecânica Quântica. Basicamente eles dizem ser possível – embora tenham declarado ser cientificamente complexo demais provar essa possibilidade – junções de idéias-fatos-ações fora do espaço-tempo através de ligações quânticas, conceito que entrou para a história com o nome dado pelo psicológico Carl Jung: Sincronicidade. Ou seja, duas pessoas, realizando atos e contemplando fatos completamente distintos podem estar se ajudando mesmo sem saberem – só ficando claro que esse é apenas um aspecto da teoria jungiana sobre eventos não-locais. Da mesma forma, dois teóricos podem estar se complementando (ou se refutando e com isso criando uma teoria ainda mais ampla) sem saberem, como existem vários casos documentos na ciência e na filosofia.

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Tom O’Bedlam, um dos personagens de Os Invisíveis… qualquer semelhança visual com Hakim Bey não é mera coincidência

Em seu texto Paleolitismo Psiquico & Alta Tecnologia, Hakim Bey dá mostras de como seria um cenário potencialmente liberto pela Anarquia Ontológica: um arremedo de cidade com espírito tribal, mas carregado de tecnologia, sob bases sociais inteiramente libertárias. Pode parecer uma punhetagem linguística extrema que na prática não diz quase nada, mas a descrição guarda muito do espírito lúdico e essencialmente festeiro de Bey, provavelmente herdeiro dos anos pesquisando os piratas e derivado das participações de encontros anarquistas especialmente movimentados. Na verdade, a base da Anarquia Ontológica é versar sobre métodos práticos de luta e recuo, e não sobre transformação social e revoltas populares. É um existencialismo que funciona de modo quase individual, não são necessários grandes grupos para realizar uma ação ontológica, muito pelo contrário. Da mesma forma que as células dos Invisíveis agem em grupos de cinco, e muitas vezes num nível de paranóia bem grande, não sabendo quem são seus próprios amigos ou inimigos, os grupos anarquistas que emergem do caos segundo a filosofia de Hakim têm métodos bastante parecidos, e se ajudam baseados em Sincronicidades não-locais.

Se olharmos o modo de organização dos Invisíveis, encontraremos um forte paralelo com dois grupos históricos descritos pro Hakim Bey: os Piratas e as Tongs. Os Piratas são um capítulo à parte, além de personagens de um outro texto que publicarei em breve, as Tongs Chinesas são organizações descritas como mafiosas, mas quando analisadas de modo profundo mostram-se como subEstados, dando ofícios e benefícios para a população onde o Estado não se mostrava eficiente. Eles por exemplo, tinham fundos previdenciários para trabalhadores informais e de aposentadoria para inválidos, dinheiro que tiravam de roubos e sonegações de impostos. As Tongs eram sociedades secretas organizadas de forma anarquista e descentralizada, embora praticamente todas as suas células trabalhavam por interesses comuns – diferentes da Máfia, que tirando a Omertà, não possuem leis de auxílio mútuo. Seus integrantes provavelmente não eram doutores em administração, mas inconscientemente pareciam entender que o crescimento hierárquico e vertical exacerbado das organizações termina por limitar sua eficácia operacional e aumenta a rigidez de suas ações, alcançando uma “contra-produtividade paradoxal”, para usar um termo de Ivan Ilich. Ao mergulharem em toda a sorte de atividades ilegais – sonegação de impostos, contrabando, segurança clandestina – as Tongs acharam por bem manterem-se ocultos até deles próprios, e o resultado é que muito poucos integrantes desses grupos conheciam alguma coisa além da célula que eles integravam. Mas, mesmo com essa aparente desorganização, as Tongs conseguiam trabalhar de forma integrada de modo bastante eficiente, como bem atesta a participação delas na queda da Dinastia Qing, em 1911, e os corredores de transporte de mercadorias contrabandeadas que elas organizaram. Uma Tong moderna utilizando os elementos religiosos-combativos descritos pelo Anarquismo Ontológico em meio a uma guerra no campo mítico é exatamente o que a obra de Grant Morrison descreve. O modo agnóstico com que Morrison e Bey lidam com o anarquismo, juntando campos não-necessariamente reais no sentido científico-materialista, torna o texto de ambos mais rico e abrangente – e mais difícil de refutar.

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Integrantes de uma Tong

Creio que todos sabem que a vitória da consolidação do Estado – o inimigo a ser combatido por todos os anarquistas ou seguidor de doutrinas humanistas – é muito mais psicológica do que necessariamente física. O Estado – assim como um chefe indígena – nasceu pra ser um servo do povo na mais perfeita acepção da palavra. Um xamã dos Yanomami – o mais próximo de um Estado que eles têm -, por exemplo, efetivamente precisa curar pessoas doentes e espantar maus espíritos. Caso a tribo decida que ele falhou em suas tarefas, o preço para o xamã é o exílio ou mesmo a morte. Em algum momento da história essa equação de subserviência se inverteu, e o Estado se tornou o Senhor do Povo, o vigilante se tornou que o vigiado, o segurança mais importante que o segurado. Não é mais o povo que decide se o Estado falhou, mas sim o próprio Estado. Ele, hoje, é capaz de mandar no povo que deveria mandar nele. O Estado se auto-regula, tem estruturas ocultas trabalhando para a consolidação dele próprio, e escancarou o Medo como fator que garantiu essa longevidade. O Estado e a Sociedade Urbana nasceram como uma forma de proteger o homem da insegurança do ambiente selvagem. Após esse Medo da força dos animais selvagens passar, a violência do Estado não se fez mais primordial, sendo necessária a inclusão de outras ameaças universais para que a violência se justificasse no ambiente da sociedade. Tais Medos são as Drogas, o Terrorismo, a Xenofobia, o Desemprego, a Crise Econômica ou qualquer outras coisa que peça medidas drásticas e acabam justificando a adoção de políticas que passam por cima de direitos individuais. Por outro lado, o Governo incentiva ferramentas hipnotizantes para mergulhar o povo em letargia, às vezes servindo como escapes catárticos do acúmulo de repressão empreendido pelo próprio Estado. É o famoso pão e circo, que atua como uma nuvem de poeira pra impedir que o povo – que em suma possui historicamente o poder – veja o que está ocorrendo de verdade. Mitos e Sistemas Religiosos também são largamente usados nessa tarefa praticamente mórbida e enganosa, apesar da constante afirmação de que os governos são laicos. E é nessa guerra psicológica que entram os métodos nada ortodoxos de Morrison e Bey, numa guerra secreta pela psique do povo.

Na descrição do segundo volume de Os Invisíveis é possível entender melhor a relação entre a ficção da série e a aterradora realidade descrita por Hakim Bey com uma linguagem por vezes bem floreada:

Duas forças opostas, inimigos mortais desde o Começo dos Tempos, estão fazendo preparativos para tirarem vantagem do final de tudo. Nos bastidores de todos os eventos dos livros de história, ELES têm trabalhado incansavelmente nas sombras, manipulando reis e imperadores, fomentando guerras, derrubando nações. De um lado os agentes do Controle Total, servos de entidades ultradimensionais conhecidas como os Arcontes, os Perdidos, os Esquecidos. Esses anti-seres assombram as esquinas dos nossos pesadelos, além do Tempo e Espaço, esperando pelo momento quando finalmente destruirão as paredes da realidade e dominarão nosso universo. Através de seus agentes terrenos, ELES já controlam o governo do mundo. ELES criam medo e discórdia. ELES sabem o que é melhor pra nós. ELES definem nossa realidade pela manipulação de linguagem e imagens. ELES exigem nossa obediência, nossa lealdade, e, no final, nossa completa escravidão.

E do outro lado estão os Invisíveis: uma antiga e secreta rede de lutadores da liberdade, dedicados a independência e evolução da humanidade. Alguns trabalham sozinhos – agentes paranóicos, mendigos esfarrapados pelas ruas das cidades. Outros ajudam a causa sem mesmo perceber – crianças rebeldes nas escolas, esposas revoltadas, trabalhadores que sabotam o estéril mecanismo de produção e consumo. E outros ainda, como King Mob e seu grupo, reúnem-se em células ativistas, usando ação direta contra as estruturas de poder da conspiração dos Arcontes. Anarquistas, feiticeiros, párias, terroristas ocultos, pessoas comuns nas fileiras da Batalha Final para decidir o destino da Alma da Humanidade. ELES se opõem à tirania e à ignorância. ELES se recusam a ser governados. ELES são a última esperança da humanidade no limiar do último e interminável pesadelo.

A contagem regressiva começou.

Mesmo que na visão de Hakim Bey e Grant Morrison exista uma ligação mental e ideológica no cerne de todos os movimentos anti-poder, naturalmente existem divergências entre eles. O maior opositor teórico de Bey é (ou foi, já que ele morreu em 2006) o anarco-socialista Murray Bookchin. Bookchin via o Anarquismo como uma expressão coletiva, uma forma de libertação comunitária e territorial. Sua rejeição a certas idéias consideradas anarquistas chegaram a tal nível que nos últimos anos da vida dele chegou a rejeitar o anarquismo em favor do que ele chamou comunalismo, ou socialismo libertário. Sua teoria basicamente mistura a descentralização territorial, organizando o povo em comunidades auto-gestoras, com uma ecologia libertária e livre dos dogmas baratos e mercantilistas que conhecemos hoje. As bases para alcançar isso seriam a fundação e o fortalecimento de organizações libertárias e comunitárias, que agiriam à parte do Estado, suprindo as necessidades populares e administradas de forma independente. Essa posição por uma forma organizada de luta comunitária e revolucionária – que vai contra certos padrões teóricos anarquistas da inserção de enclaves anarquistas dentro de Estados autoritários – lembra bastante uma máxima do antropólogo nigeriano Dr. Okere, que afirmou que “dentro de uma sociedade oriental as pessoas se sentem pertencentes a um todo, enquanto numa ocidental ela se sente individualista ao extremo”. De uma forma bastante generalista a definição corresponde de certa forma a verdade. Sem nos aprofundarmos nos conceitos e diferenças entre sociedades orientais e ocidentais, é possível dizer que a teoria individualista de Bey seria a ocidental, enquanto a comunalista de Bookchin seria a oriental. Seria irreal querer definir qual teoria é a correta, já que sociedades são diferentes e exigem métodos combativos diferentes, mas, sendo generalista novamente, o mais perto do ideal seria uma junção das duas teorias, já que todas as sociedades carecem de harmonia comunitária e de expressões individuais.

O principal erro de Bookchin em sua crítica à Anarquia Ontológica é não entender que muitas pessoas possuem ligações ideológicas independentes de barreiras essencialmente espúrias como o Espaço e o Tempo. Como Jung disse em sua teoria sobre Sincronicidade, existem conexões não-locais entre indivíduos e grupos de indivíduos fora de fronteiras espaço-temporais conhecidas. Elas podem ser carregadas do Inconsciente, ou simplesmente derivadas de vivências e experiências culturais. E eles teoricamente se ajudam, já que estão envolvidos em objetivos análogos, não necessitando de organizações constituídas e formais. O excesso de formalização na luta rebelde anti-Estado pode gerar uma rigidez que naturalmente tira a força e espontaneidade das bandeiras desse embate. Numa organização anárquica celular como os os Invisíveis – e as Tongs – esse tipo de risco praticamente não existe, já que a ligação mínima entre elas termina por ajudar até mesmo em sua longevidade, já que exclui a figura do chefe, da cabeça. Ademais, o Anarquismo Ontológico diz mais respeito à métodos de combate do que necessariamente a administração de uma sociedade liberta, como é o caso do Anarco-Socialismo de Bookchin. E, no fim das contas, ser inimigo teórico não quer dizer grandes coisas, já que Bey e Bookchin foram vistos várias vezes abraçados e cambaleando de bêbados pelas ruas de Nova York.

No final do século XX – em 1996, para ser mais específico -, Hakim Bey experimentou uma radicalização de sua teoria anarquista… da mesma forma que os Invisíveis se radicalizaram com a aceleração da luta deles contra os Arcontes, na reta final da obra. Provavelmente ele se tocou que os conceitos listados por ele – principalmente em seu livro Zona Autônoma Temporária e Ataque Oculto às Instituições – acabam por por se inserir na Sociedade que devia combater, sendo só mais um componente para o funcionamento dela. A coexistência pacífica entre Anarquismo e Estado é impossível, o Anarquismo declarado automaticamente se torna inimigo de todos os países do mundo, pois é um modelo de como uma sociedade pode funcionar sem Estado – os casos da Comuna de Paris e da Revolução Espanhola estão aí para mostrar isso. Ao invés dos grupos se situarem na TAZ, deveriam agora empreender uma batalha contra as instituições que sustentam o Estado, e principalmente nutrem o poderio financeiro dele. Entre os novos conceitos expostos por ele na sua obra Millennium se destacam a destruição do sustento financeiro social, através da exploração da natureza dos bancos como concorrentes parasitários do Estado; e também de mídias alternativas, que serviriam para diminuir o nível de hipnose em que vive a sociedade. Naturalmente que tanto Morrison quanto Hakim Bey têm filosofias e métodos um pouco parecidos com os do Coringa do filme O Cavaleiro das Trevas: “Sou um cachorro perseguindo carros. Eu não saberia o que fazer se alcançasse um“, embora as semelhanças entre os dois alcancem níveis bem mais profundos do que os descritos nesse breve artigo. O que eles querem é a destruição do Estado e das estruturas de poder… administrar as sobras dessa luta seria tarefa para gente ocupada como Bookchin.

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King Mob/Grant Morrison

Novidade? Não! Tanto Os Invisíveis quanto os escritos de Hakim Bey são o que se convencionou chamar de pós-modernos, costuras de inúmeras teorias e obras anteriores.Os Invisíveis é uma jornada do herói coletiva, carregada de psicologia e um conjunto poderoso das mais bizarras teorias da conspiração. Já Hakim Bey pode ser visto como um Charles Fourier moderno, que foi um pouco mais longe e jogou num explosivo caldeirão de urgência toda a sorte de métodos agressivos na eterna luta contra o Estado. Os dois são experimentalistas e não-conclusivos. Não querem criar um leão selvagem para matar um elefante cambaleante, mas sim soltar um bando de ratos violentos agindo em células.

Um elefante pode matar um leão, mas foge de medo de ratos!

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Anarquia nos Quadrinhos: A Máscara do Riso

18 quinta-feira jun 2015

Posted by litatah in Alan Moore, Anarquia, Anti Capitalismo, Anti Consumismo, Anti Fascismo, Anti Homofobia, Anti Machismo, Anti Misoginia, Anti Transfobia, Antirracismo, Arte e Entretenimento, Cinema, Quadrinhos

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“A anarquia ostenta duas faces. A de Destruidores e a de Criadores. Os Destruidores derrubam impérios, e com os destroços os Criadores erguem Mundos Melhores.” Alan Moore

[Texto publicado originalmente no Farrazine #17]

Fonte: Nerdevils

Londres queima, escreveu Alan Moore numa de suas melhores, mais importantes e mais conhecidas obras: V de Vingança. V foi uma reação natural, pessoal e artística de Moore ao momento político ultraneoliberalista e semi-fascista do governo de Margaret Thatcher, que ia para seu terceiro mandato. O próprio conceito visual de V é uma mostra da linha política que Moore queria transmitir com a revista. Seu símbolo, um “V” pichado sobre um círculo, só precisa ser invertido e receber mais um traço para se transformar numa representação visual da Anarquia. E do aspecto mais urgente de certas teorias anárquicas, aquele que passa por uma revolução popular anti-Estado de sacudir as bases de um país, ele tirou a inspiração para traçar o modus operandi de seu anti-herói mascarado. A Inglaterra distópica de V de Vingança é uma mostra de como o fascismo e todos os seus afluentes ideológicos ditatoriais são coisas que podem surgir de uma forma tão natural que parecem invisíveis.

Michael Haneke, em sua obra-prima A Fita Branca, e Dennis Gansel, em seu petardo cinematográfico A Onda, se puseram a investigar esse aspecto pouco discutido no mundo das artes: a origem do totalitarismo – simplesmente porque é muito mais cômodo fazer filmes com heróis combatendo líderes totalitários. Os dois filmes mostram de forma bem convincente como o totalitarismo possui raízes no próprio ser humano, e não somente em grupos específicos de pessoas. A Onda mostra uma experiência sociológica escolar que acaba resultando num microcosmo de ditadura assustadora. A mensagem é clara: existem os líderes, e existem as massas prontas para serem lideradas, sendo somente necessário alguma espécie de competição ou promessa, um ínfimo “direito de escolha”, que o caminho para o totalitarismo está aberto. A Fita Branca é muito mais sucinto e abrangente. Se A Onda é um tsunami, A Fita Branca é como uma maré subindo, lenta, mas aos poucos solapando tudo ao seu redor de modo irremediável. O filme mostra uma vila no interior da Alemanha, às vésperas da I Guerra Mundial, onde as raízes do nazismo parecem estar sendo construídas. E isso ocorre de forma tão “natural”, que ao final do filme o espectador se pergunta como as coisas chegaram até ali, e provavelmente assistirá novamente só para comprovar o brilhantismo do diretor ao organizar os eventos.

Se a política fosse um anel – o que, na verdade ela é, dependendo do ângulo em que é analisada – as teorias anárquicas de desestabilização social apresentadas em V de Vingança seriam o ponto de chegada de uma reta traçada à partir do ponto representando o totalitarismo. É o outro exato lado da moeda. V é taxativo, provocativo, e incita a rebeldia do mesmo modo que ver filmes militares incita a disciplina. A obra propõe que a Anarquia é parte integrante de muitos seres humanos, só precisando de certo estímulo, um pavio no sentido de jogá-los na direção certa. A Anarquia não nasceu da elite, da intelectualidade, não nasceu de teorias de gente que sentava a bunda em caros cafés europeus – embora pessoas assim tenham organizado as ideias inerentes a ela.

Implicitamente, V de Vingança parece teorizar que dois dos maiores antagonistas ideológicos – o Fascismo da Ordem, e o Anarquismo da Rebeldia – existem graças aos mesmos estímulos na população, e se baseiam nas mesmas formas de doutrinação, somente em seus resultados é que estão suas diferenças. Isso fica mais ou menos claro quando a vontade de se libertar surgida no povo só começa a ser externada quando V leva adiante sua vingança pessoal. Mas a estrutura narrativa de V de Vingança logo trata de desmistificar essa ilusão aparente. Somos praticamente colocados na pele da aprendiz de V, Evey, e, aos poucos, aprendendo os métodos dele. É um modo interessante de lidar com a questão de construção de idéias e de sermos apresentados a revolução pessoal do sem-rosto V. As personalidades distintas de V e de sua herdeira sintetizam com perfeição as duas faces da anarquia que Alan Moore teorizou no decorrer da obra. Então, mesmo parecendo que o Fascismo e o Anarquismo começam a tomar força na população através dos mesmos estímulos, olhando com mais atenção se percebe que, mesmo nesse aspecto, eles se comportam de forma dicotômica. A Anarquia é como uma árvore crescendo e fortalecendo suas raízes na terra. É tudo feito de dentro pra fora, à partir de um centro – no caso da obra: as ações de V. O Fascismo é justamente o inverso. É como um cerco se fechando, uma armadilha de urso dilacerando uma perna, se espalhando pelo medo e se impondo como uma solução sem dar tempo para ninguém pensar. O Fascismo é a maquinação de um pequeno grupo que acha ser a salvação de alguma coisa. Esse grupo geralmente só precisa de um gatilho para tomar o poder. No nazismo foi o Tratado de Versalhes, no caso de George Bush e sua Lei Patriótica foram os atentados de 11/9, e no caso da Londres governada por Sutler foi uma grande explosão nuclear – Moore, posteriormente disse que foi até ingênuo na construção dessa motivação, ao imaginar que seria necessária uma explosão nuclear como um gatilho para empurrar a Inglaterra na direção do Fascismo.

Após o final destrutivo, em que V completa o que Guy Fawkes não conseguiu, fica a pergunta: tá, a parte destrutiva é fácil, mas o que Evey fará para ajudar reconstruir a Inglaterra após a queda do Fascismo? Como será o governo? Alan Moore, na segunda edição de seu fanzine undeground Dodgem Logic, dá uma mostra de como deveria ser o trabalho dos Criadores após o serviço dos Destruidores estar completo. Em entrevista a edição de literatura da revista Vice, Moore também exemplifica e traça uma forma de como as coisas podem funcionar numa sociedade funcionando nos moldes anárquicos.

“Uma das coisas para a qual eu estarei voltando minha atenção é o princípio da loteria ateniense. Isso basicamente dita que uma questão que precisa ser resolvida em nível nacional ou administrativo, você aponta um júri por loteria. Eles podem vir de qualquer lugar de dentro da cultura e são escolhidos de maneira completamente aleatória. Os prós e os contras do caso são então apresentados para o júri, eles ouvem, debatem e votam. Após a decisão, eles não fazem mais parte do júri. Eles voltam à sociedade, e para a próxima questão outro júri é escolhido. O sistema parece, para mim, se aproximar de algo como a democracia, que é algo que nós não temos nesse momento. (…) Mudando para algo próximo disso, iríamos criar um sistema livre dos muitos abusos do nosso modelo atual de governo. É bem difícil comprar o apoio do povo se você não sabe quem são as pessoas que você deveria estar amaciando. Também seria difícil para o corpo dominante temporário agir em interesse próprio, já que faria mais sentido para eles agirem no interesse da sociedade para a qual eles estariam retornando.”

Com certeza essa teorização complementar ao atos de V não caberiam na obra, mas Moore tratou de deixar claro que Evey seria justamente esse elo construtivo que muitos não enxergam na Anarquia, e a simplificam unicamente como uma ideologia punk que pode ser resumida na frase: Não sei do que sou a favor, mas sei do que sou contra. O irônico – e que de certa forma confirma minha teoria que coloca os quadrinhos como a arte pop mais vanguardista e experimental de todas – é que todos esses conceitos foram mastigados quando os Irmãos Wachowski resolveram levar V de Vingança para os cinemas. Apesar de passar longe de ser uma destruição do original – como foi Do Inferno e A Liga Extraordinária, dois exemplos de como detonar uma obra em quadrinhos – o filme trata de amortizar certos conceitos apresentados na revista, principalmente em seu final, que chega a finar descaracterizado graças àquela distribuição de máscaras.

No entanto – o que talvez seja a pior característica do filme – houve um certo hype exacerbado e uma movimentação no sentido de se vender a anarquia como um produto após o filme. Creio que o maior exemplo nesse sentido pode ser visto no site da Amazon, onde podia-se ver a seguinte descrição do produto Máscara de V de Vingança: “Vá em frente e sorria para a câmera. Divirta todos que você encontrar com essa máscara do V de vingança. A máscara é exatamente igual àquela usada por V no filme de ação (…) A máscara é feita de plástico e vem num tamanho padrão. (…) A máscara tem um bigode e um cavanhaque que lembra o histórico Guy Fawkes. Vá em frente, use essa máscara e lidere a revolução, mas, por favor, não acabe na cadeia. As pessoas não deveriam temer seus governos. (…) Imagine-se numa distopia, onde o governo controla cada movimento seu. Toda esperança estava perdida, no entanto uma pessoa, um homem, ousou se levantar e liderar uma revolução inteira sozinho. Seu nome era V, sempre se lembre, lembre-se do cinco de novembro!” Nada pode ser mais destrutivo para a Anarquia quanto servir de produto para o meio capitalista fazer dinheiro, além de servir de meio de consumo para as massas… Isso não aconteceria se a obra ficasse somente nos quadrinhos, que se constituem um fórum muito mais apropriado para a discussão de idéias tão complexas!

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Cinema e Anarquia: Vigo, vulgo Almereyda (2ª parte)

17 quarta-feira jun 2015

Posted by litatah in Anarquia, Arte e Entretenimento, Cinema, História, Internacional anarquista

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Jean Vigo

Nas mãos inventivas de Jean Vigo, o cinema libertário avança ao tratar o autoritarismo e a opressão com sutileza poética. Por Rafael Morato Zanatto.

Fonte: Passa Palavra

Jean Vigo

Após o assassinato de Almereyda, a vida de Jean Vigo mudou radicalmente. Ficou sobre os cuidados de Garbiel Aubès, padrasto de Almereyda e fotógrafo na cidade francesa de Montpellier. Inicialmente estudou no colégio de Nîmes com um nome falso, para não levantar suspeitas, e depois passou a estudar no colégio Millau, período em que escreveu um diário no qual apontam posições anticlericais e antimilitaristas. De lá, mudou-se para Chartres, sendo depois de algum tempo aceito na Faculdade de Letras de Paris (1923).

Paulo Emílio comenta que foi nessa época que passou a se interessar por cinema e que passou a frequentar os antigos amigos de seu pai, pessoas que o apoiavam moralmente. Vigo cultuava a memória de Almereyda e pensava em reabilitá-la. Embora tenha pensado em adaptar a vida de seu pai para o cinema, foi demovido da ideia por companheiros de Almereyda como Fernand Desprès, Gabriel Aubès e Francis Jourdain.

Nessa época, lê e conhece importantes teóricos do cinema como Jean Epstein e León Moussinac. Já era tarde para ignorar que havia sido contaminado pelo cinema e decide se mudar de Paris para fixar residência em Nice, a segunda capital francesa de cinema, e com um clima mais adequado ao tratamento de sua tuberculose. Após seu casamento em 1927 com Lydou, elabora seu primeiro filme em parceria com Boris Kauffman, irmão de Dziga Vertov, o inventor do cinema olho e diretor do filme O Homem com a Câmera. Paulo Emílio considera ser À Propôs de Nice (A Propósito de Nice) o documentário social em que a revolta toma o caminho da mais pura poesia. Não conformismo e irreverência absoluta compõe esse panfleto visual, onde Vigo denuncia um sistema social com duas velocidades, servindo-se de imagens-choque, aproximações ousadas e insólitas que se sucedem por meio de uma montagem transversal durante a totalidade do média metragem. “Vigo vai de plano em plano, alternando, por exemplo, a imagem de um burguês seguida de um monte de lixo, ou a do carnaval seguida por um fotograma de um menino leproso.”

A propósito de Nice acusa uma riqueza obscena, que se transveste uma vez por ano para esconder a pobreza cotidiana daqueles que não têm direito à festa. Paulo Emílio nos lembra de que o filme evoca um filme do Cinema do Povo, que Jean Vigo viu na infância com seu pai: Inverno, Prazer dos Ricos, Sofrimento dos Pobres, realizado no mesmo molde dos planos alternados. “Nasce o discurso implícito. Enquanto que o Cinema do Povo opõe ricos e pobres numa mesma unidade temporal (inverno), Vigo os opõe numa mesma unidade espacial (Nice)”.

Sobre o filme de Vigo, Paulo Emílio comenta que o cineasta primeiramente desvela, para depois escarnecer a ociosidade circundante que toma as calçadas de Nice e que dissimula a miséria social. Pouco a pouco o filme faz a burguesia declinar em direção à morte e ao cemitério, revelando assim o fundo mórbido do capitalismo.

Em 14 de junho de 1930, ao comentar seu filme em uma sessão, Vigo apresenta suas teses sobre o cinema. Para Vigo, o cinema deveria se voltar para o social, com a tarefa de despertar outros ecos e não somente os arrotos dos burgueses. “O objetivo do documentário social será alcançado se conseguirmos revelar a razão escondida de um gesto, a ser captado de uma pessoa comum e ao acaso de sua beleza interior ou de sua caricatura. Assim, conseguiremos revelar o espírito de uma coletividade a partir de manifestações puramente físicas. Um documentário social que revele o que se esconde por trás das aparências.” Estava claro para Jean Vigo que o cinema poderia ser uma ferramenta importante para a emancipação social.

Após o lançamento do filme, o cineasta se dedica a escrever um roteiro, que é rejeitado por uma produtora de Nice, o que o faz retornar a Paris, onde conhece um produtor arrojado, Jacques-Louis Nounez, para quem escreve e entrega o roteiro de Zéro de Conduite (Zero em Comportamento).

Zero em comportamento

O argumento de Zero em Comportamento retrata o fim das férias de verão e o retorno de alguns garotos ao colégio, um lugar sem alegria onde os professores lhes infligem severas punições e os privam de liberdade e criatividade. Quatro garotos entre eles, punidos com um zero em comportamento, decidem se rebelar com a cumplicidade de um novo inspetor, mais próximo da mentalidade dos garotos do que os outros adultos. A figura de poder é o diretor do colégio, um anão autoritário que tem sob seu comando um professor ensebado e um bedel que os garotos apelidaram de Pète-Sec, o mandão. Esse é mote do filme de Jean Vigo.

Neste filme, transparecem as lembranças dolorosas do filho de Almereyda. Os anos difíceis após a morte de seu pai influenciam diretamente suas opções. Eram memórias de um jovem que crescia e se inteirava das ideias libertárias através da memória de seu pai. Para Vigo, estava claro que era preciso se confrontar com a rejeição dos estabelecimentos escolares, que não podiam tolerar o filho de um anarquista com passado tão sombrio.

As encenações dos rituais cívicos e religiosos complementavam a formação de cidadãos civilizados, capazes de obedecer às leis da nação e de respeitar a autoridade dos chefes, que estava no centro da política pedagógica da escola. No filme, o internato faz de tudo para evitar qualquer revolta. Vigo coloca essa contestação em um colégio, mas a violência que ele manifesta contra os representantes da ordem supera a simples crítica da educação: ela se refere a toda à sociedade, abolindo simbolicamente as formas de autoridade. Para Paulo Emílio, a censura da época não se enganou em ver no filme mais do que um discurso sobre a infância desperdiçada.

Na composição do argumento, Vigo cria os personagens adultos partindo da ótica de um garoto rebelde que, uma vez crescido, tirava a sua desforra por meio da sátira, recolhendo em sua biografia alguns tiques dos guardas da Petite Roquete nos tempos de Almereyda. Tais elementos são dispostos para recriar o inspetor-chefe, principalmente o hábito de simular uma saída e voltar de repente, flagrando o prisioneiro ou o escolar. Tudo estava pronto, e logo o jovem cineasta estava com a equipe reunida, de três atores profissionais, um do círculo anarquista de teatro, velhos amigos, um anão e alguns escolares, muita gente da rua.

Temos como exemplo Caussat, personagem interpretado pelo jovem arruaceiro Louis Lefèvre, o terror de todo o bairro onde Vigo morava; e o sindico de seu prédio foi o Sr. Blanchar, o inspetor chefe. Jean Dasté, do teatro libertário, participou do filme no clima de amizade, interpretando Hughet, o inspetor camarada, assim como Pierre Merle, seu amigo de infância. Apenas três atores pagos, como Robert le Flon, no papel de inspetor Parrain, Larive, no papel do professor gordo e nojento, e o anão Delphin, para o papel de diretor do colégio. Com a equipe formada, ocupam um estúdio da Gaumont para preparar o cenário e rodar as cenas internas, como a do dormitório, da sala de química, de estudos e do refeitório do colégio, que teve seu exterior retratado pela locação no pátio do colégio Saint-Cloud, onde Jean Vigo estudou. Fechando a equipe, Jean Vigo convidou o músico de cinema Maurice Jaubert para compor a trilha sonora, a que mais adiante nos ateremos.

Comecemos pela abertura. Paulo Emílio nos aponta que Vigo recria três procedimentos. Funda uma realidade modesta e bem cuidada, ao filmar a cabine da terceira classe, com os colegiais de uniforme surrado e pernas magras, para depois terminar na fantasia de uma atmosfera enevoada, passando pelo esquisito, ao pensar os objetos e brincadeiras de crianças.

Com a chegada do trem, vemos na plataforma o novato Tabard, acompanhado da silhueta de sua mãe, Colin, o filho da cozinheira e os outros meninos. Pète-Sec, em pé e simbolizando autoridade diante dos garotos, acolhe friamente o jovem e sorridente Hughet, o novo inspetor e seu subalterno. Até então tudo é implícito, o que se transforma de súbito com a aparição do diretor, o anão. Paulo Emílio reservou a impressão que um menino está brincando de satirizar um adulto, usando suas roupas e cobrindo-se com uma barba imensa. No passeio de Hughet e dos meninos, vemos a divisão da sequência em dois pontos, um poético e um cômico. O primeiro começa quando Huguet encontra a bela moça e a cumprimenta graciosamente com seu chapéu, sendo imitado pelos garotos que a saúdam coletivamente, com a mesma cortesia. Podemos ver também uma demonstração de que gestos amáveis, quando espontâneos, superam a receita disciplinar dentro dos muros da escola. A cena parece evocar a rua como espaço pedagógico. O poético se encerra para dar lugar ao fato cômico, que tem início na acelerada fuga de Hughet, tendo em seu encalço o cortejo de escolares, que flerta com outra esfera quando, na esquina de uma rua, confunde-se ao avistar uma saia que pensava ser de uma formosa garota. Em lugar de suas projeções, está um padre, investido de toda a autoridade que a batina representa. A reação de Hughet nos desperta o sorriso.

Ao desabar da chuva, o passeio retorna desordenadamente ao colégio. Tabard e Bruel se abrigam sobre a mesma capa, para desaprovação do inspetor-chefe, temeroso de que a amizade está se tornando excessiva. Tabard é convocado à sala do diretor, que lhe fala sobre a amizade excessiva entre os garotos. A câmera faz um travelling semicircular em volta de Tabard, que não entende direito e se sente tomado de vergonha, abaixa sua cabeça e fica encolhido em sua poltrona. O menino é esmagado pelas suposições maliciosas de um anão autoritário, que no fim de seu desempenho salta de sua poltrona como um boneco de molas, gritando dramaticamente: vá saber.

Humilhado e cheio de raiva, Tabard retorna à sala de estudos e senta-se longe de Bruel, que pergunta o que está acontecendo. O jovem apenas quer se afastar não por temer o amigo, mas com medo da repreensão da escola. Tabard é levado ao limite quando o professor Bec-de-gas repousa sua mão ensebada e maliciosa sobre a sua. Tabard reage e se desvencilha, desencadeando uma situação onde o professor tenta conciliar em tom ameaçador, o que faz Tabard passar por cima das regras ao dizer: merda. Considerando o histórico de Tabard, diferente do de Causset, Colin e Bruel, habitués das suspensões, ao garoto é dada a chance de se desculpar em público, diante do conselho disciplinar e de toda a sala, fazendo do espetáculo de humilhação pública um exemplo para os outros alunos.

Segundo Paulo Emílio, diante da situação, Huguet pega seu chapéu e se dirige à porta, para não presenciar a humilhação, quando Tabard reitera a revolta e repete o xingamento, ultrapassando as regras opressivas em benefício da liberdade. Pensamos o contrário quando nos detemos na composição formal da sequência. Notamos que Hughet está à esquerda da imagem, em posição mais alta do que os outros inspetores sobre o tablado onde repousa a mesa. À direita, vemos Tabard em pé, de cabeça baixa, a ouvir a proposta do diretor. Mesmo com a cabeça baixa, o aluno é mais alto do que o anão. Tanto Tabard como Hughet são as molduras do espetáculo, e sua dignidade os põe acima dos verdugos da administração escolar. Pressionado, Tabard está em vias de se pronunciar, quando Huguet não desce de sua posição para fugir, mas para se solidarizar com o garoto, aproximando-se do diretor e encarando o aluno, transmitindo-lhe força. A réplica do aluno destrói qualquer tentativa de reeducação de Tabard, voltado agora para o lado da revolta. O complô vai se formando e Tabard é incluído no plano de insurreição contra a disciplina do colégio.

Ao observar as cenas, nos fica evidente que, para Vigo, o ensino deve ser o lugar da formação da personalidade livre, concepção reforçada pelo personagem Huguet, que consola o espírito vindicativo dos garotos. Com ações diferentes das dos outros adultos, ele distrai e diverte os meninos, imitando Carlitos e injetando doses de liberdade, que se expressa a sequência de desenhos, que, quando postos em movimento, transformam o inspetor Parrain em Napoleão Bonaparte. Podemos considerá-lo como o gerador da subversão, que cuida das almas sensíveis dos garotos maltratados. É assim que se faz de morto nas primeiras cenas no trem e depois durante todo o filme, deixando os alunos livres para se expressarem e fechando os olhos para a elaboração de futuros projetos de fuga e de fatos corriqueiros do cotidiano. É descrito como um cúmplice passivo e benevolente.

Diante de Hughet, as autoridades do colégio são repressoras, enquanto os garotos tentam se desenvolver em um meio semicarcerário, que evoca a prisão de Almereyda. Dois garotos se destacam no grupo: Colin, o garoto sensível e individualista, e Tabard, o grande agitador coletivista. À disciplina obrigatória, à escola que prepara para o exército, Vigo opõe a sublevação dos garotos, interessados em se livrar da autoridade. Eles fabricam uma bandeira negra e acrescentam uma caveira e dois ossos, lembrando ao mesmo tempo os piratas e a bandeira de Makhno. Huguet sorri para a iniciativa e continua suas acrobacias na sala de estudo, igual a seus desenhos que, após serem traçados no papel, ganham vida.

Para Paulo Emílio, Zero em Comportamento formula uma crítica virulenta a uma sociedade fundada na lei do mais forte. Vigo espeta todas as baixezas e a hipocrisia de um sistema, denuncia o zelo dos subalternos, a confiança dos pequenos chefes satisfeitos pelo poder de sua autoridade. Exaltando bordões como Abaixo os bedéis, Liberdade ou morte e Viva a revolta, os garotos dão início ao levante contra a autoridade dos adultos, libertando o espaço escolar pela insurreição.

Para assentar essa mudança e dar corpo à revolução, Isabelle Marinone observou que Jean Vigo ilustra simbolicamente a destruição de cada instituição. Começa pela Igreja, apresentando uma falsa procissão irônica nos dormitórios. Filmada em câmera lenta, a cerimônia se encerra na transformação do inspetor de quarto que dorme em um santo cristão, com uma cama invertida verticalmente e um lampião entre os braços. Vemos também que com o ápice do levante nos dormitórios, as plumas que voam ao redor dos garotos parecem cair de seus corpos — estão eles livres das amarras da autoridade? É o que nos parece ao vislumbrarmos o início da procissão, que em câmera lenta retrata um salto mortal de um garoto, que em seguida é carregado em uma cadeira. O salto e as plumas expressam a inversão dos valores, uma guinada em direção aos princípios libertários. Na sequencia da quermesse, Vigo continua a sátira, reduzindo a nada as autoridades do exército, da escola-caserna, da Igreja e do Estado. A organização da festa oficial da escola parece grotesca, a música lenta com clarins pomposos aumenta o aspecto ridículo. A câmera acompanha de longe os dirigentes, principalmente o prefeito de polícia e o diretor da escola, sentados em bancos apropriados.

Alguns alunos passam por eles e distribuem buquês de flores que se assemelham a coroas mortuárias. Os representantes da ordem estão na primeira linha, no mesmo nível dos bonecos atrás deles: marionetes, títeres – as autoridades não valem mais do que bonecos de pano. Vigo insiste no plano fixo. Em seguida, a câmera volta-se para Huguet, sozinho no meio da corte. Contente pela subversão da festa e o bombardeio contra as figuras oficiais, ele saúda os alunos. Entre os alunos do pátio, um agita insistentemente a bandeira da França. Um dos garotos atira a bandeira pirata do telhado para a turba enfurecida. Isso basta para que o garoto atire a bandeira da França ao chão, para em seguida empunhar a bandeira da revolta, seguido pelos garotos à sua volta. Aí está expressa a crítica ao nacionalismo e seus desdobramentos, como o patriotismo, obstáculos a serem demolidos pelo ideal libertário.Os quatro rebeldes pulam até o cume do telhado, saltando por cima da escola da moral, que tem como fundamento formar um caráter médio, que esmaga o espírito e o preenche de impotência, de convicção sobre o seu não valor. E se eles não se revoltam, estão condenados ao conformismo, o mesmo que a morte.

Paulo Emílio vê no filme dois universos: o dos meninos e do povo, e um outro dos adultos, dos burgueses. Essa divisão corresponde à divisão da sociedade em classes: uma minoria forte que impõe sua autoridade, e uma maioria fraca. A associação das crianças e do bedel Huguet, de um lado, e das pessoas do povo, como a cozinheira e o garçom do café, de outro, não se dá através da ação, e sim pelo mesmo estilo realista com que são apresentados, em oposição à acentuada estilização dos adultos que representam a autoridade.

No campo estético, os movimentos de câmera ocorrem em torno de seu próprio eixo ou com travellings e compõem a densidade dramática dos episódios. O filme é montado através da justaposição de episódios, que têm entre si certa unidade de intenção e de lugar, mas quase nenhuma ação. Para Paulo Emílio, trata-se de uma sucessão de momentos que vai se ordenando em um tom corrosivo, o que o torna essencial por sua poesia, pois no filme estamos distantes de qualquer ritmo, crescendo paralelamente a festa e a insubordinação dos garotos. A unidade profunda do filme, obtida na montagem mediante o sacrifício da clareza ao estilo, encontra-se integrada pela trilha de Jaubert. No filme, podemos ver um clima moral oriundo de um sentimento de revolta, posicionado antes do que um senso social realmente profundo, que possa perfeitamente significar uma acusação de anarquia claramente estabelecida.

O importante papel da trilha sonora de Maurice Jaubert na unidade do filme se deve ao procedimento que adota, ao buscar na música uma percepção interior e desencarnada, combinadas as preocupações sociais ligadas à estética. O cinema sonoro foi para ele um campo ideal de atuação. Em Zero em Comportamento, pensamos que Jaubert foi capaz de preparar psicologicamente o espectador. Sua música não constitui um mero acompanhamento do filme, ela está incorporada à ação. Segundo Paulo Emílio, a partitura de Jaubert foi um grande sucesso, que, pela recorrência de um competente trabalho, foi consagrado por alguns críticos como o melhor músico de filmes da época.

O filme de Jean Vigo despertou grande interesse dos cineclubes, mas foi censurado em agosto de 1933, após o protesto dos pais de famílias organizados, que taxaram o filme de antifrancês. A situação na França permaneceria a mesma até 1944, quando foi finalmente liberada. O mesmo não ocorreu na Bélgica, onde o filme pôde ser visto sem restrições. Há quem remeta a censura do filme mais à perseguição ao filho de Almereyda do que ao filme propriamente dito. Certamente a história de Almereyda pesou sobre o filme, mas, segundo Marcel Martin, a censura foi sem dúvida ideológica:

“Alguns fazem cara feia, e declaram nulas suas revoltas infantis, consideram com complacência essa anarquia juvenil. Reveja A Propósito de Nice e Zero em Comportamento. As mesmas bastilhas ainda devem ser derrubadas: o fanatismo, a ignorância, o ridículo, a violência, a tolice? Os padres, os militares, os policiais e os bedéis não continuam a fazer a lei de maneira mais científica e impiedosa do que no tempo de Vigo? Como não escutar o irmão desse destruidor de tabus, desse destruidor de preconceitos, vibrando com uma sensibilidade de esfolado vivo e que não esqueceu a lição de seu pai, o anarquista morto na prisão, o militante da produção humana e da justiça social. Sua revolta não tem nada da raiva da criança corrompida ou da agitação de um jovem burguês em crise de puberdade. Quando ele escarnece ferozmente o odioso e a feiura, não é aquele que pisoteia seus brinquedos ou o que grita Famílias, eu vos detesto. Ele fornece acusações precisas e eficazes, e sua revolta desemboca em uma visão revolucionária.”

Um brinde

O encontro entre e anarquia e o cinema, entre técnica e ideologia permitiu a representação das ideias libertárias fundadas no modo de vida operário, que, sob o cinema, significou o nascimento de uma expressão cultural específica, aplicada à revolução social. Transformaram a máquina que até então alimentava a representação de um mundo burguês em um instrumento educativo, fundamental para o cumprimento do objetivo principal de sua atividade cultural: oferecer um contraponto ao projeto sociocultural burguês. Retiraram o cinema dos vaudevilles, que a seus olhos eram espaços de divertimento frívolo, onde os trabalhadores desperdiçavam suas energias vitais. Superaram o trauma que o equipamento proporcionou quando inaugurou um novo método de aprisionar os militantes, ou mesmo quando se viram representados enquanto bandidos, terroristas, fabricantes de bombas. Através do cinema, puderam ampliar o alcance de suas ideias, produzindo cultura cinematográfica sob o ponto de vista libertário. Sob a anarquia, o cinema enriqueceu-se pela incorporação em sua história de temáticas sociais, mais próximas da realidade e mais urgentes para as questões sociais do que os famosos melodramas e seus insuportáveis happy ends. O cinema virou arma, registrou massacres, batalhas de rua, levantou bandeiras e divulgou campanhas, tudo a serviço da revolução. Nas mãos inventivas de Jean Vigo, o cinema libertário avança ao tratar o autoritarismo e a opressão com sutileza poética. Deste encontro, por muitas vezes atribulado, temos a invenção de uma estética revolucionária, capaz de se contrapor às propagandas de um mundo injusto e opressivo, adversários a serem desmascarados pela difusão da cultura libertária.

Obras de referência

Jean Vigo, de Paulo Emílio Salles Gomes.
Vigo, vulgo Almereyda, de Paulo Emílio Salles Gomes.
Anarquismo e Cinema, em Crítica de cinema no Suplemento Literário, de Paulo Emílio Salles Gomes.
Cinema e Anarquia: Uma história “obscura” do cinema na França (1895-1935), de Isabelle Marinone.
Le Jour se lève et le réalisme poétique de Marcel Carné, de André Bazin.

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Cinema e Anarquia: Vigo, vulgo Almereyda (1ª parte)

17 quarta-feira jun 2015

Posted by litatah in Anarquia, Arte e Entretenimento, Cinema

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O cinema foi se infiltrando nos círculos anarquistas, que, após o repúdio inicial, perceberam que o domínio de suas competências poderia ser de grande utilidade na propaganda das ideias libertárias. Por Rafael Morato Zanatto

Fonte: Passa Palavra

Anarquismo e Cinema

Como tema da palestra ministrada na Cinemateca de Santos, organizada pelo Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri, a reflexão sobre a relação entre o cinema e a anarquia nos demonstrou que os anarquistas franceses não viram a evidência dessa expressão sem desconfiança ou mesmo repulsa. Até 1908, jornais anarquistas como Le Libertaire não levavam a sério o cinematógrafo, ao contrário do que acontecia com o teatro, sempre comentado em suas páginas. Era a época da efervescência dos teatros sociais, que examinaremos um passo adiante. A grande maioria das produções cinematográficas não chamava a atenção dos anarquistas e nem dos operários militantes e os espetáculos de vaudeville eram vistos por eles com reservas. Um comentário de Fernand Pelloutier, em 30/05/1896, ajuda-nos a compreender a percepção dos anarquistas sobre o cinema:

“Deprimido durante o dia pelo seu trabalho e abatido pelo álcool durante a noite e pelos espetáculos vulgares, a multidão não tem tempo nem liberdade de espírito necessários para refletir sobre o seu destino, e daí vemos a indiferença, a fraqueza com as quais o povo sofre as maiores injustiças. Recebida a humilhação, ele a limpa com absinto; a incerteza do amanhã, ele a esquece no café-concerto; a virilidade das revoltas, ele a leva para o bordel.”

A maior parte dos anarquistas via o cinema como servo, cúmplice da sociedade burguesa, ávida por entreter e distrair os oprimidos de seus objetivos principais: a liberdade e a abolição da exploração do homem pelo homem.

Em 1911, Émile Guichard identificou minuciosamente o conteúdo ideológico burguês nos filmes. Para ele, nada era mais repugnante do que as cenas que se desenrolam aos olhos do público. O patriotismo e o respeito às leis, assim como todas as virtudes burguesas, estavam ali exaltados. Os filmes mostravam ao público bravos soldados em missões sanguinárias, que retornavam ao país cheios de condecorações, saudados como heróis, enquanto que os operários que se revoltavam contra as injustiças eram representados como terroristas fabricantes de bombas ou grevistas apáticos, embriagados e coordenados como ovelhas pelos dirigentes do movimento operário.

Como se não bastasse o conteúdo ideológico burguês nos filmes, o cinema foi usado largamente para identificar suspeitos de subversão e os perseguir, encarcerar e os destruir, tentando impedi-los de disseminar suas ideias. Essa prática teve início após a Comuna de Paris (1871), em que os arquivos fotográficos serviram para delatar os participantes do movimento, encaminhados por vezes para a guilhotina ou para a prisão.

Em 1910, com a projeção lenta das películas, quadro a quadro, muitos militantes foram mandados para cadeia. O cinema não apenas servia como testemunha, mas como delator, e os operadores passavam a ser vistos como auxiliares da polícia. Restava aos anarquistas preveni-los de que eles deveriam se abster rigorosamente de exercer seu trabalho durante o desenrolar das manifestações, pois não poderiam responder pela segurança dos operadores ou de seus equipamentos.

Apesar disso, o cinema foi se infiltrando nos círculos anarquistas, que, após o repúdio inicial, perceberam que o domínio de suas competências poderia ser de grande utilidade na propaganda das ideias libertárias, assim como seu potencial educativo. A partir de 1908, os anarquistas começam a realizar algumas projeções, acompanhadas sempre de conferências que tocavam temas como o alcoolismo e o antimilitarismo, nas Universidades Populares e nas Bolsas de Trabalho.

Para os anarquistas, a educação deveria visar, sobretudo, a transformação da criança em um homem livre, com consciência de sua liberdade, considerando sua independência e seu bem estar como elementos intimamente ligados à independência e ao bem estar de seus semelhantes. Em 1912, forma-se a Liga do Cinematógrafo Para a Infância, onde é produzido o filme antimilitarista Pourquoi la guerre (Porquê a Guerra). O cinema foi sendo incorporado como veículo de propaganda libertária, e não tardou para Federação Operária Contra o Alcoolismo se valer do cinematógrafo para difundir suas ideias.

Os anarquistas passaram a ver o cinema do mesmo modo que viam o teatro, como veículo de emancipação social. Paris era lugar do Teatro de Arte Social, livre das mazelas da sociedade burguesa e onde o público tinha acesso a encenações de temas próximos à realidade social sob a ótica libertaria.

Fechado em 1894, o teatro retorna no ano seguinte com o nome de Teatro do Povo. Henri Dargel, dramaturgo que participa da criação das universidades populares, mantém o princípio libertário da organização na realização de conferencias, espetáculos e exposições livres e gratuitas, como sugeria o grupo da Arte Social: “A ideia que conduzirá à nova humanidade ainda está no limbo ou se dilui. Ela deve possuir uma arte que lhe seja própria, uma arte que a anuncie, e é esta uma arte transitória, de combate.”

As conferências, o filme Pourquoi la guerre, de Kress, e o Teatro do Povo de Henri Antoine e Émile Guichard, inspiram os libertários. Foi assim que em 1913 surge o Cinema do Povo. Aproximadamente 20 pessoas fazem parte da sociedade: militantes sindicais, artistas e intelectuais anarquistas, como Sébastien Faure e Jean Grave, André Girard e Pierre Martin.

Os envolvidos tinham por objetivo fazer seus próprios filmes, buscando na história, na vida cotidiana, nos dramas do trabalho, temas cênicos que compensassem a descarga ideológica dos deploráveis filmes burgueses, oferecidos todas as noites ao público operário. Acreditavam que o antídoto estava em suas mãos.

“No momento preciso em que todas as forças da reação (militarismo, clericalismo, monarquismo) estão no poder e toleram o arbitrário […], um Cinema do Povo […] acaba de ser criado para lutar o mais vigorosamente possível contra os agressores da III República. Seus filhos lutam contra o clericalismo, alcoolismo, chauvinismo, trio pérfido e ameaçador. Essa será a desforra contra os filmes bíblicos.” Uma desforra também contra as intrigas reacionárias de dois ou três grandes estabelecimentos cinematográficos de Paris (Gaumont, Pathé e Lumière).

O primeiro filme lançado pelo Cinema do Povo foi As misérias da Agulha, trazendo em sua temática as aflições de uma jovem operária que fica desamparada após a morte do marido. Consumida pelo desespero, tenta pôr fim à própria vida, levando consigo também seu filho, mas seu plano é interrompido por alguns membros da Cooperativa de Ajuda Mútua.

As misérias da Agulha é o primeiro filme francês a exaltar a solidariedade operária, e denuncia ao mesmo tempo a exploração odiosa das mulheres nas oficinas de costura. O filme, além de valorizar os operários, os incita à organização. Outro filme do grupo reflete as aflições do universo feminino, e Vítimas de Exploradores se foca na exploração do trabalho doméstico, em que uma trabalhadora, quando acometida pela exaustão, é demitida e lhe resta como último recurso as ruas, a prostituição.

Em ambos os curtas, o espectador acompanha a evolução trágica das heroínas, se afundando na decadência social, exploradas por seus patrões até à exaustão, para serem demitidas injustamente. O destino as atira para a extrema pobreza e suas consequências inerentes: prostituição e suicídio. Tais temáticas exprimem uma realidade social e buscam fazer o espectador reagir violentamente diante dessa situação. Se os filmes clássicos encerram suas narrativas num casamento lacrimoso com um homem belo, rico e honesto, que as retira de seu meio social, a cooperativa desenvolve uma solução mais combativa. As mulheres encontram refúgio no sindicalismo e na organização libertária, que lhe transmitem igualdade, solidariedade, autonomia, que as emancipam junto com outros trabalhadores.

O que nos leva ao filme Inverno! Prazer dos Ricos! Sofrimento dos Pobres. Realizado por Armand Guerra no final de 1914, o filme mostra os prazeres dos abastados, como a patinação no lago do Bois de Bologne, contrastados, a partir dos recursos de montagem alternada, aos pobres esfomeados e consumidos pelo frio, a esperar ansiosamente em uma fila de sopa popular. A miséria aparece em toda sua feiura, e para esses anarquistas isso vale mais do que qualquer discurso contra o sistema social vigente.

Embora ambos os filmes tenham tido grande importância na divulgação das ideias libertárias dentro dos círculos operários, o filme mais representativo do coletivo foi La Commune (A Comuna). O Filme de Armand Guerra reconstitui as batalhas, opondo assim uma representação seca e hierática das autoridades à potência da mobilização popular da rua. Alguns segundos de imagens documentais mostram os sobreviventes da Comuna em torno de uma bandeira com a inscrição Viva a Comuna. O filme teve como objetivo lembrar ou ensinar ao público operário um pouco de sua história. Em segundo lugar, explica, com a ajuda de uma descrição, como organizar a luta. O dever da memória acompanha a necessidade de entendimento, concluindo por mostrar ao espectador a aplicação concreta dos combates descritos na tela, combinando história e instrução para adubar a cultura do levante popular.

Le Vieux Docker (O Velho Estivador), última produção do Cinema do Povo, descreve a vida dura de um velho operário que, após trinta anos de trabalho e de serviços leais, se encontra sem emprego. O filme expressa solidariedade ao anarquista Jules Durand, secretário dos operários do porto do Havre. Em 1910, após uma briga que resultou na morte de um homem, o velho estivador foi condenado à pena de morte. Atestada sua inocência, tem a pena comutada em sete anos de cárcere, onde enlouquece e é remetido à um hospital psiquiátrico, onde termina seus dias. A produção desse filme demonstra que, além dos temas comuns à vida de explorações dos operários, aos conflitos de classe e à preservação de sua história revolucionária, o coletivo também incorporava em sua pauta a solidariedade para com os irmãos de militância que caíram nas garras do governo e de seu sistema prisional.

Com o início da primeira guerra mundial (1914-1918), a forte instabilidade política culmina no fim da experiência do Cinema do Povo. Os franceses vão para as trincheiras e muitos operários pacifistas são consumidos pelo ardor patriótico. Armand Guerra, o mais importante realizador do coletivo retorna a Espanha [*]. Nesse momento, qualquer preocupação propagandística a partir do cinema desapareceu dos meios operários, tendo continuidade apenas com o trabalho de Gustave Cauvin. Anos mais tarde, o espírito libertário desses tempos floresce nos filmes de Jean Vigo, filho de Miguel Almereyda, diretor do jornal antimilitarista Le Bonnet Rouge (O Barrete Vermelho), em atividade antes e durante a primeira guerra mundial.

Paulo Emílio e o anarquismo

Deve-se a Paulo Emílio Salles Gomes a biografia de Jean Vigo, onde compreende o processo artístico do filho a partir da biografia de seu pai. Um aparte biográfico se faz necessário, para que possamos localizar as motivações de um brasileiro realizar esse esforço sistemático em conectar a obra do cineasta ao seu processo de desenvolvimento artístico e político, sua experiência.

Primeiramente, o contato de Paulo Emílio com o anarquismo ocorreu no cemitério da Consolação, em São Paulo, através do encontro com Décio Pinto de Oliveira, estudante de direito que o introduzira nos meios da juventude comunista paulistana, o mesmo que morreria não mais tarde, em 1934, dando combate aos integralistas e à policia na Praça da Sé. Muitos apontam que a revoada dos galinhas-verdes foi o conflito ideológico de maiores proporções que a cidade de São Paulo já viveu, quando os integralistas e a polícia foram atacados por uma frente única constituída de socialistas, comunistas, trotskistas e anarquistas, mas posteriormente esmagados pela sucessão de acontecimentos que culminou em mortos e feridos, entre eles Mário Pedrosa, alvejado na nádega.

Após o contato inicial, Paulo Emílio se encontrou novamente com o anarquismo um ano e meio após o episódio, durante sua estada nos presídios do Paraíso e Maria Zélia, como prisioneiro político do regime de Getúlio Vargas. Na prisão, pôde ler os jornais libertários A Lanterna e A Plebe e ouvir os inflamados oradores da Aliança Nacional Libertadora, que despertavam o apoio por boa parte dos anarquistas encarcerados. Dentre as personalidades da militância social, conheceu o anarquista Edgard Leuenroth, assim como os convertidos ao comunismo Everardo Dias e Ernesto Ristori. Em suas memórias, descreve a chegada ao presídio Maria Zélia do líder libertário Soler. Esse militante espanhol chegava com reputação de bom conferencista e orador, e seus camaradas diziam para os comunistas esperarem para ver.

Os comunistas dominavam a situação e temiam o efeito das palavras de Soler sobre os operários de Bauru, os camponeses de Mirassol ou aos soldados de Caçapava, alas radicais do movimento social que balançavam entre as tendências da luta social. No dia de sua fala, Soler chegou acompanhado de alguns anarquistas, que o conduziram ao palco do teatro dos presos. Paulo Emílio, jovem comunista e filho de industriais, então conhecido pela militância no campo da cultura modernista, tomou a palavra e pediu que o orador se limitasse a falar sobre alguns pontos comuns a todos, ou seja, ao programa da Aliança Nacional Libertadora.

Soler decidiu não falar, pois restrições de qualquer ordem o inibiam. Não tardou e os comunistas se aproximaram para saudar Paulo Emílio com congratulações e tapinhas nas costas. Vinte e seis anos mais tarde, escreveria o crítico de cinema que ainda era incapaz de discernir a margem de sinceridade ou de má-fé de sua intervenção. O governo de Getúlio decidiu meses mais tarde deportá-lo para Espanha, sob as acusações de extremismo. Apenas posteriormente descobriram que os espanhóis subversivos, desembarcados no porto de Vigo, sob o controle de Franco, eram sumariamente executados, o que fez soar irônico e sinistro o sambinha que os presos cantaram na despedida de Soler:

Vai, vai meu bem
vai cumprir a tua sina
o teu destino será teu juiz
Muito embora eu fique chorando
Peço a deus que te faça feliz.

Com o passar dos anos, o interesse de Paulo Emílio pelo anarquismo não culminou no estudo das teorias libertárias, que nunca o iluminaram e que lhe pareciam, pelo contrário, terrivelmente inconsistentes. O que não impediu sua atração pela biografia dos anarquistas. Após a segunda guerra mundial, seus estudos cinematográficos o conduziram a longas pesquisas sobre o movimento anarquista francês do fim do século XIX e início do século XX, quando procurou decifrar o processo artístico de Jean Vigo a partir da personalidade de seu pai, Miguel Almereyda, que viveu uma juventude libertária ardente e generosa.

Vigo, Vulgo Almereyda

Proveniente de uma família rica do principado de Andorra, mas rejeitado por ser filho bastardo de um juiz, Miguel Almereyda chegou a Paris em 1898 para exercer o ofício de retocador de fotografias no bairro de Montmartre. Não tardou para o jovem passar a frequentar o meio libertário. Seus primeiros passos na capital não foram fáceis nem felizes. Ainda menor de idade, cometeu seu primeiro despropósito e depois um segundo, envolvendo-se numa questão com explosivos inofensivos que lhe valeram alguns meses na prisão La Petite Roquette. Depois desse período, passou diversas temporadas em diferentes presídios da República, aonde os processos o conduziam.

Em 1902, tornou-se jornalista do Le Libertaire (O Libertário), que pela virulência de seus textos lhe renderam estadias nas prisões da Santé e de Clairvaux. Consolidou-se como jornalista do jornal La Guerre Sociale (A Guerra Social), de Gustave Hervé. Em 1913, com a fundação do jornal satírico Le Bonnet Rouge, primeiramente um semanário e depois um diário, Almereyda empreende campanha aberta contra o movimento monarquista da Action Française (Ação Francesa), firmados na bandeira militarista.

Em 1914, Almereyda se juntou às campanhas de deserção lançada pela Associação Internacional Antimilitarista e pelo seu grupo Jovens Guardas Revolucionárias, enquanto que Gustave Hervé, seu amigo pessoal e editor de La Guerre Sociale, é acometido pela febre patriótica, que o faz abandonar o antimilitarismo em favor das campanhas militares francesas contra a Alemanha e se consolida com a fundação do jornal La Victoire (A Vitória) (1916).

Sustentando sua campanha contra os monarquistas e militaristas, Le Bonnet Rouge chega a uma tiragem de 80.000 exemplares, aumentando a influência e notoriedade de Almereyda no campo político. Com a direção do periódico nas mãos de Émile Joseph Duval, a linha editorial do jornal concentra-se num pacifismo declarado, e tão pronto seus inimigos passam aos ataques contra sua bandeira política.

No dia 06 de junho de 1915, a guerra editorial é declarada pelo Bonnet Rouge contra a Action Française, acusada de servir aos interesses alemães, temática na qual se desenvolvia os ataques da Action Française ao jornal de Almereyda. A propaganda da Action Française durante a guerra foi marcada pela supervalorização militarista e pela depreciação do parlamento e outras instituições, a fim de que após o termo da guerra, o exército vitorioso retornasse para derrubar a república e restaurasse a monarquia. Um sobre o olho do outro, estava traindo a França. Esse era o aspecto da luta entre duas vanguardas: a ponta monarquista do nacionalismo contra a ala esquerda dos republicanos.

Ao todo, Le Bonnet Rouge dirigiu cerca de 700 números atacando León Daudet, diretor do jornal Action Française, que sempre respondia no mesmo tom sobre Almereyda: “Esse Ladrão, esse fabricante de explosivos, esse malfeitor que é, por sua vez, chefe de malfeitores.” A censura procurava por fim à campanha de Almereyda contra Daudet, que respondia de pronto: “Quando puserem uma focinheira nesse canalha do Daudet, e em todos os seus congêneres, aí sim, consentiremos em nos calar. Antes disso não”.

Com a grande tiragem do jornal, Almereyda enriquece, compra carros e passa a trajar casaca e cartola. Nessa época, a influência de Almereyda lhe assegura frequência no gabinete de políticos do primeiro escalão, como o ministro do Interior Louis Malvy e o ministro das Finanças, Joseph Caillaux, ambos partidários de uma paz branca e alvos de ataques frequentes da Action Française. Almereyda usou largamente seu jornal para defender ambos os políticos, especialmente no caso da defesa de madame Henriette Cailleaux, acusada do assassinato de Gaston Calmette, diretor do Figaro.

Assim como as amizades poderosas, a guerra contra os monarquistas e nacionalistas rendeu a Almereyda influência em determinados círculos da polícia, a mesma contra os quais havia lutado. Valeu-se dessa posição para adquirir informações sobre seus inimigos da Action Française, o que justificou alguns investimentos de Malvy no jornal, contra um inimigo que lhes era comum.

À medida que a guerra avançava, a Action Française reunia em seu tabuleiro peças da polícia e dos tribunais, mais importantes das que dispunha Almereyda. À medida que seus opositores ampliavam seu poder, as relações com Malvy se desgastavam, e em meio a uma total confusão ideológica e à desordem de sua vida privada, Almereyda tenta reatar com algumas ideias de sua juventude, flertando com uma solução revolucionária da guerra. Pouco a pouco, se delineava contra ele um endurecimento desconfiado no círculo do Ministério do Interior.

Paulo Emílio constatou que não é difícil imaginar que essa semi-ruptura com a polícia não tenha aliviado Almereyda. Se, por um lado, o militante ficava privado de informações detalhadas sobre as atividades dos monarquistas ou de alguma ínfima informação sobre os hábitos morais do inimigo – o que não deixava de ter importância dado ao nível extremamente rasteiro da polêmica –, por outro, Almereyda estava cansado desta luta diária por meio de insultos na imprensa e intrigas policiais. Sentia-se vulnerável.

Em 1917, a Action Française aumentava sua campanha contra os republicanos. Qualquer acontecimento negativo aos seus olhos era resultado de uma atuação combinada entre o estado-maior alemão e os judeus, como diziam que havia se passado na Rússia durante o primeiro semestre de 1917, através da revolução de fevereiro e das maquinações de Lenin e Trotski. Na França, o plano alemão seria mais ou menos igual. Segundo a Action Française, além de empregar seus quadros – notadamente Malvy e Almereyda – num eficiente trabalho de espionagem militar, o estado-maior alemão estaria organizando a revolução na França, cujas primeiras manifestações haviam sido os motins no front e algumas greves em Paris. Para León Daudet e seus partidários, os dois principais centros dessa ação revolucionária eram o Ministério do Interior, dirigido por Malvy, e Le Bonnet Rouge, dirigido por Almereyda, sendo o conjunto, dirigido por Caillaux. Nessa tese, a Action Française fincou seu pé.

Com o desenvolvimento da campanha, Caillaux pressentia que Le Bonnet Rouge estava se tornando não apenas o ponto fraco não só do partido da paz, mas da república. A gota d´água foi a descoberta de alguns documentos oficiais no cofre da redação de Le Bonnet Rouge, sobre a movimentação militar no front oriental, usados em suas campanhas contra a guerra. Essa descoberta determinou a prisão de Almereyda e alimentou as campanhas que perjuravam seu nome, acusando-o de traição.

Um juiz do Terceiro Conselho de Guerra se põe a investigar as origens dos recursos do jornal, e Almereyda é obrigado a explicar suas relações com Caillaux, sendo preso por inteligência com o inimigo. Preso na Santé, Almereyda tentava recorrer, pedindo liberdade provisória em decorrência de seu estado de saúde, então em avançada degeneração. Padecia de uma grave afecção intestinal (peridonite e apendicite suporadas), dor fulminante apenas amenizada com o uso de morfina. À medida que seu estado de saúde agravava, a morfina era insuficiente e passou a recorrer à heroína. Na prisão, as dores e a abstinência foram para ele uma verdadeira tortura, que teve fim após sua transferência para Fresnes, onde, completamente indefeso, foi estrangulado em sua cela com o cadarço dos sapatos, que, tencionados, esmagaram seu pescoço contra a cabeceira da cama de metal, o que não impediu seus inimigos de falarem de suicídio.

Segundo João Bernardo, quanto ao assassinato do Almereyda há muita coisa ainda obscura. A deriva de Gustave Hervé e a ligação de Almereyda a Caillaux e a Malvy têm muito por explicar. Seguido as ideias do escritor, Caillaux foi um dos políticos mais brilhantes da Terceira República, um homem de grande inteligência. Malvy era só um político hábil, mas Caillaux era muito mais do que isso, era um verdadeiro estratega do capitalismo. “Ora, o assassinato do Almereyda tem de se entender no pano de fundo das grandes revoltas das trincheiras em 1916-1917, que foram na realidade uma grande insurreição militar, forçosamente mal estudada porque o estado-maior francês continua a manter secreta a documentação, quase um século depois. Autorizaram só um historiador a consultá-la, e ao ler seu livro se percebe que é um mero serventuário dos militares, sem qualquer independência profissional.” Para João Bernardo, é nessa época que as classes dominantes francesas dividiram-se entre Clemenceau, de um lado, e Caillaux, do lado oposto, e o triunfo coube à ala belicista, encabeçada por Clemenceau. Por seu lado, os anarquistas também não quiseram esclarecer o seu papel numa história que em muitos aspectos não os deixaria bem vistos, e esta é, para João Bernardo, mais uma das zonas de sombra da história. Poucos dias depois, Malvy e Caillaux compareceram diante da alta corte de justiça: o primeiro foi condenado ao exílio e o segundo, à prisão.

Jean Vigo então com doze anos, jamais se esqueceria da memória de seu pai.

Nota

[*] Funda, em 1918, a Cervantes Filmes, nos moldes do Cinema do Povo. Após três anos de atividade, e com pelo menos três filmes produzidos – hoje ainda perdidos – Guerra viaja para a Alemanha, para trabalhar nos grandes estúdios. Na época, o cinema alemão, com nomes como Murnau, Pabst e Lang, estava em ascensão. Trabalhando nos estúdios, Guerra exerceu todos os ofícios do cinema, da escrita de intertítulos à montagem do cenário, passando pela realização, mesmo que seu nome não apareça nos letreiros. Sentindo a ameaça da ascensão do nazismo, Guerra retorna a Barcelona, onde se engaja ao lado dos militantes anarquistas na luta contra o fascismo. Guerra passa a filmar os eventos de rua durante a revolução. Filma nas fileiras da CNT [Confederación Nacional del Trabajo, central sindical anarquista] a malograda tomada do Alcázar de Toledo pelos anarquistas e se encontra com Buenaventura Durruti, que apresenta grande interesse pelo trabalho do realizador. A CNT, devido ao agravamento das batalhas, pede que o realizador se retire, com a aproximação da iminente derrota.

Nota sobre o texto

O presente texto ilustrou a palestra ministrada na Cinemateca de Santos, no evento organizado pelo Núcleo de Estudos Libertários Carlos Aldhegueri.

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Uma carta aberta a quem diz que “Funk não é Cultura”

10 terça-feira mar 2015

Posted by litatah in #contratarifa, Anti Capitalismo, Antirracismo, Arte e Entretenimento, Cultura, Funk, Manifestos, Mobilidade Urbana, Periferias e Favelas, Prática, Racismo, Revolução, Teoria, Violência

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duelo

 

Por Carlos Palombini

Fonte: El Hombre

O professor de musicologia Carlos Palombini, da UFMG, explica por que o proibidão merece tanto respeito quanto o samba ou qualquer outro gênero musical.

Dia 9 de agosto de 2012, depois de encontrar meu amigo Gustavo Lopes, o MC Orelha, em seu estúdio no Largo da Batalha, em Niterói, escrevi a Nilo Batista. Eu ouvira de seu DJ-produtor, Gelouko, que Gustavo não recebia direitos autorais por “Na faixa de Gaza é assim”, hoje com mais de quinze milhões de acessos no YouTube, porque “proibidão não paga direito autoral”.

Em 23 de outubro Carlos Bruce Batista me escreveu para dizer que seu pai tivera a ideia de incluir um livro sobre proibidões na série Criminologia de Cordel, publicada pela Revan para o Instituto Carioca de Criminologia. Carlos convidou um grupo de autores das áreas de direito, música e cultura, e obtivemos a colaboração de dois dos mais importantes compositores do subgênero que, nas palavras do DJ Marcelo André (em entrevista recente), “é o mais autêntico”: Thiago dos Santos, da Vila Cruzeiro (o “Praga”), e o próprio MC Orelha.

Minha contribuição para o livro consistiu numa entrevista com Gustavo Lopes e numa análise de “Na faixa de Gaza é assim”. Em 26 de novembro de 2013 nos reunimos no Circo Voador para o lançamento do livro. O ministro argentino da Corte Suprema de Justiça, Raúl Zaffaroni, o delegado Orlando Zaccone D’Elia Filho, o empresário Rômulo Costa, e os MCs Catra, Leonardo e Smith estiveram presentes.

Embora a maioria dos autores não esteja exatamente no início de suas carreiras, creio poder falar em nome de todos e dizer que é um trabalho do qual nos orgulhamos particularmente, pois estamos na companhia de pessoas que admiramos pessoal e profissionalmente. Tanto que, há alguns dias, fui procurar na rede mais quinze exemplares do livro para dar de presente.

Foi quando me deparei com alguns comentários curiosos e talvez representativos, um deles publicado no portal El Hombre. Pedro Nogueira, editor-chefe, me convidou a respondê-los.

Não é estimulante, do ponto de vista intelectual, refutar o senso comum, em especial quando ele não se dá ao trabalho de revestir-se de qualquer coerência, mas limita-se a fazer alarde de gostos e opiniões teórica e empiricamente desinformadas. O que há de mais elaborado no texto é o título, síntese de uma ignorância que o benefício da dúvida me obriga a considerar honesta. Não pode haver “culturalização” do que em si já é cultura. Seria necessário que o autor apresentasse uma definição de cultura capaz de excluir o funk carioca para que o termo tivesse qualquer autoridade.

Mas “culturalização” aqui deve ser tomada como paródia pura e simples de “criminalização”. Tal procedimento, comum no funk carioca, mostra a impossibilidade em que a cultura nacional se encontra de produzir um intelectual de direita. Tampouco há “choradeira em torno da crise do gênero brasileiro”, porquanto não está em crise a música, estão em crise alguns daqueles que a produzem. Para o autor, o problema é simples: ele vai passar-nos uma descompostura e necessita da “choradeira” justificativa. Esse “pai” preocupado com nossa educação carece de autoridade todavia.

Na introdução alguns parágrafos pretensamente neutros deveriam fornecer evidência de imparcialidade se não houvessem sido anulados pelo investimento libidinal excessivo do título. Examinemos não mais que um excerto:

“O samba aconteceu “de dentro para fora” como expressão da cultura popular brasileira e, assim, foi autêntico, espontâneo; o funk carioca ocorreu “de fora para dentro” como derivação do miami bass americano e, assim, foi forjado, imposto como expressão da cultura popular brasileira por um discurso ideológico elitista, reacionário e paternalista consistente em um moralismo às avessas (induzir a sociedade a interpretar coisificação da mulher como luta feminista, pobreza como estilo de vida, ignorância como caricatura, conformismo como engajamento político, ostentação material como cidadania) interessado em processar o etnocentrismo, o higienismo e a marginalização que aprisiona, domestica e submete as classes pobres na armadilha da segregação social.”

A contraposição entre uma música que aconteça “de dentro para fora” e outra que ocorra “de fora para dentro” não tem qualquer embasamento na História. Trata-se da expressão de uma ideologia, esta sim, em crise. Ao dizer-nos essas “duras verdades”, o bom pai ríspido estetiza o político para inverter papéis, e apresentar-se em pele de cordeiro: somos nós “os interessados na manutenção da segregação social”; somos nós que projetamos “nos outros os próprios preconceitos”; somos nós quem quer convencê-lo “de que as classes pobres estão sendo valorizadas”.

Durante o período de ascensão do nazi-fascismo muitos intelectuais aderiram ao regime. Louis-Ferdinand Céline, escritor engajado, escreveu panfletos antissemitas e aproximou-se dos colaboracionistas, mas não deixou de ser considerado um dos grandes inovadores da literatura francesa. Já Robert Brasillach foi julgado e condenado à morte. Em sua defesa saíram Paul Valéry, Paul Claudel, François Mauriac, Albert Camus, Jean Paulhan, Jean Cocteau, Colette, Arthur Honegger, Jean Anouilh e Jean-Louis Barrault, entre outros. Artur Dias não é fascista nem intelectual, mas talvez tenha razão neste ponto: “Entre os níveis de obscurantismo aos quais uma sociedade pode ser submetida — pobreza material, pobreza artística, pobreza cultural —, talvez o pior deles seja a pobreza simbólica.” Quem não estiver convencido que o leia.

***

Leia mais textos de Carlos Palombini em seu site Proibidão.

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Alguns poemas… – José Oiticica

06 quinta-feira nov 2014

Posted by litatah in Charges e Poemas

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anarquia, arte de luta, arte e luta, cultura, José Oiticica, luta e arte, poemas, poesia

jof-047

 

Fonte: Anarquia e Poesia – Blog para divulgação de poesias libertárias e outras de caráter crítico

A Hora

Eis a Hora, a grande hora da peleja,
Hora de sacrifícios e entusiasmo!
Pulsa meu coração, meu peito arqueja
No momento da ação replito e pasmo.

É a batalha final! Trovo, troveja,
Além-mar, o canhão; foi-se o marasmo
Da plebe una, e a revolta bemfazeja
Move espada e morrão, ódio e sacasmo.

Levantam-se os escravos contra os amos!
Há um clamor de vitória em toda a Terra…
Somos nós, anarquistas, que clamamos!

Nós que vamos sorrindo e subvertendo,
Arrastando os irmãos à Maior Guerra,
Num rebate de loucos, estupendo!

José Oiticica
Sonetos 2ª série (1911-1918) de 1919

O protesto

Protesto contra o mal da força e da justiça:
Um degrada a fraqueza, outro excita à agressão;
Contra a fé que reduz o homem a alma submissa,
Iludindo-o com céus que nunca se abrirão.

Clamo contra o senhor, clamo contra a cobiça,
Inventora de leis, criadora de opressão.
Sou Spártacus e odeio a pátria se esperdiça
Meu sangue e faz, do suor, esforço hostil e vão.

Bradam, no meu protesto, os prantos do passado…
Ira acêsa de todo um mundo sofredor;
Mártir do amo, do rei, do padre, do soldado!

Sou a nova intuição contra a lei do Senhor;
Sou a ação que destrói a moral do pecado,
Para erigir o orgulho e libertar o amor.

(José Oiticica – 1919)

A cidade

joseoiticica8Sinto a repulsa dos dominadores…
Sou novo, sou ateu, sou anarquista;
Não sigo a mesma norma dos doutores
E ergo, acima das baias, minha vista.

Aperto, entre meus dedos compressores,
A garganta da casta comodista;
Anuncio outra lei e outros valores;
Sou a palavra santa que conquista.

Vou sozinho, arrostando o ódio dos amos…
E em pó, no topo da colina extrema,
Indico ao povo a Sião para onde vamos:

Vamos para a cidade iluminada!
Vejo-a ao longe, a faiscar, como diadema,
Entre a prata e os carmins da madrugada.

José Oiticica
-1919

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