Fonte: UNIPA
No dia 23 de agosto de 1927, à 87 anos atrás, os anarquistas italianos Nicolás Sacco e Bartolomeu Vanzetti foram assassinados, sentenciados a pena de morte na cadeira elétrica pela justiça do Estado norte-americano. Naquele dia, o proletariado do mundo inteiro derramou lágrimas de sangue e de ódio aos exploradores do povo, sabendo terem perdido gloriosos camaradas da luta revolucionária. Os dois anarquistas foram alvos do maior escândalo jurídico norte-americano, sentenciados sem qualquer prova concreta, com diversas testemunhas falsas (algumas desmascaradas no meio do processo), sob uma forte atmosfera de revanchismo político reacionário e racista.
Tal como outros tantos trabalhadores de sua época, Vanzetti e Sacco começaram o envolvimento com a militância através da solidariedade natural pelo sofrimento dos explorados. O jovem Sacco, filho de camponeses pobres italianos, emigrou para a “América” em 1908, aos 17 anos. Viveu períodos de grandes dificuldades (chegando a passar fome, desemprego e muita miséria), trabalhou em diversas fábricas, sendo que em uma fábrica de sapatos conheceu sua companheira, com quem teve seus dois filhos. Sacco chegou a participar da Federação Socialista Italiana, mas logo se envolveu com a prática sindicalista revolucionária e anarquista.
Bartolomeu Vanzetti, por sua vez, teve um envolvimento quando jovem com ideias religiosas e humanistas, gostava muito de estudar, e logo se desligou de qualquer instituição religiosa. Emigrou para os Estados Unidos aos 20 anos, fato que levou a uma profunda transformação em sua vida. Segundo Vanzetti, na América viu “todas as brutalidades da vida, todas as injustiças e as depravações em que se debate tragicamente a humanidade”. E decidiu dedicar-se física e intelectualmente, chegando a estudar importantes teóricos de sua época como Bakunin, Marx, Kropotkin, Gorki, Mazzini, Tolstoi, Leopardi, Darwin, dentre outros. Leu grande parte destas obras nas madrugadas, após longas jornadas de trabalho na fábrica, debruçado sobre um livro à luz de velas. Vanzetti se tornou um convicto anarquista e importante liderança no movimento operário.
A conjuntura dos Estado Unidos nesse período era de forte repressão aos imigrantes e movimentos reivindicativos. O contexto internacional de disputas com a União Soviética fortaleciam a política de combate com mãos de ferro contra qualquer tentativa mais ousada do movimento operário. O imperialismo externo era completado com uma forte tirania interna. A atmosfera saturada de ódio era também fomentada e explorada pelo próprio Ministro da Justiça, A. Mitchell Palmer, e estava entranhada nas instituições oficiais. Antes de Sacco e Vanzetti outras lideranças haviam sido assassinadas pela polícia. No dia 4 de maio de 1920 (um dia antes da prisão de Sacco e Vanzetti), um editor do jornal anarquista “Il Domani”, Adrés Salsedo, após ter passado por torturas e interrogatórios, foi jogado pela janela do edifício do Departamento de Justiça de Nova Iorque.
O movimento operário norte-americano tampouco era um antro de burocratas e pelegos que estamos acostumados na atual conjuntura de crise de organização do proletariado. As duas primeiras décadas do século XX foram um momento de auge do sindicalismo revolucionário em diversos países da América e Europa. Vanzetti e Sacco participaram de greves, motins, passeatas e sabotagens em defesa dos direitos do povo. Viviam um período importante de influência da teoria e ideologia anarquista no movimento de massas, onde a ação direta, a expropriação, a autodefesa popular e a estratégia revolucionária eram combinados com um grande número de jornais, forte agitação e propaganda e centros culturais.
No noite de 5 de maio de 1920, Nicolás Sacco e Bartolomeu Vanzetti foram presos no bairro operário de Brockton em uma batida policial que buscava prender outra pessoa. De início não foram acusados de nada, passaram apenas por um interrogatório político. A acusação veio logo após. Vanzetti e Sacco foram acusados de assassinato seguido de roubo. A grande imprensa imediatamente passou a divulgar a prisão dos “bandidos italianos” e a sua filiação anarquista como prova moral de propensão à criminalidade e delinquência. Passaram por um longo processo jurídico, com procedimentos abertamente viciados, manipulados e sem precedentes nos anais judiciais. Muitos estudos jurídico foram feitos posteriormente, e os escritos de Sacco e Vanzetti são também uma denúncia contundente ao processo armado.
A campanha de ódio dos juízes e da imprensa reacionária foi contraposta pela ocupação de praças no mundo inteiro por milhões de pessoas pela liberdade dos anarquistas italianos. Uma das maiores campanhas de solidariedade já vista foi feita: manifestações, motins, atentados à embaixadas norte-americanas, dentre outras formas de pressão sobre os governos e carrascos. Apesar de toda a pressão internacional, Sacco e Vanzetti foram assassinados friamente sob os olhos do mundo. Apenas em 23 de agosto de 1977, há 50 anos de seus assassinatos, o governo de Massachusetts promulgou, cinicamente, um documento os absolvendo.
Na condição de trabalhadores, imigrantes e anarquistas Sacco e Vanzetti tiveram de enfrentar não apenas o ódio dos capitalistas e do Estado, como também a xenofobia presente na sociedade americana. No entanto, encontraram solo fértil de ação e solidariedade na ideologia anarquista e no sindicalismo revolucionário, defensores do classismo e do internacionalismo. O amor pela liberdade, pelo livre desenvolvimento das potencialidade humanas, pela igualdade e o fim das classes sociais, alimentaram as convicções destes dois grandes homens.
Aproveitamos a data para divulgar um texto de Sacco e Vanzetti: “Liberdade ou Morte”. O texto é uma prova das virtudes e potência ideológica desses dois anarquistas, que mesmo após receberem a sentença de morte, não cederam um milímetro em suas convicções, se mantiveram firmes nas fileiras do anarquismo revolucionário até o último segundo de suas vidas, não se arrependeram nem se intimidaram frente aos carrascos do Estado. Em tempos de forte repressão que estamos vivendo, e que anunciam se aprofundar, esse texto é uma importante mensagem de convicção ideológica que ultrapassa o tempo e as fronteiras, é um alimento para a luta revolucionária e para os corações e mentes de cada filho do povo. Sacco e Vanzetti Vivem e Vencerão!
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Liberdade ou Morte
Nicolás Sacco e Bartolomeu Vanzetti
Aos companheiros, aos amigos e ao proletariado revolucionário
Muitas vezes, durante nossa prisão, lhes dirigimos a palavra através das grades que nos privam da liberdade e dos mais elementares e inalienáveis direitos.
Não para pedir vossa solidariedade – ela veio espontânea, generosa e imediata, e se afirmou cada vez mais a medida que a magistratura e os oficiais de justiça revelavam o propósito de matar-nos por qualquer meio e a todo custo – os temos dirigido a palavra senão por fé, por paixão, por gratidão e por orgulho.
Por fé: e lhes dissemos que só vocês podem nos arrancar do carrasco e nos devolver à vida que é liberdade, ação, amor e ódio; que de vocês e não da lei, esperávamos justiça.
Por paixão: e gritamos para vocês com o ânimo indignado, do sadismo desta perseguição, as mentiras e a duplicidade demonstradas e usadas contra nós pelo juiz Webster Thayer e pelo procurador Katzmann. E denunciamos a trama construída pela polícia – ordenados por aqueles – para criar, com a corrupção, a ameaça e a vingança, todos os falsos testemunhos da acusação, sem os quais teria sido impossível, não apenas nos condenar, mas até nos acusar; e lhes dizemos que os jurados – em menos de 4 horas, depois de um processo que havia durado 8 semanas – encontraram o modo de nos condenar à penas capital.
Depois, quando o veredito de morte lhes foi informado, vocês, companheiros e trabalhadores, souberam rugir a ira e a dor que queimavam em seus peitos, preparando-se para todas as audácias e desafiando as pontas das baionetas dos inconscientes irmãos soldados, e a brutalidade dos juízes mercenários. Vocês que tomaram as ruas e as praças de cada cidade do mundo, gritando na cara dos representantes e servidores de nossos juízes, de nossos carrascos e perseguidores, que vocês não estão dispostos a deixar cumprir impunemente nosso assassinato.
E a explosão da dinamite libertadora se uniu ao vosso imenso grito, titânica voz de dor, de vontade, de perdição e de redenção. E nós dissemos que a esse grito e a essa explosão devemos nossa vida. As feras sentiram a pele queimar e afrouxaram o nó. De outra maneira teriam se apressado em nos entregar ao carrasco que, no silencio de uma noite má, haveria nos amarrado e queimado sobre a fogueira sem chamas do século XX.
Mas vocês que, durante a mais cega reação da história, souberam cumprir um gesto tão belo e tão poderoso de solidariedade, como poucos nos relembram a história do proletariado, vocês não se desarmaram – confiantes e decididos: a arma em punho.
E não por uma vaidosa necessidade, senão por impulso do coração, temos exteriorizado nossa gratidão e orgulho de pertencer a vossas falanges, sacras ao devir humano. Por impulso do coração! … e temos, com conhecimento, repetido mal o que alguns de vocês disseram como mestres, o que vocês todos sabem.
Agora, porém, queremos lhes dizer nosso pensamento sobre nossa presente situação, – situação incerta, obscura, penosa, cheia de incógnitas. E fazendo isso, acreditamos cumprir um dever com nós mesmos, com vocês e com a grande causa comum. Nossa impotência forçada, desviando-nos das responsabilidades próprias de cada militante, nos impõe o rigor do silêncio sobre coisas que nos dizem respeito, seja como homens, seja como revolucionários – mas não como seres vis. Examinemos então, juntos, nossa situação atual e a de todos os prisioneiros de nossa guerra.
Ao fazer isso, nos encontramos obrigados a começar … desde o início e a nos repetir. É uma necessidade, mas não é um mal, porque enquanto a dor e a vingança durem e invadam tudo, convêm repetir…
Vocês sabem: desde quando, devido ao desleixo dos primeiros advogados encarregados de nossa defesa, Katzmann y Thayer tiveram a primeira, fácil e importante vitória no processo Plymouth, em detrimento de um de nós, as coisas mudaram bastante, e mudaram mais depois do processo de Dedham. Sem dúvida mudaram para melhor. A mesma imprensa burguesa que no tempo de nossa detenção fazia contra nós um verdadeiro linchamento moral, agora e desde muito tempo, mudou de ton. Ela, quase unanimemente, declarou injustificável o veredito de Dedham.
A defesa obteve a retratação de duas importantes testemunhas de acusação, e descobriu que um terceiro, Goodridge, não é Goodridge, e que este, antes de ser um mentiroso, foi um ladrão, um trapaceiro e um bígamo. Além disso, a defesa encontrou um novo testemunho na pessoa de Roy E. Gould, o qual se encontrava presente no assalto, viu os autores, e nega nossa presença no lugar. Obtiveram muitas outras evidencias em nosso favor, evidencias que, por brevidade, deixamos de expor, mas de tal valor suficiente para assegurar, em um caso comum, a revisão do processo.
Mas devemos, por isso, esperar justiça?
Absolutamente, não. – Lhes disse com magistral sapiência o próprio juiz Thayer a cerca de um ano. Lembrareis que ele fixou a audiência requerida pela defesa para pedir novo processo, para a véspera do natal. Ele já havia decidido nos recusar o processo, e escolheu com espírito cristão a véspera do natal, para alegar aos nossos e a nós, com seu compreensível não. Recordareis também sua negação. Discurso famoso, digno dele. Duas peças de imposturas, de cólera, de vaidade, e de má fé. Naquele discurso Thayer fez uma citação jurídica de um colega seu mijada fora do penico; Ei-la aqui, senão textualmente, ao menos em seu conteúdo: os jurados podem negar-se a acreditar nos testemunhos de defesa, ainda que sejam mais numerosos que os da acusação; e podem basear seu veredito de culpabilidade acreditando em apenas um entre todos os testemunhos da acusação.
Thayer preparou outro discurso para quando nos rejeitar novamente o processo, porque ele sente a necessidade de cobrir o espírito com a letra, mas se quisesse apressar-se poderia justificar sua nova negação repetindo, simplesmente as palavras já proferidas e que nós transcrevemos.
Então, dirão vocês, porque vocês pediram a defesa legal? Nós a requeremos, e vocês a financiaram, por boas razões.
Presos pela violência, acusados e constrangidos pela violência a um processo, tivemos que recorrer a defesa legal, a qual é a única reconhecida pela lei, para ser tutelados em nossos direitos, e para demonstrar, ao rigor da lei, nossa inocência. Mas não acreditamos jamais que a defesa legal fosse capaz de alcançar a justiça. Não, nós conseguimos demonstrar nossa inocência. Na mais indulgente hipótese, o jurado não poderia nos condenar mais do que usando a dúvida contra nós. E o mencionado discurso do juiz é todo um esforço para justificar a ação do jurado.
Mas é cansativo falar disso. Vocês, companheiros, amigos e trabalhadores, sabem muito bem porque nos declararam culpados.
E o silencio dos jurados, depois do processo disseram que eles haviam jurado um ao outro não falar do que se passou na câmara de deliberações – isso fala por si mesmo.
Para ser liberados devemos abrir outro processo, e devemos sair absolvidos. Por outro lado, o fato de abrir outro processo não é decisivo para nossa liberdade?
E devemos dizer-lhes que a defesa legal, por si só, é impotente? Deveremos falar-lhes de Mooney e de Billings, dos Mártires de Chicago, de Joe Hill, dos prisioneiros políticos, dos recentes processos aos mineiros e das últimas prisões? Devemos dizer-lhes que dos Thayer e os Katzmann, que administram a justiça de classe, não se deve esperar mais do que o mal? Que os homens com imagem de “bom moços” do condado de Dedham, que nos condenaram, e da figura de “bom moço” dos homens dos outros condados, que condenaram aos demais, não desapareceram, absolutamente, da face da terra? E que é absurdo, ridículo, esperar a justiça da lei de classe de nossos mortais inimigos?
Não, companheiros; Se o inimigo que pode ganhar tudo matando-nos, adverte que o pode fazer impunemente, estejam certos, não nos terão mais entre vocês. Nos matarão, ou nos farão morrer, átomo a átomo, entre os muros de suas bastilhas, como já fizeram com os outros.
E farão assim com os demais reféns. E os reféns aumentarão. As prisões transbordarão dos mais fortes campeões do trabalho e da liberdade. E seu martírio será o martírio da própria liberdade. Corrupto, traído, confuso e aterrorizado, o miserável ignorante se corvará à violência e a astúcia do ignorante rico e na ruína geral nós seremos arrastados e nossos filhos serão escravos, escravos miseráveis de outros e de si mesmos.
Companheiros! Trabalhadores! Vocês permitirão isso? Nós somos impotentes agora. Nosso destino e o de vocês, assim como o destino de nossos filhos, está em vossas mãos, e não nas mãos do inimigo.
A nós não resta nada mais do que olhar o cadafalso ou a ainda mais horrenda prisão perpétua, sem desânimo e sem se desesperar.
Quando ainda éramos adolescentes conhecemos a separação dos nossos ente queridos, a cólera dos patrões e a maldade do mundo de bem. Aos vinte anos preferimos o estudo e a luta, aos fáceis amores e a taberna. E na longa experiência que sabe de toda miséria, toda dor, todo insulto e toda humilhação, amadureceu em nós essa fé que desafia e vence todos os inimigos e qualquer adversidade; a fé que a luta e o valor temperam e não abatem. E sabemos a muito tempo, o que a causa necessita e a que o inimigo serve…
Pela defesa da existência e o triunfo do ideal, estávamos decididos ao sacrifício supremo. Mas esperávamos cair em batalha, a peito aberto e com arma ao punho, cara a cara com o inimigo execrado.
Atroz ironia: se sonhava cair como leões e a realidade nos prepara a morte del topo. E, no entanto, nos conforta a certeza de que, ainda assim dessa forma, nosso sacrifício não é vão, senão que amadurece e apressa a invocada hora do grande revide.
Soubemos encontrar a força para resistir à pena cotidiana, e na não-pior das hipóteses, saberemos olhar na face do carrasco que nos amarre e lançar ao mundo dos grandes ladrões e dos grandes assassinos nossa extrema maldição.
A prisão perpétua significa um martírio mais longo e mais atroz que o da execução imediata. Pensem também que essa é a pena mais rentável à burguesia, porque economiza o gasto do carrasco e lhe dá o produto de nosso trabalho.
Quanto a nós, deem-nos Liberdade ou Morte!
A vocês, companheiros e trabalhadores, nossa saudação!
Agora e sempre pela Revolução Social.
Janeiro, 1923.
Nicolas Sacco e Bartolomeu Vanzetti.